A melhor versão entrava no LP, simples assim. A engenharia de estúdio ainda era muito primitiva e tudo acontecia dessa forma. Quem tinha talento se estabelecia, quem não tinha sumia do mercado. A vantagem dos Beatles era que tinham muita experiência de tocar por muitas horas seguidas quando estavam em Hamburgo e isso lhes trouxe um entrosamento absurdo. Quando entravam em estúdio para gravar tudo acontecia muito rápido. Eles já estavam devidamente calibrados e prontos para chegar na versão definitiva. Em razão disso também era comum os Beatles gravarem seus primeiros álbuns em poucas horas de estúdio. Geralmente em um ou dois dias no máximo tudo já estava concluído e pronto para lançamento. George Martin, o produtor, também era outro grande talento que trabalhando ao lado dos rapazes conseguia ótimos resultados com o mínimo de horas de estúdio o que no final das contas era muito econômico e lucrativo.
Pois bem, como já foi dito "With The Beatles" procura seguir os passos de "Please Please Me". Assim os Beatles mesclam composições próprias com covers de seus ídolos na música. Entre os covers duas faixas se destacam. A primeira é "Roll Over Beethoven" clássico de Chuck Berry. Os Beatles a incluíram por duas razões básicas: a primeira é que adoravam a poesia jovem e descompromissada de Berry. A segunda é que a música já vinha em seu repertório de shows há anos e seria muito prático e fácil gravar a faixa agora na EMI. O destaque vai para George Harrison em simples e eficiente solo, aproveitando bem o riff de Berry. Outra excelente gravação entre as covers é "You Really Got a Hold on Me" de Smokey Robinson. Os Beatles não eram bobos e sempre estavam antenados com o que acontecia no mundo em termos de música. Não é por outra razão que trouxeram essa representante do som da Motown para seu álbum. Eles sabiam do excelente nível da música negra americana e não perderam muito tempo ligando pessoalmente para Berry Gordy para adquirir os direitos da faixa. Como eu disse, de bobos não tinham nada.
Na outra categoria, das composições próprias, o maior clássico é "All My Loving", música símbolo dessa fase do grupo, ainda hoje usada à exaustão por Paul McCartney em suas apresentações ao vivo mundo afora. Letra romântica expressando sentimentos juvenis da garotada, mais Beatles do que isso impossível. Outro destaque é a primeira música composta por Harrison a entrar em um disco dos Beatles, "Don't Bother Me". Não é uma grande música mas serviu para quebrar o gelo. Melhor se sai "I Wanna Be Your Man" que os Beatles tinham dado aos Rolling Stones mas depois se arrependeram pois a música era maravilhosa e coisas assim não se dão e nem se emprestam. A canção que abre o disco, "It Won't Be Long" foi classificada por um crítico inglês como repleta de "Cadências Eólicas", algo que Paul nunca, jamais, tinha ouvida falar. Isso acabou virando piada interna entre os membros da banda. O álbum fecha as portas com "Money", onde John tenta repetir a garra e o pique de "Twist And Shout" do disco anterior. A letra é seca e sarcástica e Lennon obviamente se identificava pois o que ele queria mesmo era ficar rico e famoso. No saldo final considero "With The Beatles" um dos melhores trabalhos do grupo inglês. É despretensioso e honesto em suas intenções. O repertório é agradável e algumas músicas viraram eternos clássicos. Item obrigatório na coleção de pessoas que amam música em geral.
A primeira composição de George Harrison a entrar em um álbum dos Beatles foi justamente essa gravação de "Don't Bother Me" que ouvimos nesse disco. Claro que com os anos George iria melhorar muito em termos de melodia e letra, mas aqui já demonstra bons sinais de seu talento. Não é uma grande canção, diria que é até mesmo uma criação básica, mas que serviu para quebrar o gelo. Além disso trazia em sua letra aspectos da própria personalidade do "Beatle quieto", afinal uma música que tinha uma mensagem de "Não me perturbe" não poderia ser mais característica do Beatle. Enquanto Paul sempre trazia o lado mais romântico e otimista e John surgia com o rock mais ácido e pessimista, George fazia contrabalanço aos dois, tentando aparecer e se esconder ao mesmo tempo no meio dos dois gênios.
"All My Loving" provavelmente seja uma das canções mais populares desse álbum. Embora muitos a associem a Paul exclusivamente, essa foi uma criação a quatro mãos, com Paul e John trocando ideias face a face. Claro que a letra foi criada quase que exclusivamente por McCartney, baseada em seu relacionamento com a atriz Jane Asher, porém John apareceu dando importantes dicas no desenvolvimento da melodia em si. Para John a canção tal como fora apresentada pela primeira vez por Paul nos estúdios Abbey Road ainda não tinha o pique necessário. Foi John então que a acelerou um pouco, trazendo mais vida para a música. Ficou excelente após a colaboração de Lennon. George Martin decretou após ouvir o primeiro ensaio: "É isso, está perfeita, vamos gravar!".
