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sábado, 5 de dezembro de 2009

Um Winchester Para Ringo

Cap. I - Ringo
Ringo matava. Era isso o que ele fazia. Alguns trabalhavam com gado. Outros vendiam couro e peles. Havia os que tentavam tirar algum alimento daquelas terras desérticas. Famílias viviam em ranchos, uma vida dura que piorava a cada ano. Criavam gado ou cavalos, mas o clima da região não ajudava em nada. Era muito seco e muito quente. Ter uma criação era penoso e caro. Ringo matava. Era mais prático e mais fácil de ganhar dinheiro. Nada mais do que isso.

Ele havia sido cowboy no passado. Porém o dinheiro obviamente ficava todo com os grandes fazendeiros. O cowboy ficava com migalhas. Ringo então percebeu que matar lhe daria mais dinheiro. No começo ele tentou se fazer de caçador de recompensas. Matar assassinos profissionais, ladrões e bandidos poderia ser bem complicado. Por isso ele decidiu virar ele mesmo um pistoleiro profissional.

Em seu encalço sempre havia um xerife ou algum grupo de cavaleiros em ronda para prende-lo. Era um caminho sem volta. A partir do momento em que seu rosto e seu nome surgiam em cartazes do tipo "Procurado vivo ou morto" não havia como voltar atrás. A caçada havia começado. Só iria parar quando a tampa do caixão fosse fechado em seu rosto morto. Era a lei do velho oeste. Viver ou morrer. Sobreviver para contar história ou ter sua história contada por aqueles que o mataram.

O próximo trabalho de Ringo era político, ou quase isso. Ele deveria localizar um líder político de uma cidade chamada Culver City. O prefeito estava com medo de perder as eleições. Então era melhor matar seu concorrente. Ringo era o nome a se chamar nessas situações. Ele havia tirado a barba para não ser mais tão facilmente reconhecido. Era questão de se camuflar, se esconder.

Seu contratante também havia lhe dito que era melhor chegar no sábado em que haveria uma grande feira de gado, assim Ringo poderia se misturar no meio da multidão. Para todos os efeitos ele estaria lá para comprar gado, nada mais. Um forasteiro comercial e não um matador profissional. O vereador que seria seu alvo se chamava John Westmoreland. Homem honesto e íntegro. Nada a ver com Ringo e seu caráter de bandido. Era um duelo de opostos.

Cap. II - O Serviço
No dia marcado Ringo chegou a cavalo. Havia mesmo muitas pessoas em Culver City. O gado de lá era considerado bom e de boa qualidade. Ringo olhou sobre os ombros. Foi até uma viela e lá recebeu parte do dinheiro. 2 mil dólares; Era um adiantamento. Depois haveria mais 2 mil dólares pelo crime consumado. Ringo conferiu o tambor de seu revólver. Seis balas, tudo certo. Ele então caminhou pela rua principal e avistou o vereador abraçando alguns futuros eleitores e cidadãos em geral. Ringo colocou um cigarro entre os dentes e seguiu em frente.

Matar ele ali seria muito perigoso. Por isso esperou a noite chegar. O vereador Westmoreland tinha também suas falhas. Ele não resistia a um bom jogo de cartas. Ringo sabia disso. Assim o encontrou no saloon numa mesa de cartas. Esperou pacientemente o político jogar tudo, perder tudo, até seu juízo. Quando o relógio bateu 3 horas da manhã ele finalmente se levantou. Ringo seguiu seus passos pela rua. O sujeito não havia bebido. Se estivesse bêbado seria mais fácil.

Então ele entrou numa rua lateral. Iluminação zero. Lugar ideal. Ringo tirou sua arma do coldre. Rodou o tambor. Então chamou o homem. "Ei, Westmoreland, tudo bem? Deixe-me apertar a mão do futuro prefeito da cidade". O político parou, se virou e abriu um sorriso em direção a Ringo. Esse nem pensou duas vezes e atirou. Dois tiros certeiros no peito. O velho político colocou suas mãos nos buracos feitos pelas balas. Sentiu a morte chegando. Caiu com o rosto no chão. Poeira na língua. Ringo se abaixou. Conferiu se estava morto. Hora de ir embora. O barulho dos tiros chamou a atenção de algumas pessoas. Ele se esquivou e sumiu pelas sombras da noite. Trabalho feito.

No outro dia, perto da estação recebeu o dinheiro pelo trabalho feito. Ringo iria usar a grana para comprar um rifle Winchester novo, último modelo. Ossos do ofício. Ainda com os moradores da cidade em choque ele montou seu cavalo. Saiu da cidade como chegou, sem chamar muita atenção. Mais um serviço concluído. Nada mais a reclamar. Apenas rumar para a próxima cidade, para o próximo contrato manchado de vermelho sangue. Era a vida de Ringo.

Cap. III - Francis
Francis McCarthychegou domingo pela manhã em Culver City. Ele estava na cidade novamente, agora para enterrar seu pai, o vereador John Westmoreland, morto na madrugada por um desconhecido. Foi uma cerimônia breve. Ele provavelmente seria o futuro prefeito da cidade se não houvesse sido morto. Francis estava desolado. Após as palavras finais do pastor ele decidiu ir até o gabinete do xerife. Queria maiores informações sobre o caso.

Armstrong Rooker era um velho homem da lei. Xerife há quase 15 anos no lugar. Ele não tinha nada de muito importante para dizer a Francis. O assassinato aconteceu durante a madrugada, não havia nenhuma testemunha dos tiros, ninguém viu o assassino. Era complicado, mas seu inquérito policial estava em um beco sem saída. O que ele poderia dizer é que tudo levava a crer que se tratava de um crime planejado, provavelmente executado por um profissional. Isso era tudo.

Francis não gostou do que ouviu. Ele queria justiça por parte das autoridades, mas se fosse necessário ele faria justiça pelas próprias mãos, outro nome para a conhecida vingança. Ao sair da delegacia se deparou com Billy Joe, o jovem assistente do xerife. Se o velho homem da estrela já estava cansado daquela vida, Joe tinha a vontade dos que estavam começando, dos que queriam subir na carreira. Ele chamou Francis de lado e disse que tinha algumas informações que poderiam lhe interessar.

No dia da morte de seu pai o conhecido pistoleiro Ringo Sinclair havia aparecido por lá. Ele dizia a quem encontrava que estava em Culver City para negociar cabeças de gado. Não convenceu praticamente ninguém. Era um assassino profissional. Claro, não havia nenhuma prova de que ele havia matado o vereador, nisso o xerife tinha razão, porém só a sua presença ali já era sinal de algo estava sendo escondido. Ringo não voltou a ser visto pelas ruas após a morte do vereador. Não havia como ligar seu nome ao crime, mas na falta de pistas aquilo poderia ser um começo. Francis ficou muito interessado em tudo o que ouviu. Eram apenas indícios, mas parecia ser uma boa aposta. Mal ele sabia que aquilo era mesmo um tiro no alvo, certeiro.

Cap. IV - Silver Rock City
Após a morte encomendada, Ringo foi parar em Silver Rock City. Era uma daquelas cidades que surgiam da noite para o dia. Sempre que corria o boato que ouro havia sido descoberto as pessoas corriam para a região e assim essas cidadelas eram erguidas no meio do deserto. No meio da "fauna" que circulava pelas ruas havia muitos mineradores, ladrões, patifes, jogadores profissionais de cartas, pistoleiros e... prostitutas. Ringo estava lá para gastar seu dinheiro com algumas dessas moças de reputação duvidosa. Por 10 dólares você teria a companhia de uma dessas senhoritas. Por 15 dólares um banho era incluído no menu.

Ringo não se relacionava com mulheres, não pelo estilo mais normal de ser. Ele preferia as damas de companhia. Era um jogo honesto de certo modo. Ele pagava as ladys, fazia sexo com elas, recebia um pouco de carinho e quando a noite terminava o contrato estava cumprido. Nada de sermões, cobranças, ameaças, etc. Ringo queria as mulheres para satisfazer seu libido, não para se casar com elas. Ter um filho então... nem pensar! Era a última coisa que ele poderia pensar em fazer. Um assassino profissional tinha como um de seus trunfos a agilidade de se mudar rapidamente de cidade, algo que ele não poderia fazer se fosse um pai de família. Além disso Ringo preferia ter mulheres diferentes a cada lugar que visitava. Sem essa coisa de cultivar valores tradicionais.

Depois da noite de amor comprado, Ringo foi até o saloon. Ele até gostava de beber um bom whisky, mas não era como os demais clientes desses lugares. Jamais bebia a ponto de ficar embriagado. Sabia que sua vida dependia disso. Desconfiado por natureza, sabia que qualquer um naquele ambiente poderia estar ali para matá-lo. Ter disciplina na vida poderia lhe poupar de ser executado quando perdia a razão de seus pensamentos. Bebia, mas com limites claros. O mesmo poderia ser dito em relação ao jogo de cartas. Era um bom carteador, mas nunca perdia o que não poderia perder em uma rodada de jogos de baralho. Se entrava em um saloon sabia exatamente o quanto poderia gastar bebendo e jogando. Nem um centavo de dólar a mais era gasto nessas ocasiões.

Seus únicos gastos mais extravagantes eram usados em armas e cavalos. Ringo tinha um conhecimento de expert no que dizia respeito a armas de fogo. Sabia o calibre de todas, seu funcionamento e as novidades no mercado. Quando descobria que suas armas estavam ficando obsoletas ia até a capital do estado para comprar os mais novos modelos. Não era sábio estar com pistolas e rifles velhos. Afinal seu ofício era matar. Armas nada mais eram que instrumentos de seu trabalho. Também era zeloso no que dizia respeito a cavalos. Ele jamais se afeiçoara a um animal desses. Eram apenas meios de transporte, não seus animais de estimação. Por isso Ringo fazia questão de ter apenas cavalos jovens, fortes e robustos, que aguentassem situações extremas, como atravessar o deserto do Arizona. Um matador que sabia exatamente do que precisava ou não para viver. Esse era Ringo naquela fase de sua vida de pistoleiro.

Cap. V - O Deserto
Um pingo de sangue caiu nas areias escaldantes do deserto. Era dos lábios de Francis McCarthy. O sol era tão forte que havia rachado sua boca. Efeitos de uma insolação, claro. Calor, fome, sede. Só bravos conseguiam fazer aquele tipo de travessia. Era infernal, literalmente falando. Ele estava chegando em Silver Rock City. Segundo informações era ali que encontraria Ringo, o matador de seu pai. Sua vingança estava em curso. Por isso nem se importou pelo fato de que seu cantil também estava seco. Para quem estava no meio de um deserto daqueles era algo para se desesperar, ainda mais com o cavalo exausto, nas últimas. Porém ele logo avistou do alto da montanha as telhas das casas da cidade. Era ali que ele teria chance de sua vingança.

Claro que Francis não poderia simplesmente chegar ali, perguntar por Ringo e puxar seu colt. Não seria sensato. Ainda mais em se tratando de um matador profissional. Ele tinha que ser sagaz. Por isso pensou em um nome falso. Assim que entrasse na cidade as pessoas de lá iriam perguntar seu nome. Ele então pensou em usar o nome de Mike. Mike O´Hara. Afinal ele tinha um pouco de sangue irlandês. Iria colar, Aquele caipiras iriam acreditar.

Assim que entrou na cidade foi direto para o saloon.  Como todo bar de pulgas do velho oeste ali se concentrava todos os tipos de pessoas, desde trabalhadores locais, mineiros em busca do ouro e assassinos profissionais como Ringo. Assim ele entrou no saloon, tirou um pouco de poeira de sua camisa e calças e pediu um whisky. A bebida era a pior possível. Um whisky vagabundo de milho, quente como o inferno. Teor alcoólico absurdo. Ele não iria reclamar porém. Aqueles caras durões que ali estavam, bebiam exatamente isso. Uma palavra mal colocada ali naquele ambiente e todos irian entender que ele vinha do leste. Que era um almofadinha de Nova Iorque ou algo pior. Que não era um cowboy do oeste autêntico. A barba por fazer ajudava na caracterização de alguém que vinha do deserto e que lá vivia.

Ele olhou ao redor e teve uma ideia dos tipos que circulavam por ali. Todos sujos, com péssima aparência, barba de semanas, alguns fedendo. Provavelmente nunca tinham tomado um banho na vida. Fediam a cavalos suados. "Malditos guarniceiros" - pensou Feancis consigo mesmo. 

Ringo estava em uma mesa a poucos metros. Ele estava jogando cartas com um grupo de sujeitos mal encarados. Como Francis iria chegar até ele? Foi então que uma ideia passou pela sua cabeça. Ele estava com uma bela Winchester, rifle de precisão, último modelo. Coisa fina comprada em Nova Iorque. Bom, aquele poderia ser um começo. Ele então virou-se ao balconista e disse:

- Eu tenho uma arma para vender aqui. É um rifle Winchester. Veja, muito nova. Sem arranhões e nem sinais de uso.. Quero vender por 400 dólares.

