Entrou pela cozinha. A velha não o viu. Ele tinha contas a acertar. Aquela velha no passado quis matá-lo. Depois ficou anos e anos procurando destruir sua reputação, publicando em jornais frases de deboche e escárnio, o ofendendo através de piadas psicóticas. Ela tinha personalidade retardada, era infantilóide e embora estivesse com 80 anos parecia ainda uma víbora adolescente. Também era uma das madames mais ricas de Paris!
Agora havia chegado a hora de dizer basta. O Lord Constance, vampiro fino e elegante, queria descontar tudo o que havia passado. Chegou por trás da velha que, ouvindo mal, não o viu chegar. Ele a pegou pelos cabelos. Estavam na cozinha da casa. Pegou ela pelos cabelos e buum... a bateu com força na quina da pia dura de pedra da cozinha. A pancada foi forte e certeira. Ela perdeu imediatamente os sentidos.
O Lord vampiro percebeu que ela não tinha mais consciência. Só para se assegurar que aquele ser não iria voltar a pegou novamente pela cabeça e deu uma, duas, três, fortes pancadas com sua cabeça no chão. O crânio fez barulho de ter trincado. O Lord então pegou um machado, o levantou e zumm... cortou a cabeça da velha fora! A cabeça rolou e rolou... Foi parar perto de uma poça de água...
Não iria beber seu sangue. Não queria beber o sangue daquela nobre de quinta categoria. Mulher rica de Paris, mas de baixos instintos. Ela tinha o que merecia. Era uma megera, uma insana, uma psicótica com ares de perversidade. De personalidade tóxica até o último fio de cabelo. Sua vida se esvaira. Estava morta. Constance nem perdeu tempo. Deu um chute feroz em sua cabeça decepada que estourou na parede da cozinha. O sangue cobriu tudo. Ele olhou uma última vez para aquilo. Estava satisfeito. Ela agora jazia nas profundezas do inferno.
Acendeu um último cigarrete, olhou para o luar e saiu pela janela, para nunca mais voltar naquela casa...
O Amor Que Não Ousa Dizer Seu Nome...
Constance era um vampiro violento. Em sua vida humana ele teria sido um lord inglês, um daqueles senhores, dono de várias propriedades, entre elas uma bela mansão no bucólico interior britânico. O diferencial era que ele na realidade era um homem interessante, muito concentrado em suas pequenas e grandes obsessões. A maior delas seria a arqueologia. Constance tinha uma das melhores coleções de artefatos antigos da Inglaterra Vitoriana. E para alcançar as peças que desejava ele não media esforços. Comprava peças antigas a preços absurdos. Depois as levava para sua biblioteca particular que mais parecia um museu de história natural.
Não se sabe ao certo como Constance se tornou um Lord Vampiro. Provavelmente caiu nas garras de algum vampiro disfarçado de homem comum. Constance era homossexual como muitos de seus conhecidos, desde os tempos em que frequentou as melhores escolas da terra de vossa Majestade. Então quando ficou adulto ele foi seduzido a ir até um covil de homossexuais. Era uma atividade clandestina, que poderia inclusive dar prisão. Por essa razão havia toda uma cultura de subterrâneo sobre o mundo homossexual e Constance viveu muito nesses redutos durante sua juventude. Numa dessas ocasiões acabou virando uma presa fácil. Caiu na armadilha. Foi mordido. Virou uma criatura da noite.
Agora estava seguindo sua existência como ser da noite em plenos anos 1980. Parecia ser um tempo com mais tolerância e os homossexuais finalmente encontravam sua voz. Só que Constance também viu a chegada de uma nova doença, a AIDS, que vitimou muitos de seus amigos homossexuais. foi um choque sem dúvida, mas ele particularmente passou sem sofrer nada. Afinal ele sequer estava vivo.
Depois de muitas décadas Constance decidiu se mudar para Berlim, na Alemanha. Ele havia ficado maravilhado com o clima cultural da grande cidade alemã. Havia muitas oportunidades por ali, até porque em uma cidade cheia de punks sempre haveria possibilidade de carne moída e sangue fresco grátis. Os policiais não estavam nem aí se os punks fossem encontrados mortos. Os tiras odiavam os punks, aos quais chamavam de vagabundos. Sempre que o corpo de um punk era encontrado o chefe de polícia perguntava se outro vagabundo havia morrido.
Só que não era apenas essa a atração de Constance em Berlim. Ele havia lido um livro muito interessante de um historiador francês que trazia supostas cartas escritas por um vampiro antigo chamado Maximilian. Era por demais interessante. A crítica literária viu o livro como lorota, apesar do historiador ter dito várias vezes que eram cartas verdadeiras. Constance acreditou nas cartas do Vampiro de Versalhes. E ele estava especialmente interessado no Livro de Sangue citado nesses velhos escritos. Estava decidido a encontrar o tal artefato raro para levar para sua coleção particular na Inglaterra.
