O ano é 1956. Em uma cidadezinha do meio oeste dos Estados Unidos vivia o jovem Clinton. Um cara normal, mas com problemas a mais do que um jovem comum que vivesse em uma família que não fosse tão disfuncional como a dele!
Clinton não aguentava mais seus familiares. Ele era o mais jovem de dois irmãos. Esse não era realmente o problema. O problema era a família do pai dele. O pai era um dos doze filhos de um velho fazendeiro do interior. Um sujeito tosco, que cuspia no chão. Clinton sempre desconfiou que seu avô tinha algum problema mental. e pela histórias de abusos físicos e mentais que ele ouviu durante toda a sua vida, isso era bem provável de ser verdade. A questão é que por isso seu pai cresceu com problemas emocionais também.
O pai de Clinton era um autêntico filho da puta! Era um sujeito que vivia do ódio. Ele podia ficar dias sem falar com sua esposa e nem seus filhos. Estava sempre ameaçando sair de casa, deixando todos na miséria. Ninguém realmente gostava daquele sujeito sórdido. Ele aprendeu a ser sórdido com o próprio pai, aquele miserável que estava morto, apodrecido em algum caixão. O velho vinha de uma tradição de miseráveis bastardos. Na pequena cidade onde cresceu todos diziam odiar aquela família. Ninguém gostava deles. Eram vilões, gente ruim, sangue ruim. Ninguém realmente prestava naquela família dos infernos.
Clinton amava artes. Ele era tão diferente daqueles parentes nojentos dele. Ele queria ser escritor ou artista, mas vivia sendo massacrado. O pai estava morrendo de câncer. O pior é que apesar de estar no bico do corvo continuava sendo o mesmo desgraçado de sempre. A alma era podre. O corpo estava podre agora, também. Não havia salvação para aquele desgraçado filho de uma puta, neto de Lúcifer. Gente ruim, sangue ruim, nem o cemitério queria. Quando morresse era melhor jogar na caçamba de lixo. Era o adequado a fazer. Clinton sabia que seu pai e os parentes familiares eram apenas isso, lixo putrefato!
- Malditos desgraçados, dizia rangendo os dentes...
Arte e Violência
Clint ainda estava na escola. Ele odiava a escola. Não que fosse um cara burro, mas justamente o contrário. Achava tudo maçante. Ele era inteligente, mas parecer inteligente demais na escola poderia ser perigoso. Ele poderia apanhar por isso. Por isso fingia ser um cara burrão. Um cara forte, sempre pronto a fazer piadas estúpidas com outras pessoas. E como havia sido criado numa família tóxica ele não via nada de errado em detonar os menos afortunados. Ele era um cara escroto, tenha certeza disso.
Tirava onda com as garotas gordas, os caras magros, qualquer um que não se enquadrasse em um certo padrão. Ele era muito mais alto do que os demais. Tinha quase dois metros de altura. Seu porte chamava a atenção. Um cara brutal, mas ao mesmo tempo com traços delicados no rosto. Poderia ser chamado de um baby face com corpo de brucutu. Isso o poupou de virar alvo de piadas na escola. Quem iria se meter com um grandalhão daqueles?
E no meio da tempestade que era a adolescência, ele se apaixonou por uma garota da escola. O nome dela era Anne. Olhando para o passado não poderíamos dizer que a Anne era uma beldade. Não era. Ela tinha um nariz de suíno e não curtia muitos hábitos de higiene. Era uma falsa loira. No fundo tinha sangue de índios, mas pintava o cabelo e se passava por loira. Clint tinha queda por loiras. Mesmo com as falsas...
Quando se está apaixonado não se vê bem a realidade. Como olhos de catarata você passa a ver tudo de forma embaçada e escura. A Anne não era nenhuma beleza. Tinha pés de crocodilo e não era das minas mais inteligentes da escola. Chegou a tirar um redondo zero na prova de química. Mas é a tal coisa, quando se está sem ninguém, qualquer uma passa a ser interessante. Clint não tinha muito jeito com garotas e ela não era muito inteligente. Mal sabia conversar direito. Por isso as chances de dar certo aquele relacionamento era zero. E terminou assim mesmo, no zero a zero!
Por um tempo Clint ficou louco por cinema. Ele iria ser louco por cinema a vida toda, mas aquela era uma época especial tanto no mundo do cinema como no mundo da música. Ele curtia arte, acima de tudo. Adorava James Dean e Marlon Brando e era especialmente aficionado pelo tal de Elvis Presley. O cara era demais, unia a imagem dos rebeldes do cinema com a força de sua música. Quem não gostava de Elvis nos anos 50 não era boa praça.