- Eu não acredito que você vai conseguir vender isso por aqui. A maioria dessas pessoas não teria esse dinheiro...apenas Ringo poderia fazer uma oferta.

- E quem é Ringo? - Francis disfarçado de Mike sabia muito bem quem era Ringo, mas não iria entregar o jogo. Pelo contrário, ele iria jogar, até surgir a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça do assassino de seu pai.

- Aquele cara de casaco cinza e calças pretas é o Ringo! - apontou o barman - Ei Ringo, venha aqui por um minuto...

Ringo olhou com as abas do chapéu abaixadas. O palito de dentes que estava na sua boca deslizou. lentamente, de um lado para o outro. Ele fitou e viu Francis. Não parecia alguém de todo desconhecido. Calmamente alisou o gatilho de seu revólver. Seria alguém atrás de mais um sangrento acerto de contas? Só o tempo iria dizer...

Ringo não havia nascido ontem. Ele sabia que sempre que um desconhecido o procurava, mesmo que parecesse o contrário, ele jamais iria baixar a guarda. Aquele sujeito que estava querendo vender um rifle parecia engomadinho demais para ser um mero vendedor de armas. Ele sabia que algo estava mal contado. Ele sabia que muito provavelmente aquele forasteiro era alguém que vinha em busca de vingança. Sempre haveria uma pessoa em busca de vingança para acertar contas com Ringo. Quantos homens ele já não tinha matado? Esses homens tinham parentes e amigos que mais cedo ou mais tarde iriam cobrar a conta.

Só que Ringo também era ardiloso. Ele não iria deixar passar esse pensamento para o forasteiro. Ele iria fingir que estava tudo certo. Era um teatro marcado e ele iria participar dele como um dos atores. Ele já sabia o final dessa peça. Geralmente acabava com o cano fumegante de uma arma, ou melhor dizendo, de duas. Só que a outra (que ele esprava não ser o seu Colt) estaria nas mãos de um cadáver frio deitado no chão, com a boca cheia de poeira do deserto.

Ringo então mandou o estranho se aproximar. Ele lhe deu o rifle Winchester e ele inspecionou a arma. Aquela era uma boa arma de fogo. Ele tinha interesse. A depender do preço ela seria sua.

- Então forasteiro... o que você quer? - Disse Ringo sem expressar emoções.

- Olá, meu nome é...

- Eu não quero saber seu nome! Eu quero saber seu preço - foi logo cortando o papa furado. Pistoleiros como Ringo não querem perder tempo com falsas cortesias de trato social.

- 400 dólares.. esse é preço.

- Eu acredito que o preço vai dificultar a venda dessa arma nessas pradarias. Não digo que a arma não valha isso. Ela está em ótimas condições, mas... essa é uma terra rude, de homens brutos. Mineradores, bandoleiros, vagabundos e pistoleiros. Não acredito que você vai vender - Ringo terminou a frase tomando mais um gole daquele whisky pegando fogo pelo clima árido do deserto...

- Bom, faça sua oferta - desafiou o forasteiro sem nome para Ringo.

- Eu posso dar 240 dólares por ela...

- É muito pouco...

- 260... minha última cartada - disse Ringo.

- Olha, é um pouco baixo, mas estou precisando mesmo de dinheiro, então...

Nem houve tempo para terminar a frase. Ringo jogou os 260 dólares sobre a mesa, sem falar mais nada. Ele apenas olhou para o Winchester, se levantou e se dirigiu para a porta. Havia sido uma pechincha. Aquele rifle certamente iria lhe ajudar nos próximos "serviços". Ele já estava mesmo de partida para a próxima cidade onde mandaria mais um alvo para o fundo de uma cova rasa e quente.

Ele montou em seu cavalo e sem olhar para trás começou a cavalgada para fora da cidade. O forasteiro foi para a porta do saloon e ficou observando enquanto seu perfil contra o sol foi desaparecendo no horizonte. Esse foi um primeiro contato, a primeira vez que ele encontrava Ringo. Na próxima vez ele estaria pronto para algo mais sério...

Cap. VI - O Acerto de Contas
Chacais do deserto são animais perigosos. Ele rondam sua presa por horas, algumas vezes por dias, para depois dar o ataque final. Ringo cavalgando pelo deserto logo percebeu que estava sendo seguido por um chacal. Não o animal, que ele às vezes matava nessas jornadas, mas sim pelo forasteiro que havia lhe vendido o rifle Winchester. Agora não havia mais dúvidas. Aquele sujeito estava lhe perseguindo. Ringo percebeu, pelo canto do olho, sem demonstrar que o tinha visto, que o tal chacal de duas pernas não era lá muito experiente nesse tipo de perseguição. Ele ficava perto demais da sua presa. Tão perto que acabava sendo descoberto.

Ringo parou e desceu de seu cavalo. Já era cinco da tarde. Ele fingiu que iria começar a procurar galhos e gravetos para fazer uma fogueira. Era uma encenação. Ringo na verdade estava providenciando uma armadilha. Ele iria dar a entender a seu perseguidor do deserto que ele estava calmamente descansando. Iria até mesmo fingir estar dormindo. Quando seu algoz surgisse, seria o seu fim.

E assim foi. Anoiteceu e Ringo comeu um pouco e ficou ali ao lado da fogueira, completamente sozinho. Suas armas estavam todas à mão, engatilhadas, mas parecia que Ringo estava despreocupado, aproveitando sua caça. Então ele ouviu um pequeno ruído. Era nitidamente alguém se aproximando. Ringo havia arrumado um lugar para pular, um ponto cego no meio da escuridão, assim que o forasteiro se aproximasse. Quando ele viu que o sujeito estava próximo demais, ele pegou seu copo de café e foi se afastando lentamente da luz do fogo. E então, como havia planejado, desapareceu na escuridão.

Quando o sujeito chegou na fogueira, com a arma em punho, não encontrou mais Ringo. Ele estava atrás dele, já com o rifle apontado para sua cabeça. Assassinos profissionais sabem destrinchar situações perigosas como essa. Então o forasteiro sentiu o cano do rifle Winchester de Ringo contra sua cabeça.

- Levante as mãos após jogar seu revólver no chão... - Ordenou Ringo, já com o controle da situação.

- Calma, eu...

- Agora! Jogue a arma no chão, caso contrário vou estourar seus miolos nos próximos segundos...

Não havia como reagir. Ele estava completamente rendido. Então jogou a arma fora. Que situação! Desarmado e à mercê de um matador. Francis McCarthy jamais poderia imaginar que seus planos fossem dar dão errado. O velho oeste tinha suas próprias artimanhas, que ele seguramente não conhecia. Ringo pegou a arma de Francis. Depois mandou ele se virar de costas.

- Espere, não me mate! Está havendo um erro... - Nitidamente ficou com medo de levar um tiro pelas costas.

- Cale-se! Só fale quando eu perguntar algo. Sua vida agora está em minhas mãos. - Bom, se havia uma verdade, era essa. Realmente Ringo poderia acabar com a vida dele quando bem entendesse. Porém Ringo também era um profissional frio em busca de respostas. E ele as teria ali, pelo bem ou pelo mal.

 - Ok, comece a falar! Quem é você? De onde me conhece?

- Eu nunca ouvi falar de você...

Ringo não hesitou e deu um tiro certeiro no joelho do forasteiro. Um grito foi ouvido ao longe. Ele caiu ao chão.

- Ok, seu idiota. O próximo tiro pode pegar uma artéria! E você morrerá, com absoluta certeza.

- Eu já lhe disse, eu não te conheço - o sangue misturado ao suor lhe deu uma palpitação no coração que Francis jamais poderia imaginar... ele sentia que seu fim estava próximo.

- Não, tudo bem... - Ele levantou a mão ao perceber que Ringo engatilhava seu Colt.

- Eu sou filho de um homem que você matou...

- Quem era esse homem?

- Um político de... - Ele não precisou terminar a frase, Ringo sabia de quem se tratava...

- Olha, eu faço meu serviço. Nada pessoal. Você deveria procurar o cliente que me contratou. Eu sou apenas a mão que puxa o gatilho. O verdadeiro assassino de seu pai é outra pessoa... - Assim, de forma bem estranha, Ringo via seu "ofício" de matar.

- Seu desgraçado... você matou meu pai... desgraça...

Não houve tempo para terminar a frase. Ringo acertou um tiro certeiro na cabeça de Francis. Ele caiu pesadamente na areia do deserto e deu seu últimos suspiro... estava morto!

Ringo olhou a cena. Colocou seu revólver de volta ao seu cinturão. Aquele tipo de coisa não o agradava. Era um efeito colateral de ser um matador profissional. Algumas vezes pessoas surgiam para uma vingança. Ringo não se abalava, estava preparado sempre para esse tipo de situação. Ele parou por alguns segundos diante do cadáver de Francis, pegou um pouco de areia e jogou por cima de seu rosto, tal como se fosse uma espécie de funeral improvisado no meio do deserto.

O corpo de Francis ficaria ali para sempre. Em pouco tempo começaria a servir de alimento para os animais da região, para os abutres. Seria encontrado algum dia? Naquele meio do nada, dificilmente. Seria dado como desaparecido. Jamais seria encontrado. O deserto seria seu lar de repouso eterno.

Pablo Aluísio.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Os Fantasmas da Velha Mansão

Cap. I - A Velha Mansão
Fouilland House era uma velha mansão. No passado foi palco de grandes festas, grandes recepções. Ali visitava a fina flor da elite da sociedade local. Todos os fins de semana eram arranjados glamorosos jantares a luz de velas. Esse tempo foi chamado posteriormente de "A Era Vitoriana", uma referência clara à Rainha Vitória da Inglaterra. Foi o momento de auge do império britânico. Dizia-se que o sol nunca se punha nesse vasto e complexo império. Com a exploração de tantas colônias o luxo e a riqueza explodiram na ilha. A classe média ficou mais próspera e rica do que toda a Europa continental. E os nobres, que já eram ricos por direito de nascimento, se tornaram ainda mais ricos.

Proliferaram grandes mansões, principalmente em regiões mais distantes de Londres. Era uma nova visão do antigo feudalismo europeu, só que nesse novo modelo não havia mais servos e sim empregados. Fouilland House foi construído pelo quinto Conde de Harfax. Homem rico, culto, mas também considerado um pouco estranho dentro da nobreza inglesa. Seu pai era um homem severo que tolheu todos os talentos artísticos do filho. O rapaz queria ser escritor, poeta, um homem que queria se dedicar ao mundo da literatura. Seu pai, nobre de velha linhagem, não via isso com bons olhos. Queria um herdeiro frio, que tivesse a postura adequada para levar o patrimônio familiar até a próxima geração.

Ele se curvou aos anseios do pai. Se formou em direito, virou advogado. Ao invés de ler romances, passou a estudar a lei do império. Era dedicação para toda uma vida, já que o direito inglês, muito pautado pela jurisprudência, exigia um comportamento de "eterno estudante", fazendo com que o profissional se dedicasse sempre com as novas decisões dos tribunais. Nada mais óbvio para um povo que sequer tinha uma constituição escrita. Ela existia claro, mas dispersa entre o ordenamento jurídico.

O interessante é que Charles,  o filho do conde, começou a se interessar por ocultismo. Ele era oficialmente um devoto membro da igreja Anglicana, mas isso era obviamente uma fachada para a sociedade. No isolamento de seu quarto ele colecionava livros de magia negra, invocação a mortos, bruxaria, malefícios. Gostava muito da história da inquisição, das bruxas sendo queimadas em fogueiras, dos assassinatos em massa. Tinha real interesse pela história macabra dos assassinos seriais. Tinha também uma das melhores e mais vastas coleções de livros sobre vampirismo, ao qual se deleitava. Quando seu pai finalmente morreu ele ficou finalmente livre para ler todas aquelas obras sem ter medo de ser pego em flagrante. Um novo momento de sua vida finalmente havia começado.

Cap. II - A família Smith
A família Smith finalmente havia comprado a casa. Era um velho casarão, mas propenso a sofrer as reformas necessárias, se tornando de novo um lar familiar. Era janeiro de 1982 e eles agora se mudavam para aquela casa. No passado havia sido parte da moradia de uma família de aristocratas, mas depois que alguns eventos trágicos tinham acontecido por lá, a casa teria ficado abandonada por décadas. Até que uma empresa especializada no ramo imobiliário decidiu comprar o terreno. Parte da velha mansão foi colocada abaixo e no lugar ergueu-se uma nova casa, com estrutura moderna, planejada por arquitetos.

O preço da propriedade seria o equivalente a um terço de seu valor normal. E o que fazia com que essa casa tivesse o preço tão reduzido? No passado distante, lá por volta do século XIX, um homem da nobreza havia matado seus dois filhos e sua esposa. Depois teria se enforcado numa árvore da propriedade. Isso sempre jogava o preço de qualquer imóvel para baixo. A casa passava a ser dita como amaldiçoada, ninguém mais iria querer morar em um lugar assim. Além disso os próprios moradores locais tratavam de manter a trágica história em pé, sempre contando para os que forasteiros que mostravam interesse naquela mansão.