Voltando para a letra seria interessante dar uma olhada em seus versos: "Feche os olhos e eu te beijarei / Amanhã sentirei sua falta / Lembre-se que sempre serei verdadeiro / E quando eu estiver longe / Vou te escrever todo dia / E mandar todo meu amor pra você / Vou fingir que estou beijando / Os lábios dos quais sinto falta / E torcer para meus sonhos virarem realidade".
Eu poderia classificar esse tipo de sentimento presente na letra como um amor adolescente, algo que poderia ter sido escrito por um colegial apaixonado pela garota da escola. Não estou escrevendo isso para desmerecer Paul como letrista, mas sim para salientar como é também arriscado escrever canções de amor para o público jovem. Paul, como bem demonstrou o sucesso da balada, acabou acertando em cheio. Até porque o público dos Beatles por essa época era formado basicamente por jovens histéricas que gritavam pelos membros do grupo nos shows. Foi justamente para essas fãs que Paul escreveu essas palavras. Nada mais complicado do que captar o sentimento dessas garotas em versos e melodia.
Desde o primeiro álbum os Beatles sempre deixavam uma música, geralmente a mais simples, para o baterista Ringo Starr cantar. Viroi uma tradição que foi sendo seguida até o último disco. Embora Ringo não tivesse um grande talento vocal, seu timbre de voz era interessante, ideal para rocks mais agitados ou então músicas com sabor country and western. No caso do "With The Beatles" Paul e John reservaram para ele a agitada "I Wanna Be Your Man" que inclusive acabou virando um ponto alto também nos concertos ao vivo do grupo.
Ringo sempre muito animado criava um verdadeiro frisson entre as fãs quando mandava ver na apresentação dessa canção. O interessante é que os Beatles não foram os primeiros a gravarem a canção. John Lennon havia dado de presente aos Rolling Stones a música. Eles a gravaram e a lançaram em fins de 1963. O single com "Not Fade Away" no Lado A foi um dos primeiros sucessos do grupo de Mick Jagger. Talvez esse sucesso todo tenha incomodado um pouco John que resolveu que os Beatles iriam colocá-la em seu novo álbum, algo que os Stones não esperavam. Em entrevistas feitas anos depois John Lennon deixou escapar um certo ressentimento pelo fato dos Rolling Stones terem feito sucesso com uma canção escrita por ele. Chegou até mesmo a desmerecer a música, dizendo que nunca daria algo realmente bom para os Stones gravarem. Foi algo meio rude de sua parte.
"Roll Over Beethoven" era um cover dos Beatles para um velho sucesso de Chuck Berry. Não era surpresa para ninguém que os Beatles adoravam a primeira geração do rock americano, com destaque para Elvis Presley, Little Richard, Buddy Holly e claro o próprio Chuck Berry. A letra era uma gozação de Berry para com os críticos da época que diziam que o Rock ´n´ Roll era um tipo de música muito simples, com letras fracas e melodias primárias. Tudo isso era compensado com a vibração da canção. O interessante é que os Beatles poderiam ter incluído nas faixas do disco dois dos maiores sucessos da banda na época como "She Loves You" e "I Want To Hold Your Hand". O problema é que as gravadoras não incluíam músicas lançadas em singles nos álbuns, nos LPs. Um erro que atingiu a discografia não apenas dos Beatles, mas de outros grandes artistas do rock também. Uma forma de pensar equivocada. Sem ter músicas originais inéditas para tantos lançamentos o jeito foi mesmo gravar esse cover, que aliás ficou excelente, recebendo elogios do próprio Chuck Berry.
Esse álbum "With The Beatles" tem uma sonoridade tão agradável de se ouvir. Mesmo após tantos anos ainda considero um prazer colocar esse álbum para apreciar as músicas. O grupo também parecia extremamente entrosado, efeito, é claro, de uma banda que vivia na estrada fazendo shows ao vivo. A prática, já dizia o sábio, leva à perfeição.
A excelente qualidade do conjunto, do repertório das músicas, começava já desde a primeira faixa. Bastava colocar a agulha no LP, no vinil, para começar a ouvir os primeiros acordes. "It Won't Be Long" é um reflexo desse entrosamento do quarteto. Eles gravaram essa música, que pode até ser considerada um pouco complicada de tocar, em poucos takes. Sua estrutura rítmica sui generis levou um crítico americano a dizer que a canção tinha "cadências elóicas"
A estranha designação virou uma piada dentro da banda, entre os próprios Beatles. John e Paul, autores da música, não tinham a menor ideia do que isso significava. Brincando sobre o fato Paul ironizou, muitos anos depois, dizendo que a crítica não fazia o menor sentido e que ele, mesmo após anos de carreira, continuava sem saber do que se tratava! Brincadeiras à parte, é inegável reconhecer que se trata de uma excelente gravação do grupo. Eles estavam tinindo nos estúdios Abbey Road quando gravaram essa canção.