Clint adorava e mesmo sem ter muita grana procurava comprar todos os discos que encontrava. Tinha uma loja de discos no centro de sua cidade que se chamava Eletropieces e ele estava sempre procurando discos do Elvis na sessão de discos em promoção. Comprou quase toda a sua discografia por lá. Fez uma boa base. Depois foi comprando discos que surgiam do nada. Achou uma boa coleção de discos em caras que vendiam vinil nas ruas mesmo. Ele comprava tudo, embora com uma certa vergonha de comprar discos daquele jeito. Mas não importava, o legal era ter os discos. Colecionar algo lhe trazia grande prazer pessoal. Era um hobbie dos mais agradáveis para a alma.
Arma!
Clint resolveu comprar uma arma! Um velho revólver 38. Nada muito sofisticado, mas para ele serviria. Estava planejando fazer pequenos roubos em lojas de conveniência nas cidades vizinhas. Nada de roubar em sua própria cidade. Seria facilmente identificado e iria parar na cadeia. Então ele comprou fiado um velho carro Plymouth. Estava caindo aos pedaços, não resistiria a uma perseguição policial, mas daria para pelo menos fugir em lugares remotos. Assim Clint pegou a estrada...
Ele foi procurando nos condados vizinhos pelas lojinhas mais simples, isoladas e remotas possíveis. E que fossem à beira da estrada. A fuga era essencial! Clint não era uma má pessoa. No fundo ele era até mesmo um bom rapaz, mas estava cedendo aos anseios e pressões sociais que caíam sobre ele. Via que vindo de uma família pobre não teria muitas perspectivas em seu futuro, não iria muito longe. Na melhor da hipóteses iria arranjar um empreguinho de salário mínimo num comércio qualquer. Ele não queria essa vidinha... Era jovem, sonhava alto, queria o mundo inteiro!
A criminalidade assim pareceu ser um caminho relativamente fácil para ele. Mal sabia no que estava se metendo! Depois de dirigir muito e vendo que a gasolina estava acabando ele acabou avistando seu alvo. Era uma pequena mercearia. Parou o carro na esquina. Foi dar uma olhada.
O sujeito do balcão era um tipo brutamontes, cara grande, forte, barbudo! O tipo homem das cavernas. Só que Clint estava armado, não haveria músculos a se impor para uma arma de fogo.
Ele entrou na lojinha. Cigarro encostado na orelha. Ficou olhando ao redor, por cima dos ombros. O balconista não foi com sua cara. Sabia que era um potencial ladrão dentro de seu estabelecimento comercial. E ele estava certo sobre isso.
Então Clint se aproximou e pediu uma carteira de cigarros. Quando o balconista se virou para pegar, Clint puxou o revólver. Nunca aponte uma arma de fogo para um homem se não estiver decidido a usá-la! Essa seria uma lição que ele iria aprender da pior forma possível.
O grandalhão viu que Clint lhe apontava uma arma. Ao invés de levantar as mãos ele se abaixou e pegou um grande taco de beisebol. Clint ficou surpreso com a reação do homem!
- Ei cara, larga essa taco, estou armando, me dê o que eu quero que deixarei você em paz! - Disse Clint, sem abaixar a arma!
- Seu filho da puta, foda-se... - Foram as últimas palavras que Clint ouviu antes de sentir a dor daquele grande pedaço de madeira batendo em sua cabeça...
Clint vacilou, não quis puxar o gatilho, saiu correndo pela porta com o barbudo brutamontes vindo em sua direção...
- Eu vou te matar ladrão filho da puta! - gritou a todo pulmão...
Clint correu e conseguiu abrir a porta. Estava correndo sangue pela sua cabeça. Virou a chave e deu partida...
O comerciante ainda acertou seu para brisas traseiro que ficou estralhaçado em mil pedacinhos...
- Santo Deus! - Pensou consigo mesmo Clint, suado e tentando limpar o sangue que agora escorria pelos seus olhos...
Sua inexperiência como criminoso havia falado mais alto. Ele não tinha como prever uma reação. Pensou e pensou no que havia acontecido. Depois suspirou e não se arrependeu de não ter matado aquele homem furioso. Teria sido muito pior para ele...