Isso porém foi há décadas e décadas. Os moradores que presenciaram tudo já tinham morrido há muitos anos. A história da chacina caiu no esquecimento, a não ser por historiadores daquela cidade. E como todos sabemos no capitalismo a roda não pode parar de girar. Por isso assim que tudo foi devidamente esquecido, a propriedade foi adquirida, reformada e colocada para venda. E depois de alguns meses sendo publicada seu anúncio finalmente a família Smith decidiu comprar o lugar.

Era uma família de pessoas formadas, com curso superior. O pai era um advogado respeitado em Londres. O filho cursava direito. A irmã era estudante de medicina e a mãe tinha curso superior de letras em Oxford. Pessoas do mais alto gabarito. Não iriam se amedontrar por velhas histórias de fantasmas. Aquilo era pura crendice. Claro, eles foram informados do passado da casa. Havia uma lei em vigor que obrigava os corretores a informar sobre esse tipo de passado ruim das casas que estavam vendendo. Para a família Smith tudo isso não passava de uma piada que eles podiam contar nos almoços de domingo.

Cap. III - Culto ao Demônio
Existem pessoas que querem mesmo chafurdar na lama. Querem mesmo dançar com o diabo ao luar. Charles era uma dessas criaturas. Ele tinha um irmão com conhecimento em teologia católica. Ao saber que Charles e sua esposa estavam se aprofundando ainda mais em práticas de ocultismo, ele foi aconselhado a largar tudo. Que aqueles supostos espíritos que ele entrava em contato nada mais eram do que demônios, filhos da mentira, se fazendo passar por parentes e conhecidos falecidos. Ele sabia, ele foi alertado. Porém ele tinha uma índole de gente ruim, queria mesmo fazer amor com o próprio diabo nas profundezas do inferno.

Charles tinha uma personalidade enganadora. Em presença ele passava a imagem de homem bom e cordial. Mas isso era uma fachada enganosa. Charles era ambicioso e mau caráter. Ele havia se casado com uma mulher mais rica, para ficar ainda mais dono de riquezas. Era um sujeito egoísta, que só pensava nele mesmo. Quando foi procurado por um parente em dificuldades, que estava desempregado, negou ajudá-lo. Nem sequer inventou uma desculpa, simplesmente disse não! Já era, em essência, um servo do rei dos infernos. Ele também tinha inveja dos outros que se davam melhor do que ele. Muitas vezes vivia de aparências. Tinha várias carruagens de luxo, mas com o passar do tempo foi ficando cada vez mais pobre, perdendo o dinheiro até mesmo para colocar comida na mesa.

O fato é que depois que passou a enveredar pela comunicação com mortos, sua vida declinou. Seus sogros, que lhe dava muito apoio financeiro, morreram. A mulher não herdou nada de muito valor. Ela também era fútil e se envolveu com ocultismo. Tinha sonos noturnos com seres de outro mundo e recebia ordens deles. Concordava com tudo. Colocou os dois filhos no ocultismo. A filha mais velha era obesa e infeliz, com sinais de que era retardada mental. O filho mais novo pensava ser o que não era. Vivia ao lado de jovens ricos, mas ao contrário deles, sua fortuna já não mais existia. Era um pobre pensando ser um nobre rico.

Como o tio havia advertido que eles não deveriam se envolver com ocultismo, todos ficaram com raiva dele. As almas daquela família estavam condenadas, a não ser que deixassem essas práticas de lado. A filha obesa de Charles era uma das piores. Ela passou a ensinar bruxaria para crianças e a ter um caso com um empregado do pai. Com mais de 30 anos estava desesperada para se casar com qualquer um. Queria ter um filho para levar adiante a bestialidade daquela família suja espiritualmente.

A velha mansão que moravam ia se deteriorada com o tempo. Eles não tinham mais dinheiro para o luxo e suntuosidade. O clima dentro da velha mansão era decadente e cheirava a mofo. As paredes tinham infiltrações. Charles vivia cada vez mais com a mente no mundo da lua. Vivia lendo sobre espiritismo, bruxaria, ocultismo. Tão absorvido ficou com aquilo tudo que deixou a sua vida profissional de lado.

Ele passou a adorar um demônio conhecido como Asmodeus. Era um antigo demônio do judaísmo, citado no livro de Tobias. Esse ser era considerado um dos sétimos príncipes do inferno, abaixo apenas de Lúcifer. Segundo a teologia sua origem remonta ao mito de Sodoma. Teria sido ele um homem devasso, impuro, tão depravado que foi considerado o mais imundo de todos os seres humanos. Por isso era considerado o pai da luxúria. E era essa figura da mitologia judaíca, da demonologia, que Charles queria trazer de volta ao nosso mundo. Ele criou um altar e montou uma sala apenas para orgias e depravações em seu nome. O satanismo começava a reinar forte naquela casa.

Cap. IV - O Padre McKenzie
O Padre Paul McKenzie era adorada naquela cidade. Ele era reconhecidamente um bom homem. Havia ingressado na Igreja há pouco mais de 10 anos. Foi uma vocação tardia. Agora, aos 46 anos de idade, ele prestava assistência religiosa a pessoas em aflição. Era um homem tão generoso que nunca perguntava qual era a religião das pessoas que procuravam por sua ajuda. Não precisavam ser católicas. Nem ao menos era requisito serem cristãs. A qualquer um fazia caridade, sem pedir identidade. Sua vida se resumia a fazer o bem, desde o momento em que acordava até a hora em que ia dormir tarde da noite. Um homem valoroso.

Paul era de família de classe média baixa. O pai tinha sido cozinheiro. Ele estudou com afinco na juventude e conseguiu entrar em uma das mais conceituadas universidades jurídicas de seu país. Formou-se, tornou-se advogado e depois de alguns anos decidiu que iria entrar no seminário. Mesmo fora da idade certa foi aceito. Afinal a Igreja Católico vem sofrendo há anos com a falta de interessados em exercer o sacerdócio. Os votos de se tornar celibatário sempre pesaram contra nessa hora. Como ele não tinha mais nenhum interesse em se casar e formar família, naquela altura de sua vida, decidiu se dedicar à vida religiosa. Foi uma decisão que deixou muitos de seus conhecidos bem admirados. E depois de alguns anos de estudos - ele sempre se deu bem com estudos - finalmente se tornou padre.

O que poucos sabiam é que o pacato e provinciano Paul McKenzie era também um padre exorcista. Um dos poucos formados dentro do Vaticano. Um homem preparado para enfrentar casos de possessão demôniaca. Por anos ele vinha se dedicando a estudar demonologia, orações de libertação e todo o currículo que vinha em reboque. Como havia poucos padres especializados em exorcismo ele tinha que viajar com frequência. Sempre havia telefonemas do Vaticano para que ele seguisse para determinada cidadezinha para exorcizar alguma pessoa oprimida pelas forças das trevas.

E ele só podia agir com a autorização da cúpula da Igreja. Jamais poderia usar de seus conhecimentos para qualquer um. O Vaticano mantinha rígida disciplina sobre isso. Por isso ele sabia que quando o telefone tocava já havia sido feita toda uma investigação no caso que iria atuar. Sabia que todos os chamados eram pra valer. Ele devia estar sempre preparado. No momento ele estava empenhado no longo e penoso exorcismo de uma velha freira. Ele vinha sofrendo muito com os anos. Dona de uma alma caridosa e bondosa, virou alvo do Diabo justamente por isso. E o demônio a afligia com regularidade. Todas as semanas era necessário uma nova rodada de orações de libertação. Havia uma legião de demônios atormentando aquela pobre mulher.

E quando o telefone novamente tocou em sua casa ele foi atender, sabendo que era mais um chamado desse tipo. O monsenhor Winston lhe deu as informações básicas. Era o caso de uma família que havia comprado uma casa. Embora tivessem origens católicas, os membros daquela família não eram praticantes. Eram pessoas bem situadas, com formação universitária, que se vinham atormentadas por situações e eventos inexplicáveis. Após a mulher ver um vulto sombrio no porão, uma sombra que falou com ela e se apresentou como um seguidor das trevas, eles viram que era necessário a presença de um padre ali na casa, nem que fosse para fazer uma oração de purificação. O Padre McKenzie ouviu tudo, pegou seu velho chapéu preto, sua bengala e entrou em seu carro antigo. Seria uma viagem de 2 horas até a casa da família. Ele colocou seu exemplar do novo testamento no banco ao lado, seu crucifixo, um antigo texto de orações do Vaticano, ligou o carro e seguiu rumo ao desconhecido.

Cap. V - Nem todos os fantasmas são felizes...
O padre chegou na velha mansão por volta das 17 horas. Tempo ruim, nublado, como se o mundo tivesse perdido a esperança. Ele desceu do carro e começou a subir as escadas de velhas madeiras da porta da frente. A madeira centenária do piso rangeu em agonia. Tentou tocar a campainha, mas sem sucesso. Muito provavelmente estava quebrada há anos. Sem saída, bateu palmas, como se estivesse aplaudindo o nada absoluto. O sr. Smith atendeu a porta e mandou o padre gentilmente entrar em sua casa. O diálogo começou após ambos se sentarem na mesa de madeira da sala de jantar. O sr. Smith fumava um elegante cachimbo, no melhor estilo Sherlock Holmes.

- Antes de mais nada, obrigado por vir! - Abriu a amigável conversação o anfitrião.

- Eu que agradeço a hospitalidade - respondeu o padre.

- Pois então, estamos com esses problemas. Penso ser alguma manifestação sobrenatural... embora, padre, devo ser sincero com você. Não acredito em fadas, duendes, bruxas e nem em Deus...

- Entendo...

- Mas como homem culto que modestamente sou, fica aberto a todas as possibilidades, inclusive envolvendo velhas histórias de fantasmas...

O padre se mexeu um pouco em sua cadeira e frisou, com as mãos...

- Não acredito que seja a manifestação de um fantasma.

- Por que não?

- Fantasmas segundo a doutrina religiosa que sigo são almas perdidas de seres humanos que um dia viveram. Após a morte ficam perdidas, vagando solitariamente pelo mundo, procurando um sentido para a existência. Geralmente procuram comunicação pois vivem em sombras solitárias, mas não são seres perversos e nem necessariamente querem o mal das pessoas vivas...

- Pelo visto então os fantasmas nem sempre são felizes... - Foi um comentário um tanto sarcástico do sr. Smith.

O padre ignorou a ironia desnecessária.

- Se não são fantasmas, o que seriam? - Perguntou o sr. Smith enquanto dava uma nova tragada de fumaça em seu charuto.

- Penso que são o que as pessoas costumam chamar de demônios, diabos...

- Nossa! - o Sr. Smith realmente ficou surpreso com aquele comentário.

- Demônios e diabos nunca tiveram existência física. São seres espirituais desde sempre e sempre serão. Estão condenados eternamente... são anjos caídos. Veja, em antigos escritos judaicos há expressa menção ao fato de que um terço dos anjos de Deus foram expulsos do céu e caíram em desgraça. Estão condenados eternamente ao inferno.

- Interessante... interessante... aprecio mitologias de povos antigos - observou Smith.

- Devo dizer que tudo isso não é apenas mitologia, mas fatos reais. O mundo espiritual está entre nós, ao nosso redor. E de tempos em tempos a fronteira é rompida e anjos decaídos começam a agir para destruir a humanidade, ou pelo menos, alguns homens...

- E como se dá essa travessia? - Quis saber Smith, cada vez mais curioso.

- Essas entidades precisam de um chamado de nosso mundo. Geralmente sessões de espiritismo, evocação dos mortos, magia negra, feitiçaria, bruxaria, rituais que evocam o lado sombrio do mundo espiritual. Até mesmo um velho tabuleiro Ouija pode abrir esse tipo de portal.  - Completou o padre.

- Pois muito bem, padre. Eu quero que tudo o que estranho aconteça em minha casa seja parado. Não me importo com explicações teológicas e nem mitologia. Como já lhe expliquei pouco acredito que haja algo de concreto nessas histórias, embora respeite muito o fator histórico cultural envolvido nessas narrativas. Quero que tudo chegue ao fim e vou colaborar muito para que isso seja feito. Pode contar com o meu irrestrito apoio. O mesmo se refere aos meus demais familiares.

- Muito bom - disse o padre - Vamos começar amanhã. Farei um ritual de libertação da casa, para que essas energias negativas partam para sempre.

- É exatamente isso que desejo, padre.

Após o breve e amigável encontro o padre deixou a velha mansão para passar a noite em um hotel da região. No dia seguinte ele teria trabalho pesado para fazer. Todos os rituais exigiam muito do sacerdote, sejam de natureza física ou psicológica.