E ele não iria medir esforços nesse sentido...
Lascívia e Sangue
O vampiro Constance chegou em Berlim em plena madrugada. Chuva fina lá fora. Ainda assim foi para o Palácio do amigo Hanz onde uma festa decadente se desenrolava. Logo na entrada foi recebido por Jessica, linda dama da noite. Pele branca, grandes seios de granito, corpo altamente proporcional. Uma verdadeira estátua grega. Os olhos fixados e as mãos trazendo uma linda taça de sangue fresco. Constance sentiu-se em casa com toda aquela decadência.
Pelos corredores lindas virgens eram servidas aos convidados. Só havia uma regra: beba o sangue que quiserem, mas preservem a vida das donzelas. Ninguém quer problemas com os policiais da cidade. Beba a jugular e preserve as garotas para quem sabe mais uma noite de prazer.
Para Constance aquele era um alívio que ele sentia. Nas últimas semanas sabia que o Anjo da Morte andava em seu clã. Parentes mortos e alguns na fila para visitar o Hades, o abismo sem fim, Hanz sabia de tudo e queria ser um bom anfitrião para Constance. Só não queria ser perturbado por velhas lendas medievais. Ele já vivera o suficiente para não acreditar mais nesse tipo de coisa. Estava cansado de tudo isso.
Então convidou Constance para ir para o leito ao lado da suculenta Jessica James. E ele o fez. Queria ter relações sexuais com aquela mulher. Seria um ótimo desfecho para sua jornada, sua viagem.
Ela se despiu em sua frente. Um belo corpo de mulher. Aquele tipo que ele tanto adorava. Havia fartura de carnes suculentas ali. Ele iria se fartar. Uma bela vagina, bem torneada, convidativa. E Constance ficou um bom tempo apenas mamando suas tetas rosadas. Depois a penetração. Já não era tão bom como antigamente.
Embora também curtisse homens na cama, de vez em quando Constance gostava de entrar no meio das pernas de belas mulheres. Sentir-se um homem de tempos em tempos. E nesse papel também era um homem bem viril, satisfazendo a lascívia delas com doses de prazer infinitos. Elas gemiam alto no orgasmo. Constance socava sem dó e nem piedade.
Depois do coito satisfatório, uma dose de sangue humano. Pensou em morder Jessica, mas olhando para ela dormindo tranquilamente ao seu lado não quis acordar a doce estátua de mármore. Ao invés disso vestiu sua longa capa vitoriana e decidiu andar pelos salões escuros do Palácio até o amanhecer. Queria ficar sozinho e pensar um pouco sobre sua busca...
Sangue e Areia
Constance agora estava em uma escavação arqueológica nos arredores de Berlim. Em um passado distante ali havia uma grande floresta onde lutaram romanos contra os bárbaros germanos. Grandes histórias de lutas e batalhas épicas se desenvolveram naquele solo. Só que a floresta há muito deixou de existir. A madeira foi colocada ao chão, usada para produzir carvão. Sobrou um vale estéril, com muita poeira e pó que entravam nas narinas dos homens que participavam daquela escavação.
Constance tinha interesses ali. Ele havia comprado alguns artefatos antigos daquela escavação. Chegou a levar para sua coleção um precioso Elmo romano que havia sobrevivido no tempo. Aquilo era uma raridade absoluta, uma peça de um tempo que não existe mais, quando o Império Romano dominou praticamente toda a civilização ocidental. Constance tinha verdadeira adoração pela história da Roma Antiga. tinha pensado certamente em ampliar sempre e sempre sua coleção particular.
Só que a históriia do Livro de Sangue não lhe saía da cabeça. Ele queria entender o que era verdade e o que era mera lenda naquele conto que lhe chegou em mãos. Poderia ser tudo, inclusive nada. Só que para aprofundar naquela questão ele entendeu que teria que ir até Paris, investigar se Maximilian de fato existiu ou se era apenas um personagem de literatura. Afinal desde os anos 80 livros sobre vampiros era uma moda no mundo editorial. Poderia muito bem ser que tudo aquilo não passava de uma fantasia.
Queria ir na Biblioteca de Paris atrás das cartas de Maximilian. Será que elas ainda existiam? E Pierre, o tal historiador, era de fato uma pessoa real? Só havia mesmo uma possibilidade de seguir todos os passos, indo em direção à velha cidade de Paris, andar por suas ruelas medievais e antigas. Ir em busca da história desse homem que supostamente teria vivido no auge do Palácio de Versalhes.