Delírio a Dois
Pois é, Clint percebeu que sozinho não iria muito longe. Precisava de um comparsa! Lembrou de Gus, um cara que ele conhecia desde os tempos da juventude, desde o colégio. Gus definitivamente não era uma pessoa normal. Quem o encontrava pela primeira vez logo percebia que ele tinha alguns problemas. Não parecia ser um jovem normal. No fundo, provavelmente, tinha algum grau de autismo ou qualquer coisa, mas naquela situação serviria para Clint.
Clint foi se encontrar com Gus. Ele estava trabalhando em um posto de gasolina. Péssima era a sua situação desde que o colégio havia chegado ao final. Sem grana, sem perspectiva de ir para uma universidade, tudo o que havia lhe estado era um emprego ruim qualquer. Uma porcaria. Em sua maneira de pensar, Gus estava perdendo grande parte de sua vida ali. Que merda de vida!
Encontrar Clint para ele foi muito legal. Aquele provavelmente foi seu único amigo na escola. Mesmo quando conhecia alguém era por causa do Clint. Sozinho, era um ser nada social, feioso, mal arrumado, com papo estranho. Ninguém queria ser amigo de verdade dele. E tinha a esquisitice. Gus era esquisito. Disso Clint sabia bem, tanto que sempre o deixava longe de sua família.
Só que Clint sabia que Gus iria servir por um simples motivo: o cara era demente! Ele gostava de dizer que era um cara barbarizante, ou seja, que topava de tudo, até mesmo de fazer atos bárbaros por aí. Se havia um bom parceiro de crime, Gus seria o cara. Ok, era estranho, diríamos até mesmo bizarro, mas Gus topava qualquer coisa. Era só chamar que ele estava dentro.
Clint abriu o jogo e contou a Gus o que havia acontecido...
- Porra, porque você não meteu uma bala naquele cara? - perguntou Gus, perplexo com a história que ouvira!
- Bateu um sentimento de consciência... - Explicou Clint...
- Que consciência, filha da puta, era para apertar o gatilho, mandado o grandalhão para o inferno, sem dó e nem piedade, porra que merda! - Gus estava indignado!
_ Eu sei, eu sei...
- Você poderia ter morrido, se o cara lhe acertasse com um bastão de beisebol, você já era, bicho! Vamos voltar lá, quero matar esse filho da puta! - Gus, realmente não queria nem saber das consequências...
- Calma aí... Não quero voltar lá! Temos que ter outro plano de roubo, de assalto, mas em outro lugar... tem que ser algo mais planejado sabe, nada de sair na base da sorte, da cara ou coroa... tem que encontrar o lugar certo, encontrar a ocasião perfeita para isso e correr o menor risco possível...
- Ok, cara. Se você pensa assim, estou dentro! Vamos dar uma olhada por aí qualquer dia, eu estou dentro! - Gus realmente não dava para trás.
- Certo, vamos planejar, mas tem que ser em outra cidade.
Um delírio a Dois estava para começar!
Delírio a Dois (continuação)
Clinton e Gus passaram as semanas seguintes varando estradas e pequenos motéis, planejando roubos mais “profissionais”. Roubos de conveniência davam pouco; queriam algo maior, um caixa eletrônico isolado, ou um carro-forte que passasse por uma rodovia secundária. Eles discutiam rotas, horários, a melhor forma de desaparecer depois do golpe. Clint, por baixo de toda a bravata, ainda sonhava com cinemas escuros e roteiros que nunca escrevera. Era esse sonho — uma chama pequena — que, vez por outra, vinha à tona quando a adrenalina baixava.
Gus, por sua vez, empolgava-se com cenas de violência antecipada, com a idéia de domínio e poder. Não havia método nas obsessões dele, apenas fervor. Numa madrugada, junto a uma janela empoeirada, ele confessou que gostava de assistir a filmes de assalto de novo e de novo, memorizando cada detalhe. “A vida real é melhor”, disse, e sorriu como quem não mediu as consequências.
O plano que escolheram foi simples e arriscado: um carro-forte que abastecia um banco num pequeno vilarejo a trinta milhas de onde haviam nascido. Choque e fuga, emprego de máscaras, um carro abandonado num celeiro vazio à margem da estrada como ponto de reunião. Tudo parecia bem traçado. Só que, como em todos os filmes que Clint tanto admirava, o real nunca segue o roteiro. Havia algo que eles não haviam previsto: a coragem enfurecida do balconista e o mundo pequeno onde todo boato vira notícia.