Cap. VI - O relatório ao Vaticano
O texto que segue foi retirado do relatório escrito pelo Padre McKenzie enviado para o Vaticano. Um relatório de um exorcista para a alta cúpula da Igreja Católica em Roma. "As pessoas ainda insistem em cruzar certas linhas. Elas ainda fazem chacota da palavra de Deus. Ignoram as escrituras. Invocam os mortos, os espíritos que vivem nas trevas. Nossa escritura tem a resposta para tudo. Nela se podem ler: Entre ti não se achará quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; Nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os mortos; Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao Senhor; e por estas abominações o Senhor teu Deus os lança fora de diante de ti. Deuteronômio 18:10-12

Ignoram completamente os ensinos e continuam a realizar sessões de espiritismo, a invocar mortos, a trazer demônios para suas vidas. É triste, mas o homem quer mesmo trazer esse tipo de abominação para si. Muito triste. No caso tive contato com essa família Smith. Não foram eles os invocadores, mas sim outras pessoas que viveram naquela velha casa, em um passado imemorial. Agora a imundície que foi invocado aporcalha todo o ambiente.

O antigo morador, homem rico e envolvido com magia negra e ocultismos, abriu um portal com os sete portões do inferno. E de lá subiram entidades demoníacas. Consegui com rituais de oração expulsar aqueles espíritos. Porém o mais importante é o psicológico daqueles que moram ali. Espíritos malignos se alimentam de coisas ruins. Pessoas que vivem brigando, pessoas que vivem se agredindo, que blasfemam ódio para com os outros, além de outros sentimentos negativos, sempre atraem esse tipo de energia do Hades. Energias negativas atraem energias negativas no mundo espiritual.

Por isso temos o poder da oração. A oração é algo sublime, que eleva o coração dos homens a Deus. E onde há Deus, há luz, há energia positiva. A luz espanta as trevas, a luz afugenta o maligno. A luz é Deus e Deus é a luz. O diabo vive nas profundezas da escuridão, sendo remoído pelo ódio a Deus. Com a oração ele vai embora, sai do ambiente. Além de Jesus divino também citei Maria santíssima. Só o pensamento em nossa mãe já afugenta completamente o diabo. Ele tem pavor do poder da mãe de Deus. Poder positivo, de luz, de fé e esperança. Com isso, com o poder da oração, dos bons sentimentos, da riqueza do amor de Deus, declaro aquele ambiente limpo e seguro para aquela família. Com o poder de Deus ao seu lado, nenhum poder lhe fará mal. Essa é a grande lição desse caso. Deus é aquele que é, e que tudo pode, na graça de seu poder e amor infinitos". Ass. Padre Paul McKenzie. 

Cap. VII - Sedutores Diabos
"Vai se masturbar padre? Vai se masturbar padre?" - O Padre McKenzie acordou de súbito! Ele havia tido um pesadelo, mas um pesadelo diferente. Sonhava com a garota que havia amado na adolescência, a bela e inesquecível Sunny. Antes de entrar para o seminário, muitas décadas no passado, o padre teve um caso de amor com Sunny, 16 anos, loirinha, bonita de corpo, uma formosura de adolescente. De todos os pecados do passado esse era o mais persistente. Depois que havia voltado do exorcismo da velha mansão, esses pesadelos nunca mais o havia deixado. Era sempre Sunny, linda como nunca, com seus cabelos loiros e lindos olhos azuis. Ela aparecia andando de bicicleta. Parava para conversar com ele. Parecia uma jovem menina que descobrira o sentido de seu feminilidade.

Depois de uma conversa quase sempre banal, típica de dois adolescentes (o padre se via nesses sonhos também como um adolescente), ela soltava uma série insistente de perguntas de baixo nível, putaria mesmo... e os sonhos que pareciam romances idealizados de um passado perdido, viravam roteiros de filmes pornôs insanos, onde Sunny sempre procurava lhe humilhar, usando para isso sua vida privada, sua vida sexual interior. Padres são homens e como tais também apresentam desejo sexual. Na mente muitos deles criam símbolos de mulheres ideais. No caso do padre McKenzie essa mulher idealizada era a sua namoradinha da adolescência, a Sunny. Ela parecia rir dele, de suas escolhas, de sua castidade. Nesse último pesadelo ela surgia desafiante, perguntando se o padre andava se masturbando com frequência... puro terror para um homem de batina.

Aquilo não parecia ser algo natural. Essa Sunny de seus pesadelos não parecia ser a mesma Sunny de seu passado. Tinha o mesmo rosto lindo, os mesmos cabelos dourados, até mesmo a mesma grande língua que despertava nele os mais inconfessáveis sonhos eróticos, mas ao mesmo tempo ele sentia que aquela alma não tinha nada a ver com Sunny. Parecia ser algo obscuro, que no fundo queria o seu mal, acima de todas as outras coisas. Foi então que o padre percebeu tudo o que estava acontecendo de verdade.

A entidade do mal que havia possuído aquela velha mansão tinha seguido ao seu lado quando voltou para casa. Essa entidade de trevas estava agora assombrando seus sonhos, transformando tudo em pesadelo. Era algo perigoso. O fato de usar Sunny para causar esse mal estar em sua mente significava que o demônio havia entrado nos lugares mais escuros e fechados de seus pensamentos. Obviamente o diabo estava procurando suas fraquezas. Aquele exorcismo não iria sair barato, a entidade das trevas iria cobrar seu preço, procurar por vingança. E para isso iria usar os labirintos mais escondidos de sua mente, de suas emoções, de seu eu interior.

Consultando seu velho livro de demonologia na biblioteca de seu escritório, o padre McKenzie viu as características daquele demônio que ele havia enfrentado. Tratava-se de uma entidade milenar mais conhecida como Asmodeus, Esse era um dos sete príncipes do inferno, logo abaixo do imperador Lúcifer. Ele era associado ao pecado da luxúria. Isso explicava o uso de Sunny como elemento desestabilizador de seus sonhos. O uso da mulher tão amada no passado, tão desejado, do amor não consumido, do sexo nunca praticado. Era de se esperar que essa fosse uma arma nas mãos desse ser da nobreza dos porões infernais.

Consultando as informações no velho livro o padre leu que esse diabo "era normalmente representado com asas e três cabeças: uma de homem com hálito de fogo, uma de touro e uma de carneiro, símbolos de virilidade e fertilidade. Asmodeus como o "Rei Esquecido de Sodoma". Que informação chocante! O anjo caído da perversão, da sodomia, da cria de prostitutas, agora sondava sua mente, não o deixando dormir em paz. O padre parou, refletiu um pouco e analisou a situação. Percebeu que era uma entidade diabólica do Talmud, das escrituras originais do povo judeu. E que para isso precisava ter uma conversa com um especialista sobre isso. E o nome do rabino Jacob logo lhe veio à mente. Era um velho amigo, de longas conversas, muitas delas espirituosas e inteligentes. Decidiu que naquela tarde iria reencontrar seu velho amigo. Queria saber mais sobre esse inimigo que agora parecia estar debaixo de seu mesmo teto. 

Cap. VIII - O Padre e o Rabino
O Padre McKenzie foi recebido com alegria pelo rabino Jacob. Eles não se encontravam há alguns meses. Pessoas cultas e educadas, não compartilhavam das mesmas crenças, mas se respeitavam demais. E se gostavam como pessoas, acima de tudo. O rabino serviu um chá brasileiro ao padre. Sabor essencial. Então sentados confortavelmente em cadeiras de balanço, começaram um interessante diálogo. O padre já havia antecipado o teor da conversa, o que fez o rabino começar a expor seu ponto de vista.

O velho religioso disse: "Essas entidades espirituais são conhecidas há milênios pelo judaísmo. São seres que se alimentam de ódio, inveja, ganância, luxúria desvirtuada. No fundo são seres perdidos, que vagam pelo mundo. No judaísmo clássico qualquer tentativa de se comunicar com esses seres era absolutamente proibida. O ser espiritual que vaga tentando fazer o mal só espera por uma porta aberta. E quem iria abrir essa porta? Ora, exatamente aquele que invoca os mortos, os seres de outros mundos". O padre McKenzie concordou com tudo, ouvindo atentamente, fazendo gestos positivos com sua cabeça.

O  rabino Jacob continuou: "Hoje em dia existe esse tal de espiritismo. É um perigo! Ao invocar pessoas que já morreram, você cruza uma fronteira que é considerado um ato de abominação perante Deus. Quem cruza esse muro que separa o mundo dos vivos e dos mortos, comete abominação. E quando isso acontece Deus retira a proteção espiritual para essas pessoas que querem esse contato proibido. Digo que nenhum parente morto vai aparecer. O que aparece são diabos. Eles passeiam pelo mundo dos vivos, mas as portas ficam fechadas. Quando uma sessão de espiritismo é feita, então temos alguém abrindo essa porta. O diabo então entra pela porta. Aqueles que abriram isso estarão à sua mercê. Ele fará o que quiser com essas pessoas".

- Sabe rabino, foi justamente esse o caso. Uma velha casa, que havia sido moradia de um ocultista...

- Que hoje está queimando no inferno... - Completou o rabino.

- Sim, certamente. O que digo é que essa entidade atravessou o muro e não quer mais voltar, não quer mais retornar ao Hades...

- Querido padre, ele voltará. De uma, porque é um ser que não pode se antagonizar ao poder de Deus. De duas, porque nem você e nem os moradores da velha mansão fizeram o ritual de invocação. Ele precisa ser jogado de volta para as chamas eternas... - Disse o rabino, com o dedo em riste.

- Posso contar com sua ajuda, Jacob?

- Certamente que sim - disse o rabino, estendendo sua mão, para um aberto de mãos sincero e forte. Um judeu ortodoxo e um cristão romano católico, iriam unir forças para mandar uma velha entidade do mal de volta para o lugar de que nunca deveria ter saído. 

Cap. IX - O Anjo do Inferno
O Padre e o Rabino viajaram até Salem, uma velha cidade praticamente abandonada por seus moradores. Ali só viviam velhos, idosos e pessoas sem esperança. Porém havia uma razão para os dois religiosos irem até lá. Naquela cidade perdida e esquecida pelos homens, havia forte energia sobrenatural. Ali no passado havia existido uma sinagoga muito sagrada para os judeus. Escavações arqueológicas a tinham descoberto há mais de 40 anos. O piso que os dois religiosos agora pisavam era o mesmo de milênios do passado. Era um lugar ideal para invocação das forças do bem.

O Padre McKenzie e seu amigo Rabino sentaram-se nos chão e deram-se as mãos. O rabino começou sua recitação do Torá, enquanto o padre recitava, também baixinho, sua oração da libertação. Assim que começou a falar as suas palavras sagradas, o Padre percebeu que eles não estavam sós. Uma estranha figura, de uma mulher com roupas brancas, começou a circular ao redor deles. Era uma mulher sem dúvida bela e sensual, uma verdadeira tentação. E ela ou seja lá o que fosse aquilo, certamente vinha para destruir aqueles rituais.

Aquela visão começou a tirar a roupa. Certamente era um demônio de eras primevas. Uma entidade do mal. O rabino também a viu, de relance. E ela foi tirando cada peça de roupa, uma vestimenta que lembrava as antigas romanas, as vestais dos templos. Era obviamente uma manifestação do diabo, ali, ás vistas deles, com claras intenções de trucidar aqueles dois homens honestos, religiosos e puros de coração.

O demônio então falou pela primeira vez, em hebraico antigo: "מה אתה רוצה זקנים?" - que significava: "O que vocês querem, homens velhos?"

O cheiro foi ficando insuportável, com enxofre queimando as narinas dos homens que rezavam. O ar era tão tenso que poderia se cortar o clima de opressão que pairava com uma faca! O Padre e o Rabino não deram atenção. Uma das coisas mais importantes era evitar falar com o demônio. A razão? Ele era o pai da mentira, iria sempre mentir, iria sempre enganar. Era necessário fingir que não o ouvia.

O diabo porém insistia. Agora completamente nu, em belo e formoso corpo feminino ele falou mais uma vez: האם אתה חושב שאלוהים יגן עליך? אלוהים מת, אומללים! זה לא יופיע. הוא ישות שלא דואגת מעט לכולכם, תולעים, בני אדם ארורים.

A tradução da voz do diabo: "Pensam que Deus vai lhes proteger? Deus está morto, seus infelizes! Ele não vai aparecer. Ele é um ser que pouco liga para todos vocês, vermes, humanos malditos. "

O padre percebeu no canto do olho que o demônio agora exibia enormes asas. Era um anjo... um anjo do inferno...

Cap. X - Gabriel
O Padre McKenzie e o rabino Jacob continuavam a rezar enquanto a personificação concreta do diabo continuava a falar ofensas a Deus e aos homens de fé. Ele estava encarnado no corpo de uma bela mulher, mas todos os gestos, todos os atos eram grotescos, vulgares, infames. O cheiro também era insuportável, como carne em decomposição. Conforme a sessão ia seguindo em frente começaram as manifestações físicas de sua presença. O chão começou a tremer, o padre começou a ficar sem ar, sentindo-se sufocado. O rabino Jacob foi jogado com violência contra a parede, por uma força desconhecida, o inferno parecia estar presente...