Certamente isso iria durar um tempo. Iria exigir um certo esforço de sua parte. Teria que ter paciência e organização em sua busca pessoal. Não adiantava se apressar. Nesse mundo de investigar histórias tudo poderia ser muito lento, complicado, obscurecido pelas areias do tempo. Como dizia o ditado popular, o tempo torna todos os homens sábios. Pena que também os mata. Como ele era um vampiro não tinha pressa nenhuma pois tinha todo o tempo do mundo. Claro, se ninguém o estivesse caçando. Em breve ele iria entender que alguém também seguia seus rastros no meio da escuridão.
Pierre
Pierre era um homem destruído pelo tempo. Estava com 80 anos de idade e sofria de Mal de Parkinson. Quando Constance o encontrou pela primeira vez teve uma verdadeira compaixão pelo estado daquele homem. Ele estava curvado, sua coluna estava desviada e ele tremia as mãos o tempo todo. Por um breve momento Constance pensou serialmente em cancelar aquele encontro. Só que o velho homem estava em sua frente e ele decidiu seguir com a conversação.
- Boa Noite Pierre. Deixe-me apresentar. Sou Constance. Estou em busca de informações sobre Maximilian! - Disse o cortês em seu perfeito sotaque britânico.
- O Vampiro de Versalhes? Puxa, essa história me trouxe muitos problemas... muitos problemas mesmo... - Confessou Pierre sentando-se em sua cadeira, com uma bengala em mãos.
- O que aconteceu? - Sondou o inglês.
- Bom, eu estava em ascensão, numa carreira acadêmica. De repente me dei mal com aquele livro sobre vampiros. Obviamente ninguém acreditou em mim. Virei piada. Vampiros não existem!
- Calma, essa é uma conclusão precipitada... - Disse Constance fitando os olhos do homem à sua frente. Ele fez um efeito especial em seus olhos que o tornaram muito brilhantes, tal como um lobo na escuridão. Só uma maneira sutil para deixar claro a Pierre que ele estava na frente de uma criatura da noite...
- Meu Deus! O que é isso? - Tentou se levantar rapidamente, mas sem conseguir por causa de sua grave doença...
- Acalme-se. Eu jamais iria lhe fazer mal, velho homem. Sente-se, fique calmo. Estou apenas em busca de informações mesmo. Me diga com sinceridade. Maximilian realmente existiu?
- As cartas certamente existem. Estiveram em minhas mãos por muitas vezes. Já o seu conteúdo.... é outra coisa... Fiz breves pesquisas, mas não pude ir em frente. Tinha que ganhar o pão do dia a dia. Não podia ficar viajando em busca de uma sombra...
- E hoje onde se encontram as cartas originais?
- Na biblioteca de Paris.
- Era o que desejava saber. Então me vou, velho homem. Quero lhe desejar muita saúde e paz. Quero que você tenha um final de existência feliz como ser humano. Eu falo isso do fundo de meu coração combalido.
Pierre viu sinceridade em suas palavras. Não demorou logo e o alto e elegante Constance se levantou. Colocou seu bonito chapéu e saiu do encontro com Pierre. Estava satisfeito com o que ouvira dele.
Só que Pierre tinha uma última pergunta a lhe fazer...
- Espere... Uma última pergunta. Existe mesmo vida após a morte?
Constance virou-se, olhou sobre seus ombros, abriu um sorriso e respondeu...
- Como eu vou saber? Eu nunca morri! Não no sentido tradicional do termo.
Dito isso tirou uma moeda do bolso e jogou para o alto. Depois a deu de presente para Pierre.
- Eis aqui um presente. É uma velha moeda romana dos tempos do imperador Tibério...
Deu a moeda para o velho historiador...
- Muito obrigado... Eu dei minha vida pela história...
Não havia tempo para mais nada. Com sua grande capa preta Constance andou rápido, com passos firmes. Abriu a porta e se foi, desaparecendo no meio da noite.
As Cartas de Versalhes
A Biblioteca Nacional de Paris dormia sob a névoa da madrugada. Dentro, corredores silenciosos guardavam séculos de segredos. Constance entrou como um sopro invisível — ninguém o viu. Caminhou com o mesmo porte de sempre: elegante, frio, nobre.
Sabia exatamente para onde ir. No subsolo, havia uma sala restrita onde estavam guardadas as correspondências antigas de nobres franceses do século XVIII. Entre elas, as famosas “Cartas de Maximilian”.