A notícia de tentativas de assalto circulou rápido. O homem do mercearia contou tudo — as feições do ladrão, o carro — e em pouco tempo a polícia regional montou barreiras nas estradas. Um desses policiais, veterano de turnos longos, reconheceu a descrição de Clinton a partir de um cartaz informal que circulava entre as delegacias: um grandalhão de quase dois metros, expressão dura. Quando Gus e Clint chegaram ao ponto combinado, foi a vez da sorte virar o rosto.
Eles foram observados primeiro por luzes distantes, então por sirenes. Um bloqueio improvisado fechou o caminho. Clinton pisou no acelerador e sentiu o motor do Plymouth roncar como um animal encurralado. Gus, em pânico, bateu no painel, olhos arregalados. Havia mil coisas a dizer e nenhuma delas adiantaria. Eles tentaram contornar por um atalho de terra, rasgando o mato, o carro tossindo, a poeira subindo em nuvens.
Não houve tempo para grandes decisões. Homens armados emergiram da sombra: agentes da lei de duas delegacias, alguns estaduais, claramente preparados para algo mais grave do que um simples confronto com ladrões de beira de estrada. Havia ordem, havia nervos de aço, e havia armas automáticas apoiadas por braços que não tremeram. Clinton viu a formação ao longe e percebeu, em um frio fulminante, que aquilo não terminaria com algemas.
O primeiro clarão foi seco e alto. Metralhadoras, apontadas por profissionais, abriram fogo — rajadas curtas, precisas, arpoadas pelo ar que cheirava a pólvora. Não houve cena de heroísmo cinematográfico, nem troca de olhares dramática. Houve apenas a máquina de chumbo e o corpo no volante tentando, por instantes, entender a velocidade da queda. Bullets ricochetearam na lataria, estilhaços voaram, o Plymouth derrapou, bateu em uma vala e parou. Quando a guarnição avançou, o calor da batalha já havia esfriado o campo; havia apenas a respiração curta dos que ali ficaram de pé.
Clinton não teve discurso final. Não olhou para o céu em busca de redenção nem reconheceu seus erros em palavras. Caiu numa espécie de silêncio bruto, interrompido pela rotina profissional dos que chegaram depois: combates terminados, perímetro isolado, papéis a preencher. Gus, atordoado e gritando coisas desconexas, foi imobilizado. De algum jeito, no meio do fogo e do pânico, todas as pequenas vontades de Clint — escrever, fazer arte, escapar da família — pareceram tão banais quanto notas amassadas ao vento.
Quando a notícia chegou à cidade, os moradores sussurraram as versões num café e numa igreja: o grandalhão que quis ser bandido, a traição do destino, a violência que retorna sempre à mesma mesa. Alguns celebraram a ordem restabelecida; outros, mais calados, lembraram-se de um rapaz que uma vez fora visto na vitrine da loja de discos, olhando um álbum do Elvis como quem vê um mapa para outro mundo.
No fim, Clint morreu como entrou no crime: sem grandeza, sem glórias. A máquina do Estado fez o que achou necessário para encerrar a ameaça naquele dia — um desfecho seco, mecânico, prático. Para quem sonhava cinema, resta apenas a tela escura. E para os que ficaram, restou o vazio: a pergunta de sempre sobre quando a ferida da violência irá parar de gerar mais violência.
Gus acabou na cadeia. A família de Clinton, com suas feridas antigas, fechou-se sobre si mesma, como quem recolhe uma casa após um incêndio. E a pequena cidade voltou à sua rotina, com o zumbido baixo do calendário e as portas que se fecham às seis da tarde, como sempre fizeram. Ninguém esqueceu totalmente — esquecer é privilégio de quem não conhece o peso de uma bala —, mas, com o tempo, as conversas mudaram de assunto.
No fim das contas, ficou a lembrança amarga de um jovem que queria arte e encontrou violência; um menino de quase dois metros que, por erro de cálculo e por um coração remendado, terminou por ser consumido por uma sequência de decisões que ele, sob outras circunstâncias, talvez tivesse evitado. E assim termina a história de Clinton: não com um épico, mas com a fragile e definitiva questão de que alguns sonhos, quando atropelados pela raiva e pela pressa, terminam antes de começar.
Pablo Aluísio.

Livros de Bolso
ResponderExcluirPablo Aluísio.
The End
ResponderExcluirPablo Aluísio