- Vem me comer Padre maldito... - gritava o demônio - ou me come ou então eu vou te matar sufocado, seu desgraçado, quero ver você renunciar a Deus... seu porco, ser ridículo, minúsculo, ser imundo... - As palavras ganhavam um tom sinistro porque aos ouvidos humanos parecia haver mais de uma entidade falando e não apenas uma. Era a legião se manifestando. Nesse momento as asas de ser das trevas começaram a ficar escuras, pretas... e a escuridão de uma noite profunda começou a tomar conta de tudo. A esperança parecia não ter mais presença... tanto o padre como o rabino achavam que iriam morrer ali mesmo, caídos no chão, sufocados e machucados... foi então que...

Um grande estrondo foi ouvido... uma enorme ventania, maior ainda que a anterior, começou a cobrir tudo. O diabo foi jogado ao chão com essa baforada de luzes que pareciam descer dos céus... O padre McKenzie tentava olhar em direção àquela luz, mas era tão forte como a luz do sol... algo muito importante começava a se manifestar naquele lugar... só que ao contrário das trevas, se via luz... luz celestial em abundância...

Mesmo caído com as mãos na frente dos olhos, McKenzie sentiu que estava na presença de um anjo de luz. A imagem agora se formava perante seus olhos. Era um jovem bonito, cabelos loiros encaracolados, físico maravilhoso, jovial e musculoso. Ele ostentava uma armadura que parecia ter vindo da Grécia antiga... era um traje de guerreiro... Também apresentava enormes asas brancas, dignas de um arcanjo... O padre não se conteve e gritou...

- É Gabriel, é o arcanjo Gabriel...

Jacob olhou e se assustou com o que viu... sim, a descrição era mesmo a de um anjo do Senhor. Era o arcanjo Gabriel que se manifestava ali, perante seus olhos mortais.

O anjo Gabriel então tirou uma enorme lança dourada, de um amarelo puro que nenhum outro ser humano jamais poderia ter visto. Ele foi certeiro, transpassando sua lança romana no coração do diabo que perdia totalmente sua imagem anterior. Ao invés da bela mulher, surgia agora toda a sua feiúra intrínseca, chifres, deformidades, um bode asqueroso...

- Não... não... eu não quero voltar.... eu não quero voltar - gritava o demônio já completamente dominado pelo anjo Gabriel.

- Voltarás para o inferno... besta! - Enquanto dizia essas palavras o grande Arcanjo tirava correntes, também douradas e amarrava o subordinado de Satã...

Foi uma fúria. O chão se abriu e o diabo foi tragado pelas fossas infernais, gritando, mais parecendo um lobo sendo abatido... Depois que ele caiu e beijou pela primeira vez o fosso incandescente do inferno, o chão voltou a se fechar. O diabo havia sido jogado novamente ao inferno, para nunca mais retornar.

Então delicadamente Gabriel guardou suas asas duplas. Voltou a ter uma aparência mais humana e se aproximou dos dois religiosos, ainda caídos no chão. Gabriel, conhecido tanto no judaísmo como no cristianismo como o "Homem forte de Deus", ajudou os dois homens a se levantarem. Eles estava estupefatos por sua presença.

Gabriel então falou:

- Feliz é o homem que se fortalece na fé em Deus e confia em sua misericórdia - dito isso se levantou e falou aos homens as seguintes palavras...

- Deus estará sempre ao vosso lado. O mais valente sempre salvará o humilde que ora pelo perdão e pela ajuda.

Jacob e McKenzie estavam sem palavras. E quando se distraíram por apenas um segundo... Gabriel se foi, desapareceu. O céu estava limpo novamente, com um azul maravilhoso e um grande arco-íris explodindo em cores de pura presença divina.  

Deus havia vencido novamente. As trevas nunca iriam superar a Luz. O mal jamais iria vencer o bem.

Pablo Aluísio.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Assassina das Estradas

Cap. I - O Detetive
Cliford Atkins. Policial, 46 anos de idade. O aumento de peso denunciava que ele não estava mais preocupado em manter as aparências. Era um bom investigador de homicídios, mas já tinha entendido tudo, como as coisas funcionavam. Recentemente havia pego um figurão, filho de uma família rica da região de New Orleans. Gente envolvida em política. Não deu em nada. Ele foi absolvido pelo tribunal do júri. Algum jurado foi comprado? É possível que sim, mas Cliford não tinha como provar. Ele não queria se envolver no jogo sujo envolvendo juízes e políticos. Certamente sua carreira seria prejudicada dali em diante, afinal ele havia mexido com uma das famílias tradicionais da cidade. iriam dar o troco para ele, mais cedo ou mais tarde.

Assim seu telefone tocou logo pela manhã. Ele ainda estava de ressaca da noite anterior. Começar a segunda-feira logo atendendo a um caso de assassinato não estava bem em seus planos. Só que era trabalho e ele teria que seguir em frente. Um homem de meia idade havia sido encontrado em seu carro na estrada que ligava a Louisiana à Flórida. Dois tiros na altura do abdômen. A carteira com dinheiro fora roubada. Havia sinais de luta corporal dentro do carro. Clift pegou seu velho chapéu e foi para a estrada. Tinha que fazer as primeiras análises no local do crime.

Esse caso lhe lembrou outro que havia acontecido há 3 meses, ainda sem solução. Clift desconfiava que os dois crimes poderiam ter sido cometidos pela mesma pessoa. As vítimas e as circunstâncias do crime revelavam isso. Eram dois homens, entre 55 a 60 anos. Ambos tinham histórico de contratar prostituas nas rodovias pelas quais passavam. Os dois foram mortos com tiros à queima roupa, sugerindo que o assassino (ou a assassina) entraram em seus carros e ficaram próximos suficientes para dar um tiro a pouca distância.

Isso fez Clift desconfiar que o homicida ou mais provavelmente a homicida fosse um ou uma profissional do sexo. Como os dois homens eram héteros havia fortes suspeitas que eles pegaram algum mulher para se prostituir em seus carros. Algo havia dado errado. Em algum momento essa mulher reagiu aos avanços deles, puxou uma arma e os matou. Depois roubou tudo o que havia de valor dentro do carro de seus "clientes", ou seja, dinheiro, relógios, anéis, cartões de créditos, qualquer coisa. Clift no alto da experiência de sua profissão estava praticamente convencido que havia uma assassina à solta nas estradas.

Ao retornar para a delegacia, o bom e velho detetive Cliford Atkins resumiu o caso em sua cabeça. Para ele uma pessoa havia entrado no carro da vítima. Provavelmente entrou sem reação violenta, o que significava que o criminoso contava com a confiança da vítima. Dentro do carro eles foram para uma estrada mais remota, onde poderiam fazer sexo. Partindo do pressuposto de que as vítimas eram homens heterossexuais só havia a quase certeza que era uma assassina, um prostituta a principal suspeita. Porém havia algo que não se encaixava no caso montado em sua mente. Mulheres raramente usam de métodos violentos para cometerem crimes. Mulheres geralmente matam com venenos, coisas assim. Elas detestam sangue e bagunça na cena do crime.

Cap. II - A Assassina
Não muito longe dali, em um bar para motoqueiros, Alicyn Woother bebia uma cerveja gelada. Ela certamente não se enquadraria em um perfil típico de assassina do FBI. Estava mais para vítima. Aos 12 anos havia sofrido abuso sexual de seus próprios parentes próximos. Traumatizada, saiu de casa. Para sobreviver trocava sexo por dinheiro ou carteira de cigarros. Foi criada praticamente na rua, sendo abusada por pedófilos. Era uma vida triste. Só que agora Alicyn parecia viver uma vida mais feliz. Há alguns anos ela tinha se descoberto lésbica. Anos e anos sendo abusada por homens imundos fizeram com que ela criasse uma ojeriza com o sexo masculino. Havia criado um trauma com o falo ereto. As mulheres eram mais delicadas, carinhosas e sensíveis. Não é de se admirar que ela havia se tornado lésbica.

Agora estava tendo um caso amoroso com Kaitlin Riley. Ela trabalhava em pequenos empregos mal remunerados nos motéis da região. Trabalhava como faxineira e arrumadeira. Era o que os americanos costumam chamar vergonhosamente de "White Trash" (Lixo branco). Pessoas até bonitas, mas pobres, sem educação formal superior. Ela tinha um jeito meio masculinizado, o que lhe valia em certas ocasiões o apelido de "Buddy", como se fosse um cara qualquer, que tinha gestos másculos e falava sobre futebol americano. Com ombros fortes e cabelo curto parecia mesmo um macho, um caminhoneiro da pesada.

Em muitos casos envolvendo casais de lésbicas havia a que representava o lado masculino da relação e o que servia como a mulher feminina. Kaitlin Riley "Buddy" era o machão do namoro, o que em certos meios gays é conhecido como "Lady Botina". Alicyn Woother era a fêmea, o que em redutos era conhecida como Lady Penélope. As duas tinham alugado um quarto na beira da rodovia. Estavam vivendo bem. O que "Buddy" não sabia era como sua namorada ganhava dinheiro, afinal ela nunca tinha um emprego. Saía pela manhã e voltava no final de tarde, sempre com algum dinheiro. "Buddy" não dizia para ninguém mas desconfiava que ela fazia programas nas rodovias próximas. Porém esse assunto nunca era discutido entre elas. Iria quebrar o clima, quebrar o romantismo.

Alicyn Woother estava com 38 anos de idade. Estava perto dos 40. Já não sonhava com príncipes encantados. Ela também já tinha passado da idade de ser uma mulher atraente, que fosse interessar a alguém para se casar e ter um relacionamento. Sem profissão nenhuma, acabou se tornando prostituta de estrada. Para sua segurança ela havia comprado um revólver 38. Ela só entrava dentro do carro dos clientes devidamente armada. Como tinha uma personalidade psicopata pouco se importava com a vida humana. Depois de milhares de programas ela entendeu - em sua mente doentia - que era mais fácil simplesmente dar um tiro naquele que a contratava.

Um tiro certeiro no coração. Depois que o tal sujeito caía tudo o que ela precisava era roubar sua carteira e ir atrás de algo de valor nas cabines dos caminhões ou carros. Também era uma assassina desajeitada, que não tomava precauções no quesito provas. Digitais dela estavam em todas as partes. A polícia as tinha levado para perícia, mas faltava uma digital no banco de dados de criminosos para bater com o que eles tinham.

Enquanto os corpos iam aparecendo a imprensa começou a se interessar pelo caso. Vazamentos do departamento de polícia tinham chegado nas redações de jornais. Era muito interessante ter uma mulher como assassina. Não tardou muito e as manchetes vinham com sua nova alcunha de "Assassina das Estradas". O velho detetive ficou contrariado com toda a sensacionalismo do noticiários. Isso iria atrapalhar as investigações. Ele então resolveu ligar para o chefe de redação e foi bem claro sobre tudo o qu estava acontecendo.

Parem de publicar informações confidenciais! Isso vai atrapalhar as investigações! - Ninguém se importou. Nenum jornalistas deixou de continuar a escrever sobre o caso. Vendia jornais, despertava interesse do público, então a imprensa iria continuar a aproveitar ao máximo. O que Cliford estava disposto a fazer para pegar a criminosa? Ele então pensou em algo até óbvio. Ele iria preparar uma armadilha para ela. Quem sabe assim ela cairia nas mãos dos policiais.

Cap. III - As Pistas
Cliford Atkins estava em um beco sem saída. Não tinha respostas para os crimes. Ele tinha encontrado elementos que poderiam ajudar a condenar o criminoso em um tribunal, porém não tinham pistas sólidas que o levassem a essa pessoa. Era aquele tipo de situação ao estilo "Saberei quem é você quando o encontrar". Tudo estava no ar. Enquanto isso a imprensa atrapalhava a investigação, publicando reportagens sensacionalistas. Clift até mesmo teve que receber um telefonema mal humorado do comissário por causa da falta de resultados concretos.

Sem nada em mãos o velho detetive resolveu usar de antigas táticas. Uma delas seria atravessar o lado mais sórdido da cidade em busca de informações. Ali sobrevivia a nata da escória da região (muito embora essa definição não fazia o menor sentido). Clift ia nos bares, becos e bordéis para encontrar seus informantes. Gente desesperada por algum dinheiro. Eram cafetões, proxenetas e pederastas de todos os tipos. Gente sem moral. Gente boa para comprar com alguns trocados. Era hora de sujar as mãos com o excremento que escorria pelas ruas mais infames da cidade. Coisa que todo detetive deveria fazer, mais cedo ou mais tarde.