Já "Please Mister Postman" era um cover do som da Motown. Quem diria, os ingleses brancos revisitando a música negra americana. Eles curtiam muito a sonoridade dos artistas da gravadora de Detroit. A música já vinha sendo apresentada pelo grupo desde os primeiros shows na Alemanha, em Hamburgo, sendo por isso uma opção natural para compor esse segundo álbum dos Beatles. Seria mais fácil de gravá-la após tantos anos e era uma maneira de agradar os americanos, pois o empresário Brian Epstein já estava de olho no mercado dos Estados Unidos. Se os Beatles conquistassem seu lugar ao sol dentro da terra do Tio Sam nada mais poderia parar seu sucesso. Algo que se confirmaria no ano seguinte quando o grupo finalmente aterrissou no país de forma gloriosa para dar o pontapé inicial na Beatlemania que conquistaria o mundo.
"Little Child" era uma composição de Paul McCartney, ou como gostava de dizer John Lennon "Uma filha de Paul". O tema romântico, com temática adolescente, era bem a marca registrada do baixista dos Beatles por essa época. Inicialmente Paul pensou em dar a música para Ringo cantar, mas depois desistiu. A letra começa simples, com o autor em primeira pessoa pedindo para dançar com uma garota. Letra simples, bem derivativa dos temas da época. Poderia ter contado com alguma contribuição de John, mas para falar a verdade ele era cínico demais para temas tão pueris como esse.
"Hold Me Tight" tinha uma pegada bem mais forte. Outra faixa que muitos autores atribuem ao próprio Paul McCartney, muito embora aqui John Lennon também tenha contribuído mais intensamente. Nessa época os Beatles estavam preocupados mesmo em escrever sucessos de rádio, por isso as músicas seguiam uma certa fórmula. Nessa faixa em particular eles repetiram o uso de palmas pontuando o ritmo da canção. O vocal de Paul intercala com John, dividindo o mesmo microfone. Uma música que sempre me agradou, tendo inclusive feito parte também do raro disco "Beatles Again".
"You Really Got a Hold on Me" era um cover. Nesses primeiros álbuns do grupo havia mesmo a necessidade de cantar canções de outros artistas já que os Beatles não tinham tantas músicas prontas para fazer parte do repertório. Paul e John eram até muito produtivos, o que significavam que compunham muitas músicas juntos, mas também tinham um senso crítico muito forte o que deixavam muitas delas fora dos discos. Só entrava o que eles consideravam ter qualidade.
A faixa começa com George solando sua guitarra. O ritmo é cadenciado, com toques mais românticos. Algo até esperado já que a música original dos Miracles vinha da safra de artistas negros da Motown, um verdadeiro celeiro de talentos de Detroit, uma gravadora que os Beatles particularmente gostavam muito. A letra é praticamente uma carta de amor de alguém apaixonado por uma garota que não corresponde a esse sentimento (bem adolescente). "Você realmente me pegou" é uma frase que resume. Eu não deveria amar você por tudo, mas quem controla as próprias emoções? Pois é... complicada a situação.
Essa canção All I've Got to Do fez parte do disco "With The Beatles", o segundo álbum do grupo na Europa. Já nos Estados Unidos ela foi lançada como parte do LP "Meet The Beatles". Como se sabe no começo da carreira dos Beatles havia uma diferença entre a discografia inglesa e americana. Só tempos depois é que tudo foi unificado, sendo os discos lançados na Inglaterra considerados os oficiais. A canção conta com o vocal principal de John Lennon, com aquela voz bem característica que todos os fãs conhecem.
O curioso é que Lennon explicaria anos depois que a música tinha sido uma influência do chamado "som da Motown", a gravadora americana especializada em música negra. John diria que ele estava tentQando trazer um pouco da sonoridade de Smokey Robinson, do grupo The Miracles, para os discos dos Beatles. Penso que embora tQenha sido esse o objetivo, essa canção romântica tem identidade própria, que resultou igualmente numa boa gravação por parte do quarteto. É simples, romântica e muito eficiente, funcionando muito bem dentro do repertório do disco.
With The Beatles (1963)
It Won't Be Long
All I've Got To Do
All My Loving
Don't Bother Me
Little Child
Till There Was You
Please Mister Postman
Roll Over Beethoven
Hold Me Tight
You Really Got a Hold on Me
I Wanna Be Your Man
Devil in Her Heart
Not a Second Time
Money.