Retirou uma delas do cofre e leu sob a luz amarelada da lamparina. O papel estava amarelado, com tinta desbotada, mas as palavras ainda gritavam vida:
“Aquele que possuir o Liber Sanguinis — o Livro de Sangue — dominará o tempo e as almas. Mas pagará um preço que nem mesmo a eternidade poderá apagar.”
Constance sentiu algo dentro de si estremecer.
O Livro não era apenas uma relíquia: era uma chave.
Uma chave que talvez pudesse libertá-lo de sua condição amaldiçoada.
O Livro de Sangue
Na noite seguinte, Constance seguiu as pistas deixadas nas cartas. O último registro falava de uma cripta sob o antigo Mosteiro de Saint-Denis, demolido após a Revolução Francesa, mas ainda guardando ruínas subterrâneas.
Ele desceu pelas escadarias cobertas de limo, acompanhado apenas de seu faro sobrenatural. Lá embaixo, um cheiro de ferro oxidado e cadáver antigo o envolveu. No centro da cripta, um altar quebrado — e sobre ele, o que parecia um grande volume encadernado em couro escuro, pulsando suavemente, como se tivesse um coração próprio.
O Livro de Sangue.
Constance se aproximou. Ao tocar a capa, uma sensação o invadiu — como se o sangue de todos os mortos gritasse dentro de sua mente. Vozes, memórias, guerras, pestes, amores perdidos… tudo em uma torrente única.
O vampiro quase caiu. A energia do livro parecia viva, consciente.
“Quem lê estas palavras sela seu destino”, sussurrou uma voz feminina, antiga, ecoando pela cripta.
Era como se o espírito de Maximilian ainda o observasse.
O Espelho de Sangue
As páginas começaram a se mover sozinhas. Constance viu reflexos — não de seu rosto, mas de todas as suas vidas passadas. Aquele Lord arqueólogo. O jovem inglês. O vampiro recém-nascido. E então... o assassino da velha em Paris.
O livro o fazia reviver tudo. Cada pecado. Cada vício.
Uma lágrima de sangue escorreu por seu rosto. Pela primeira vez em séculos, ele sentiu vergonha.
— Então é isso… — murmurou. — O Livro é um espelho da alma.
De repente, um vulto emergiu da escuridão. Era Jessica James. A vampira alemã o havia seguido, movida por uma curiosidade obsessiva.
— Você achou o livro, Constance... mas ele não pertence a você — disse, revelando suas presas. — Pertence a quem tiver coragem de ler até o fim.
E num salto felino, ela se lançou sobre ele. Os dois caíram, o livro aberto entre seus corpos.
O sangue de ambos respingou sobre as páginas — e o Liber Sanguinis brilhou como se fosse feito de fogo líquido.
A Maldição
Jessica foi engolida por uma luz vermelha e desapareceu, dissolvida no ar. Constance ficou sozinho, ajoelhado, com o livro fechado em suas mãos.
Agora ele entendia. O Livro de Sangue escolhia um portador e destruía o outro.
Ele sentiu a força do artefato fluir dentro de seu corpo. O poder era imenso. Mas junto com ele veio a dor — uma dor antiga, arrastada, que parecia abrir suas veias de dentro para fora.
Os rostos das vítimas começaram a surgir diante de seus olhos: a velha decapitada, os punks mortos em Berlim, os amantes esquecidos...
O Livro o forçava a encarar cada vida que ele havia tomado.
— Chega! — gritou, sua voz ecoando nas catacumbas. — Eu não quero mais viver na noite!
O Livro respondeu com silêncio.
Então ele percebeu: a única forma de quebrar a maldição era devolver ao sangue o que o sangue lhe dera.
O Último Crepúsculo
No alto da colina de Montmartre, pouco antes do amanhecer, Constance abriu o Livro pela última vez. As primeiras luzes do sol nasciam sobre Paris. Ele sorriu — um sorriso cansado, humano.
— Que seja o fim.
Com uma adaga antiga, cortou o próprio peito e deixou o sangue escorrer sobre as páginas. O Livro o absorveu avidamente. Uma chama azulada o envolveu, queimando a capa, o papel, e o próprio Constance.
Em poucos segundos, o Lord Vampiro se dissolveu em cinzas.
O vento levou sua essência para longe, espalhando-a sobre os telhados da cidade.
No chão, restou apenas uma moeda romana — a mesma que ele dera a Pierre.
O velho historiador, em seu quarto, acordou naquele exato instante e viu a moeda brilhando em sua mesa. Sorriu e murmurou:
— Enfim, ele encontrou o que buscava…
E assim, a eternidade de Lord Constance chegou ao fim —
entre o sangue e o perdão, entre o amor e a noite.
Pablo Aluísio.

Constance - Livro de Sangue
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Fim
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