Como os crimes envolviam prostituição ali era o lugar natural para saber de alguma coisa. Para sua surpresa ninguém soltou nada. Não sabiam de nada. Ele ficou surpreso. Esse tipo de resposta só poderia ter uma explicação. O assassino ou a assassina deveriam se de fora, de outra cidade ou até mesmo de outro estado. O que estava acontecendo de fato?

Big Bangaroo era um dos cafetões mais conhecidos de New Orleans. Um cara da pesada, literalmente falando. Tinha mais de 150 kg e dois metros de altura. Era um daqueles negros que usavam grandes chapéus espalhafatosos e roupas de cores berrantes. A pessoa poderia vê-lo a metros de distância e reconhecer que ele era um cafetão. Clift tinha um passado com ele. O velho detetive havia se apaixonado por uma de suas garotas. Erika Von, uma loiraça maravilhosa. Cabelos curtinhos, grandes seios, bronzeado perfeito. Lindos olhos azuis em uma face de anjo. Linda demais! Era até complicado entender como uma mulher daquelas foi parar nas ruas, fazendo programas para o porco do Bungaroo.

Esse mundo porém não era perfeito. Pelo contrário, cheirava a cigarro apagado na calçada. A maioria das pessoas eram sórdidas. De vez em quando Clift ainda curtia uma dor de cotovelo por causa da loira Von, mas não havia muito o que fazer. Ela tinha ido embora com um cafajeste. Mulheres lindas, ainda mais se forem loiras de olhos azuis, caem de amores pelos cafajestes de plantão. Deve ser algo em seu DNA estúpido, quem sabe...

Pois então, Big Bangaroo não tinha nada a dar para Clift, mas involuntariamente lhe deu uma pista importante ao explicar que ele conhecia todas as vadias da cidade. Tanto as que estavam na ativa, como as novatas e até mesmo as aposentadas. Algumas tinham até mesmo se casado com políticos, gerando filhos da puta. Para Big a única explicação era de que essa prostituta envolvida nos crimes certamente não era de New Orleans. Se fosse ele teria ouvido algo. Ela era de fora. Pegava os caras em outros lugares e quando chegavam nos arredores da cidade cometiam o crime!

Poxa, a banha do Bangaroo deveria ter transformado ele em um tira. Clift havia pegado o fio da meada. Sua conversa com o cafetão grandalhão rendeu bons frutos. Afinal aquele cara era o "rei das putas" na cidade e isso não era por mero acaso. De volta para seu escritório Clift pegou a caneta, material para investigação, entrou em seu carro e caiu na estrada. Ele precisava refazer o caminho que aqueles homens tinham tomado. A intenção era conversar com seus familiares. Para onde eles costumavam viajar? Alguém tinha que falar algo...

Cap. IV - Na Estrada
Antes de falar com os parentes das vítimas o detetive Cliford Atkins cometeu o seu maior erro. Ele pegou seu carro e foi para a estrada. Queria conversar com as pessoas que viviam ali, literalmente à margem da sociedade. Rondando se deparou com uma mulher bonita. Era obviamente uma prostituta. Ele não iria fazer um programa, óbvio, mas conversar com alguém que vivia naquele ambiente era um ponto de investigação válido.

Por uma incrível coincidência a mulher que ele chamou para conversar era Alicyn Woother. Ela mesma, a assassina das estradas. Poderia haver algo mais inesperado do que isso? Não, jamais. Clift lhe ofereceu dinheiro, mas ela ficou arredia. Embora estivesse desesperada em busca de algumas notas sabia que aquele sujeito era um tira em busca de informações. Bem, depois de um tempo ela refletiu e pensou que ele estivesse em busca de informações de alguns travestis que faziam ponto por ali perto. Alguns tinham "navalhado" seus clientes.

Ela disse que aceitaria o dinheiro, mas que eles teriam que sair dali. Caso alguém a visse com conversa com algum policial isso seria perigoso. Ela seria morta por isso. Depois perguntou quanto iria levar pelas informações. O velho tira ofereceu 40 dólares. Ela não aceitou. Só iria pelo preço de um programa regular, 200 dólares. Veja, ela já não era mais a bonita mulher do passado. Certamente não ganhava isso por programa, era uma farsa, mas mesmo assim o policial aceitou.

Valores acertados, ela então entrou no carro. Foram para uma estrada secundária, de terra, sem asfalto. Longe da vista de todos. Era o modus operandi dela. Assim que o carro parou ela pediu um momento "para acertar a bota que estava calçando". Na verdade ela escondia um pequeno revólver de dois tiros, muito popular entre as mulheres.

A ação foi rápida. Ela veio por trás da cabeça do policial, mirou e atirou. Tiro certo, morte imediata. Sem saber Clift teve o mesmo destino dos homens que foram assassinados, dos crimes que investigava. Baixou a guarda, achou que seria altamente improvável encontrar a criminosa que procurava. Como um policial tão experiente caiu numa armadilha tão simples? Ossos do ofício. Ela ainda vasculhou o carro e a carteira do velho tira em busca de algum valor. Encontrou 400 dólares. Uma boa quantia. Com os 200 que já tinha saia agora daquela cena do crime com 600. Um dia produtivo. E o policial? Foi morrendo aos poucos... as pupilas perdendo o brilho... seu corpo lentamente morrendo. Ele deveria saber que em contos noir as mulheres sempre são fatais. 

Cap. V - O Sórdido Encontro de Lábios
Alannah não era uma mulher bonita. Baixa demais, gordinha, acima do peso, com tornozelos grossos, não tinha um corpo bonito. Era uma garota comum que procurava se arrumar para que o conjunto não parecesse tao feio. Ela era enfermeira, não era rica, de jeito nenhum, ganhava pouco e vivia no sufoco. Ainda morava com o pai, um sujeito caipira, do interior, rude e tosco. Charles, seu pai, poderia ser definido como um homem burro. Só falava de vacas e futebol. Não tinha muito conhecimento do mundo e nem queria ter. Ele cultivava um certo culto ao fato de ser um ignorante. Pessoas ignorantes não sabem a extensão de sua ignorância e assim acabam sendo sábias, pelo menos em sua cabeça de amendoim.

Alannah já tinha passado dos 30 anos de idade. Para uma mulher sempre há aquele estigma pejorativo da "tia solteirona" que não conseguiu se casar e nem ter filhos. Tudo preconceito, não se pode negar. O que poucos sabiam é que Alannah tinha aversão sexual a homens. Ela na realidade era lésbica. Nunca havia sido do armário porque seu pai tosco e pseudo conservador nunca iria aceitar isso. Provavelmente iria expulsá-la de casa, como seu tio havia feito com seu primo. Gente rude do interior, não aceitava homossexuais sob o mesmo teto. A tosquice misturada com a religião dava como frutos esse tipo de situação aflitiva. Assim Alannah ficava na moita, sem nunca assumir sua verdadeira identidade sexual.

Algumas vezes ela arranjava um namorado de fachada, mas aquilo era o fim da picada em sua mente. Quando as coisas apertavam demais e ela ficava sufocada o jeito era pegar seu carro e pegar a estrada, onde ela podia ir em bares escondidos frequentadas por mulheres lésbicas. Era a forma que ela tinha de respriar um pouco mais. Nesses lugares ela finalmente podia se sentir livre, sem ter que dar satisfação para seus familiares bocós. Ela inclusive se via livre de ter que conversar com seu irmão que também era o suprassumo da estupidez e ignorância. Nos bares lésbicos ela tinha com quem conversar, falar sobre a vida e o mais importante de tudo, conviver, mesmo que por pouco tempo, com pessoas como ela. Era libertador em todos os sentidos.

Em uma dessas tardes Alannah conheceu Alicyn Woother. Ela estava assustadoramente bonita naquela ocasião. Os anos que lhe fizeram tanto mal em termos estéticos havia dado uma trégua ali. Alicyn parecia tão sedutora ali, com um copo na mão, o rosto parcialmente bronzeado pelo sol, os olhos azuis, o cabelo loiro, que mesmo não sendo tratado como devia ainda chamava a atenção. Como uma profissional do sexo, com antenas ligadas ao redor, Alicyn percebeu que Alannah lhe encarava com uma certa insistiência. Era óbvio que ela estava interessada nela. Só não sabia que no dia anterior o alvo de seus suspiros havia matado um tira no meio da estrada... isso sem contar todos os outros clientes asquerosos que ela havia mandado dessa para melhor... ou pior, dependendo de suas crenças religiosoas ou do que significa um cova fria em sua visão pessoal.

Alicyn gostava de se ver de uma forma diferente, mas a dura realidade é que ela era uma puta. Passara a frequentar bares de lésbicas para quem sabe diversificar seu leque de clientes. Até porque ela tinha uma namorada fixa, era lésbica em sua vida pessoal e tinha ojeriza de homens, com seus pintos sujos, barrigas flácidas e conversas dementes. Se relacionar com uma mulher era sempre melhor. As mulheres sempre procuravam a sutileza, procuravam aparentar ser mais inteligentes do que eram, mesmo que fossem na realidade bem burras. Era parte da sedução que surgia entre duas fêmeas. Isso estimulava Alicyn ao máximo. Era o último porto de tesão que ainda percorria suas veias e mente.

Alannah se aproximou e ofereceu um drink. Alicyn aceitou com prazer, com um sorriso nos olhos. Havia ali todo um jogo de sedução. Uma olhava os lábios da outra e o clima ia ficando mais quente. Havia mesas mais ao fundo, para momentos de maior privacidade. Alicyn convidou Alannah para ir até lá. Convite aceito sem reservas ou receios. Em poucos minutos ambas estava se deliciando, saboreando a saliva da parceira. Beijos realmente afetuosos, que de certa maneira demonstravam o quanto Alannah se encontrava carente naquela ocasião. Não era fácil manter uma imagem quase por 24 horas por dia apenas para agradar a família conservadora e tosca. Esses momentos de liberdade, onde ela beijava outra mulher, era tudo o que ela queria na vida. Pena que não tinha dinheiro para abraçar a independência completa em sua vida.

Ficou meio óbvio que Alannah ficou caidinha por Alicyn. Essa era o que poderia se chamar de "puta velha". Sabia que poderia extrair algo dali. Ambas saíram depois de uma hora sarrando no bar. Foram para um motel de beira de estrada que ficava ali pertinho. Quantos homens Alicyn já não tinha atendido naqueles mesmos quartos? Já tinha perdido a conta. Porém agora com Alannah elas tiveram um momento muito quente e muito íntimo. Não era apenas mais uma cliente de sua vida de prostituta. Parecia haver algo a mais ali naquele encontro, algo mais forte e algo mais perigoso também...

Cap. VI - Orgia de Sangue
Alicyn matou Alannah com requintes de crueldade. Primeiro fez ela se despir completamente. Realmente não tinha um belo corpo. Era desleixada e isso ia contra ela. Também era mal feita por natureza. Pernas curtas demais, ausência de um bumbum bonito. Enfim. Nesse primeiro momento Alicyn ainda não tinha decidido se iria matá-la ou não, mas algo a fez decidir por um caminho. Ela viu de relance um cartão de crédito do American Express. Esse cartão geralmente tinha alto limite de crédito. Alicyn colocou olho gordo ali. Alannah estava condenada.

Alicyn levava dois punhais bem cortantes e bem afiados em sua bolsa. Dessa vez ela estava sem a arma calibre 38 que costumava usar para matar seus clientes homens. Então ela fez com que Alannah deitasse de costas para ela, insinuando que iria fazer uma massagem. Disse que ficaria mais erótico se ela deixasse que fosse colocada um pano em sua boca. Era a segurança de que ela não iria gritar. Alannah inocentemente aceitou a sugestão. Erro fatal.

Com Alannah nua, indefesa, com os braços amarrados (para simular o tal fetiche erótico), de costas para Alicyn, completamente nua, era a vítima ideal. O cordeiro no altar do sacrifício. O abate seria fácil demais. Alicyn pegou seus dois punhais. Alannah não sabia o que estava acontecendo então.

- Toma sapatão escrota, toma sua puta safada! - gritou Alicyn no primeiro golpe...

Alicyn deu a primeira punhalada... depois outra, nas laterais, Alannah gritou de dor, lágrimas saíram de seus olhos, mas ninguém ouviu. Ela estava amordaçada e morrendo em um banho de sangue, em uma orgia de sangue. E Alicyn continuava a apunhalar com todas as suas forças... Os músculos exteriores foram rompidos, e Alicyn fez ainda mais força para que os punhais entrassem mais fundo nos órgãos internos de Alannah. Também girou a arma branca para causar ainda mais estragos...

Nesse assassinato algo estranho aconteceu. Alicyn ficou realmente excitada com tudo aquilo. O sangue, sua vítima nua na cama, morrendo afogada em seu próprio sangue... aquilo deixou Alicyn molhadinha... excitada, chegou inclusive a fazer movimentos lascivos com sua língua, como se tivesse em um caso de amor com o próprio diabo. Tão excitada ficou que quase não conseguiu parar as punhaladas - que segundo o laudo do médico legista, havia ultrapassado as 80 estocadas no corpo de Alannah. Nenhum ser humano iria resistir a tamanha agressão e violência. Logo Alannah perdeu os sentidos e morreu...

A assassina cuspiu no corpo de sua vítima e xingou: "sapatão safada". Depois Alicyn foi ao banheiro, se lavou rapidamente e pegou dinheiro e o cartão de crédito de Alannah. Não demorou muito e correu em direção ao caixa do banco onde conseguiu sacar mais de 5 mil dólares do dinheiro de Alannah. Nossa, ela iria fazer a festa com tanta grana. Havia valido a pena matar aquela vadia... pelo menos era isso que pensava. O que nem parava para raciocinar é que havia deixado dessa vez uma centena de pistas para os policiais que iriam investigar a morte. Era um jogo onde ela mais cedo ou mais tarde iria se dar mal. 

Cap. VII - Rota 66
Numa quinta-feira à tarde, já completamente entediada pela vida, a assassina resolveu pegar a estrada. Pessoas com problemas de psicose não aguentam viver muito tempo em um mesmo lugar. Assim ela pegou seu cartão de crédito, foi até uma locadora de carros e saiu com o veículo. Não tinha a menor intenção de devolver aquele automóvel. Foi para a estrada com a intenção de matar geral, detonar quem encontrasse pela frente. Estava com sangue nos olhos. Queria esfaquear todo macho escroto que encontrasse pela frente. Quanto mais asqueroso fosse, melhor. Ela tinha intenção de cortar as gargantas deles, roubar seu dinheiro, chafurdar no crime.

E ela estava eufórica. No volante ela pensou em si mesmo. Pensou e lembrou que se sentiu culpada dos primeiros homens que matou. Só que agora ela não tinha mais culpa, não tinha mais consciência. Havia pegado gosto pela "arte de matar". Não queria mais saber de pensamentos de culpa e nem de teor religioso. Queria matar... matar... matar. Em sua mente ela pensou: "O que eu tenho a ver com um cara que morreu há 2 mil anos? Um sujeito que ninguém sabe exatamente quem foi? E o que tenho a ver com mãe dele?". Ela tinha tido formação católica e estava se referindo a Jesus e sua mãe Maria. Ela cuspiu pela janela e gritou: "Porra, eu sou livre! Eu vou fazer o que quiser da vida!"

Depois de viajar por toda a noite ela decidiu parar em  St. Louis, Missouri. Abasteceu o carro, comprou comida e parou um tempo para fumar um cigarro. Nisso chegou um autêntico "Red Neck", um caipirão daqueles bem típicos. Boné, roupa de operário. Puxou uma conversa fiada com ela. Papo furado. Ele perguntou de onde ela era e tudo mais. As respostas foram evasivas. O sujeito continuou a encher o saco. Ela então decidiu que iria dar uma marretada em sua cabeça, bem na frente, para afundar seu crânio.

Ele insinuou que ela poderia ser prostituta, sabe como é... com aquelas roupas. Ela então disse que fazia programas de vez em quando. Cobrava 10 dólares. Os olhos do infeliz brilharam. Transar com uma mulher daquela por apenas 10 dólares? Ele estava dentro do negócio. Ela aceitou a grana e disse que ele entrasse no carro. Pararam em um lugar bem vazio, com ninguém por perto. Ele tentou agarrar seus seios, mas ela pediu um tempo, foi atrás no porta-malas e disse que ia pegar umas coisas.

Ele esperou, já abaixando as calças. Quando ela retornou tinha uma daquelas marretas de construção civil. Objeto pesado, grotesco, rude e violento. Só deu uma na cabeça do pobre diabo. Chegou por trás, de forma sorrateira. Ele parecia lamber os beiços pensando que ia transar com ela. A assassina só deu uma porrada. Ele percebeu o osso do crânio afundando... afinal aquele tipo de marreta era usado para derrubar paredes, imagine o que iria fazer em um crânio humano. A pancada, dura e seca, fez com que o idiota morresse na hora. Seus olhos ficaram escuros, ele perdeu a consciência em segundos.

Ele ficou lá no chão tendo espasmos. Devia ser alguma reação ao golpe que sofreu. Ela não quis nem saber. Foi direto no bolso do desgraçado. Pegou sua carteira. Havia tirado a sorte grande. Ele provavelmente havia recebido salário naquele mesmo dia. Havia 800 dólares na carteira, uma boa grana, iria pagar a viagem por alguns quilômetros. Ela então olhou pela última vez para ele. Estava morto, não respirava mais. Uma vida sem importância chegava ao fim. Ela não queria nem saber! Foi tão fácil, ela pensou. Antes de entrar no carro para ir embora ainda acumulou o máximo de catarro, lá dos fundos de seu pulmão. Depois deu aquela cusparada na cara do homem morto. O musgo verde escorreu de sua cara feia. Ela ligou o carro e foi embora, pensando: "É mais fácil do que tirar doces de criancinhas"

Cap. VIII - A Fazenda Gromberg
Há coisas que não se faz. Há crimes que até mesmo os mais selvagens criminosos sentem asco e nojo. E exatamente o crime cometido pela assassina em relação ao casal Gromberg. Dois velhinhos. Duas pessoas adoradas pela comunidade. Viviam em uma fazenda afastada, onde passava a estrada da rota 66. A assassino parou por alguns instantes e visualizou aquela bonita casa de campo. Estava muito bem cuidada. Ela pensou, que essas pessoas certamente deveriam ter um cofre com dinheiro. "Vou até lá!".

Fingindo ter problemas no carro ela estacionou na frente da casa da fazenda e buzinou. A sra Gromberg, que na época deveria ter uns 80 anos de idade, abriu a porta da casa. Vendo aquela jovem ali, pedindo ajuda por causa de problemas mecânicos no carro, imediatamente se prestou a ajudá-la. Depois saiu da cara o senhor Gromberg, veterano de guerra, 86 anos de idade. Eles ouviram a mulher e disseram que sim, ela poderia entrar em sua casa, com a finalidade de ligar para um mecânico. Era tudo mentira. Ela queria apenas roubar os pobres e indefesos velhinhos.

Quando o xerife Tom Oxford chegou na casa, duas horas depois, ele viu uma cena de terror. O casal havia sido amortaçado, torturado e morto com requintes de crueldade. O cofre que ficava no último quarto da casa, estava aberto. O criminoso havia levado todo o dinheiro. A morte do casal de idosos, que Tom conhecia desde os tempos em que era um simples colegial, o enfureceu. Quem poderia ser tão vil a ponto de matar aquelas duas pessoas? A violência e a insanidade foi perturbadora. Ao sair da casa, em busca de um pouco de oxigênio, ele puxou sua escopeta, a destravou e prometeu:

- Eu vou caçar esse criminoso até os confins do inferno, se for preciso! - Quem conhecia o xerife sabia que ele iria cumprir aquela promessa! Homem da lei há muitos anos, veterano policial, era visto como um homem honesto e íntegro pela comunidade. Quando era necessário ser duro, ele o era, sem pensar duas vezes. Quando era preciso um pouco mais de equidade, em vista de alguma pequena falha de algum morador que ele conhecia, ele certamente fazia vista grossa. Sabia ser justo, sabia ser honesto.

Ele era o xerife de Flagstaff, Arizona, há mais de 30 anos. Começou bem jovem, como patrulheiro da rodovia 66. Depois foi subindo na hierarquia. Quando o xerife John Jones se aposentou, ele assumiu a força policial daquele pequena cidade. Agora se via diante do crime mais brutal, violento e insano de sua vida. Já nos primeiros minutos na casa encontrou um cigarro fumado da marca Chellender. Era uma marca feminina. Os dois idosos não fumavam. Estava claro que uma mulher havia feito parte do crime. Evidências periciais indicaram que apenas uma pessoa entrou naquela casa. Era uma assassina! Uma assassina das estradas! Oxford estava pronto para começar sua caçada! 

Cap. IX - A Perseguição
O xerife Oxford nem pensou duas vezes. Com as (poucas) informações que tinha entrou em seu carro e pisou o pé no acelerador. Ele queria pegar aquela criminosa de todas as formas. A Rota 66 era ao mesmo tempo uma rota de fuga para ela, mas também uma armadilha. Isso porque ela muito provavelmente não sairia de seu caminho, o que iria facilitar e muito em sua captura. Do rádio do carro patrulha, o xerife entrou em contato com todos os demais xerifes da região. Barreiras foram montadas, ninguém sairia do estado do Arizona sem ser totalmente identificado.

As pistas diziam que se tratava de uma mulher, entre 40 e 55 anos de idade. Provavelmente loira (fios de cabelo foram encontrados na cena do crime). Ela também estaria dirigindo um Ford 41. Arriscaria dizer que de cor preta, pois esse modelo tinha em maioria essa cor na lataria. Então todos os policiais tinham que passar pente fino em carros dirigidos por mulheres sozinhas, loiras e de lataria de cor preta. Parar o carro, revistar, pegar os documentos, tudo era procedimento padrão. Dirigindo a alta velocidade o xerife ouviu no rádio do carro que havia uma situação de emergência.

- Atenção, atenção! Policial atingido no KM 68, policial abatido, levou um tiro de revólver. Todas as patrulhas da região se desloquem até o KM 68, situação de emergência! - Ao ouvir isso o xerife respondeu imediatamente - Atenção, aqui xerife Oxford. Estou próximo da área da ocorrência. Estou me dirigindo imediatamente para lá.

Estava tão perto do lugar onde o policial havia sido baleado que, segundo seus próprios cálculos, chegaria no local em pouco mais de 20 minutos. Era necessário acelerar, acelerar, pisando fundo no acelerador. Agora não era apenas questão de prender a assassina das estradas, mas também de salvar a vida de um colega de farda.

Assim que chegou no lugar o xerife Oxford viu o jovem policial caído no chão. Para seu alívio ele estava vivo. Ao seu lado dois carros parados. A sua rádio patrulha e o carro da criminosa. Exatamente como havia sido sugerido pelas investigações, um carro Ford preto. O xerife percebeu que a criminosa havia fugido para um bosque ao lado, isso após dar um tiro no policial que a parou na rodovia para pedir documentos.

O jovem patrulheiro mal teve tempo para uma reação. Ao parar a assassina, pediu educadamente por seus documentos. Ela fingiu estar indo pegar sua carteira, mas na verdade sacou um revólver que estava debaixo do banco de motorista. E ela nem pensou duas vezes, nem pensou em render o guarda para pegar sua arma. Simplesmente sacou o revólver e atirou... a bala se fixou no ombro esquerdo do tira. Ele caiu com o impacto do tiro. Não havia risco de vida, pelo menos por enquanto.

O xerife Oxford então esperou pela chegada de um carro patrulha de apoio. Quando esse chegou ele nem pensou duas vezes, correu em direção ao bosque. Queria colocar as mãos naquela mulher fria que havia matado dois idosos em seu condado. Ao que tudo indicava era uma serial killer com outras mortes nas costas. Não seria fácil pegá-la no meio daquela região, mas ela não estaria muito longe. A chance era agora, mas por onde começar? Onde ela estaria se escondendo? 

Cap. X - Morte nas Folhagens
Há elementos complicadores em ir atrás de um criminoso no meio de um bosque. As folhas, úmidas, propicam quedas. Cada tronco de árvore é um pequeno e eficiente esconderijo. A surpresa pode ocorrer a qualquer momento. Um tiro pode vir pelas costas, pela frente, de lado, de qualquer lugar. Por isso quando o xerife Oxford foi em busca da assassina, ele foi com extrema cautela. Para sua sorte logo descobriu que ela vestia um casaco vermelho que a deixava bem à vista no meio de todo aquele verde. No passado os uniformes dos exércitos exibiam cores bem fortes. Isso durou até todos se tocarem que isso os transformavam em alvo ambulantes. A partir daí todos os exércitos do mundo se tornaram verdes.

Assim que o xerife a viu no meio da mata deu ordens para ela parar. Só que foi sem efeito. Ao invés disso ela se virou e deu um tiro no policial. Um tiro que não o atingiu. Provavelmente ela não era boa de mira, até porque só havia matado suas vítimas à queima roupa. Só bastou isso para o velho homem da lei descobrir que estava na presença de uma amadora. Ela não sabia atirar, nem mirar, nem nada. Em sua mente o xerife pensou que iria admitir que ela só atirasse por três vezes. Depois iria reagir.

O terceiro tiro aconteceu. Bom, a paciência havia se esgotado. O xerife se abaixou, dobrou suas pernas e fez mira. Ele tinha uma boa visão dela, mesmo que estivesse correndo por entre as árvores. O xerife então controlou sua respiração, fechou um de seus olhos, mirou bem e... apertou o gatilho! O tiro foi certeiro, bem em suas costas. A criminosa caiu com o impacto da bala atingindo seu corpo. O local atingido era bem mortal, ali ela poderia ter morrido de forma imediata, caso a bala chegasse em algum órgão vital. Mas estava realmente morta?

Oxford começou a caminhar em direção ao corpo da criminosa caída. Foi devagar, com extrema cautela. Nada de movimentos bruscos. Então chegou perto, a menos de 1 metro. Nenhum sinal de vida. Estava morta. Abatida como a um alce no meio da floresta. O xerife então colocou seus dois dedos em seu pescoço, em busca de sinais vitais. Nada. Ela havia partido dessa para melhor (ou pior, se você acredita na existência do inferno).

O xerife então ligou o rádio, avisou aos seus colegas de farda e esperou. Ali ao lado do corpo morto de uma mulher, caiu sobre ele uma certa melancolia. Um certo sentimento de que algo havia dado errado. Embora fosse uma criminosa, ainda era uma vida que se ia. Ele pensou, observou e ouviu o canto de pássaros. Era um contraste incrível mesmo. Do lado da morte, ouvia-se as mais belas canções da natureza, cantadas pelas aves mais bonitas que ele já tinha visto em sua vida.

Pablo Aluísio.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O Lobisomem da Escócia

Prólogo - Nos Tempos Romanos
Sempre existiu lendas e mitos nas terras altas escocesas. O clima frio e hostil e aquelas terras onde ninguém morava dava mesmo margem para o aparecimento desse tipo de história. Já nos tempos em que as ilhas britânicas estavam sob dominação romana, se dizia que nenhum legionário do império deveria subir muito ao Norte pois a morte o encontraria de forma certeira. Isso impressionou os comandantes romanos que apesar de formar uma casta de homens bravos, não os encorajava a ponto de enfrentar forças sobrenaturais que eles não conheciam. 

Nessa época remota surgiu a história de Lupus, um monstro, meio homem, meio lobo. Dizia-se entre os romanos que certa vez uma patrulha foi muito ao Norte e acabou se perdendo naquelas terras sem fim. Com a chegada da noite eles precisaram levantar acampamento para no dia seguinte tentar voltar para sua legião. Entretanto isso não iria acontecer. 

Os quatro soldados romanos foram violentamente atacados durante a madrugada. Uma besta caiu sobre eles de forma avassaladora. Muito se cmentou sobre as forças que atuaram naquele ataque formidável. Dois legionários tiveram suas cabeças arrancadas, seu elmo destruído. O outro ainda tentou fugir em disparada, mas parou ao sentir que longas garras entravam em suas costas, arrancando seu coração. Um barbarismo como nunca se viu!

Os romanos que chegaram no acampamento duas semanas depois ficaram chocados com o que encontraram. Restos de braços, pernas e equipamento militar espalhados por todas as áreas. A fera que os atacou não apenas tirou suas vidas, mas comeu parte de suas carnes. Canibais! Os romanos já tinham enfrentado todos os tipos de bárbaros ao longo de sua história, mas nunca tinham se deparado com nada parecido com aquilo. O comandante do grupo de resgate ficou chocado e amaldiçou o homem ou o animal que fez aquilo! Por Júpiter, nunca se vira algo assim antes. 

Depois disso os romanos resolveram parar os avanços para o Norte. O imperador Adriano mandou erguer um muro para o qual nenhum romano deveria passar além. As muralhas de Adriano ainda se erguem em grande parte do Norte da Bretanha, no local basicamente onde está a fronteira entre a Inglaterra e a Escócia de nossos tempos. 

E a lenda sobreviveu, pois antigos textos romanos foram encontrados contando justamente essa história. Relatórios militares que foram enviados para o Imperador em Roma. A lenda de um homem lobo que atacava e matava todos os que ousavam ultrapassar seu território. Ninguém poderia sobreviver após aqueles terríveis acontecimentos...

Cap. I - O Coveiro
Estamos no século XVIII. Para ser mais exato em 1773. Jack é um homem que para muitas pessoas não passa de um sujeito asqueroso. Ele trabalha como coveiro na cidade de Newtown. Lugarejo que parece nunca ter saído da estagnação, embora fosse relativamente perto da capital. Ali muitos estudantes de medicina, da classe alta, iam em busca de passar algumas noites nos bares e prostíbulos do lugar. As mulheres tinham fama de serem bonitas. Afinal mulheres bonitas e pobres se tornam alvo fácil para gaviões endinheirados da capital escocesa.

Entre eles estava Mark Longbridge III, filho de uma família tradicional. Jovem de apenas 20 anos, fazendo o primeiro ano do curso de medicina. Ele não sabia mas seu destino iria cruzar, pelas vias tortas do acaso, com o coveiro Jack. Para completar o trio de pessoas importantes naquela noite havia Katja, a jovem de aparência russa que trabalhava na taverna. Mark era louco por ela, já a tinha levado para a cama algumas vezes, mas sempre com um tipo de impessoalidade que o incomodava.

Ele sabia que aquela garçonete de corpo maravilhoso era também disponível, pronta para fazer companhia noite adentro a quem pagasse bem. Um relacionamento do jovem futuro médico com uma meretriz era algo impensável para a tradicional família Longbridge. Nem em sonho isso iria acontecer. porém Mark estava literalmente caído por Katja. Algumas vezes viajava toda a noite de carruagem apenas para vê-la. E aqui temos o primeiro elo de ligação entre o promissor estudante de medicina e o coveiro asqueroso da cidade. Katja era sobrinha de Jack.

No começo Jack passava pela madrugada para pegar a sobrinha e levá-la em segurança pelas ruas escuras da cidade. Numa dessas ocasiões conheceu o acadêmico em medicina que estava apaixonado por ela. "Bem rapaz, você então vai ser médico?" - Jack perguntou acendendo seu cigarro de palha, enquanto olhava Mark com os olhos semicerrados -"Eu conheço alguns médicos da faculdade de Edimburgo" -o sorriso irônico não escondia a acidez de seu comentário. Era como se ele dissesse "Eu conheço aquela gente, aqueles porcos de jalecos brancos!". No passado Jack havia vendido corpos humanos para professores e médicos da universidade. Claro, era um crime abominável, ele vendia presuntos frescos para os doutores. Era uma forma deles estudarem a anatomia humana com mais precisão.

A revelação obviamente chocou em um primeiro momento o jovem Mark. Era algo sinistro, porém isso numa visão das pessoas comuns, do homem médio. Ele iria ser um homem da ciência, um médico, por isso embaixo do rosto espantado havia também um pensamento racional do tipo "Eu entendo esse tipo de coisa, eu posso aceitar essa situação que para muita gente é sinistra e nebulosa". Ora, ora, Mark e Jack então decidiram tomar uma bebida. Tudo pago pelo jovem. Afinal ele queria conquistar também o tio, pensando em levar mais uma vez para cama sua sobrinha, Katja, mulher de seus sonhos mais inconfessáveis. Então ele olhou diretamente nos olhos do velho coveiro e lhe disse com convicção: "Eu posso conviver com isso! Eu entendo meus colegas! Eles fizeram tal coisa pela ciência".

A noite de bebedeiras continuou até o dia seguinte. Lado a lado a fina flor da sociedade escocesa, um estudante de medicina jovem, o melhor que se poderia esperar de um rapaz. Do outro lado um coveiro, considerado um dos tipos de trabalho mais brutais e rudes que se poderiam imaginar, isso claro, sob um ponto de vista da elite burguesa e intelectual. Porém por mais diferentes que fossem acabaram se aproximando, se tornando, pelo menos naquela noite, bons amigos.

Mark Longbridge gostava de beber. Embora tivesse que estar na universidade pela segunda de manhã, ele passava os fins de semana nas tavernas mais obscuras daquele lugar. Entre uma poesia e outra ele enchia copos e mais copos de whisky. Entre devaneios puxava conversas envolvendo lutas, sexo e até sobre o sobrenatural. Tudo o que ele não falava entre as elegantes e elitistas salas de aula da universidade. Afinal o ambiente universitário não abria margens para esse tipo de conversação, considerada de baixo nível, de péssimo gosto.

O coveiro Jack lhe contou algo curioso. O cemitério tinha sua própria "fauna" noturna, pessoas envolvidas com religiões e rituais pagãos de magia negra. Com a igreja pressionando os adeptos desses cultos de ocultismo só sobravam mesmo as ruelas entre os túmulos onde eles podiam fazer seus rituais macabros, durante as madrugadas escuras. Mark ficou surpreso em saber da existência desse submundo. Ele pensava até aquele momento que o cristianismo havia varrido da Europa esse tipo de ocultismo. Porém havia muito mais sobre as sombras que ele nem poderia imaginar.

Jack se referia a todos eles como "as criaturas da noite" ou "as crianças da noite", um pequeno feudo de pessoas que flertavam perigosamente com as forças do outro lado. Não as forças das luz, mas sim as forças das sombras. Jack, ás vezes, assistia tudo de longe, escondido em alguma penumbra. Havia muitas invocações, bebidas estranhas eram tomadas pelos participantes e de vez em quando alguma presença maligna chegava a ser sentida. Seus superiores tinham dado ordem para ele expulsar todos que encontrassem para fora do cemitério, mas Jack era um homem prático. Enquanto não houvesse aberturas de túmulos ou violações de corpos, ele tolerava aquela presença. Afinal, se havia alguém culpado em profanar túmulos naquele lugar era o próprio Jack, como ele já havia confessado.

Cap. II - A Universidade de Medicina
Mark retornou para a universidade pela segunda de manhã. Era a volta à velha rotina estudantil. De fato o curso de medicina era extremamente puxado, um choque de realidades envolvendo a esbórnia dos fins de semana e as aulas intermináveis da semana. Para aliviar um pouco o stress de passar o dia correndo pelos corredores, indo de uma sala de aula a outra ele se reunia com seus amigos na parte da noite na área externa do campus. Ali eles bebiam um pouco, conversavam sobre o mundo, recitavam poesias. Gostavam de se ver como um clube de literatura. Membros da fina flor intelectual escocesa, era natural que levassem aquele estilo de vida dândi.

Ao lado de Mark estavam sempre seus bons amigos, John Robinson e William Clark. Todos jovens como ele, ali na faixa dos vinte e poucos anos. Tinham a vida toda pela frente. Robbie e Bill (seus apelidos dentro do grupo de amigos) sempre ficavam intrigados e interessados nos relatos de Mark. O que ele teria aprontado no fim de semana? Nesse dia em particular Mark tinha mesmo muito o que contar. Ele havia conhecido o velho tio da garçonete pela qual ele era apaixonado. Um senhor que trabalhava como... coveiro da cidade! Estranho, muito estranho.

Porém a ideia ali era mesmo relaxar, contar algumas piadas, ouvir histórias bizarras, tudo para passar o tempo. Mark lhes contou que o velho havia flagrado pessoas andando pelo cemitério na madrugada, fazendo rituais de velhas seitas pagãs. Robbie, assim como havia ficado Mark, simplesmente não acreditou que ainda havia paganismo na Escócia! Era surreal. Aliás eles como estudantes de medicina estavam obviamente mergulhados em pura ciência. Sentimentos religiosos eram encarados como crendices populares, uma herança distante de um tempo que para esses jovens que se sentiam imortais não trazia mais nenhum sentido. Talvez apenas uma curiosidade sociológica. Nada mais do que isso.

Robbie provocou. Quem sabe eles não poderiam por pura farra ir para o cemitério à noite para ver com os próprios olhos esses "medievais". Seria divertido, engraçado, bizarro, tudo ao mesmo tempo. Além disso ia trazer uma anedota para que eles pudessem contar pelo resto de suas vidas. A ideia empolgou os dois amigos, mas Mark ficou com um pé atrás. Afinal o velho coveiro era o tio da garota pelo qual ele estava caidinho. Valia a pena se queimar assim? Só pela farra de seus colegas de universidade? Era muito arriscado, mas nessa idade quem pensa com seriedade? É um jogo divertido de cartas meu caro.

A semana transcorreu sem maiores problemas. Havia muitas aulas e naquele semestre em particular Mark estava prestando praticamente todas as matérias sobre anatomia. O corpo humano o fascinava. Ele tinha aquela máquina da natureza como um conjunto perfeito o que em sua opinião exigia a presença de um criador. Anos antes do advento da inteligência de design, Mark já ficava pensativo sobre tudo o que aprendia. Desde a menor célula, até o mais bem organizado e complexo membro ou órgão, tudo tinha sua função. Não havia espaço para o inútil dentro do nosso corpo. Era fabuloso. Para Mark havia uma inteligência por trás de tudo aquilo. Não poderia ser mero acaso, definitivamente não haveria como!

Durante a semana Mark se comportava como um estudante de medicina exemplar. Ele tinha boas notas, era considerado um aluno inteligente pelos professores e se revelava uma pessoa bem sociável entre os colegas de universidade. E freqüentar uma universidade naquele época era mais do que um privilégio. Era um verdadeiro sinal de que assim que formado haveria empregos, bons salários e um futuro promissor pela frente. E para isso não era necessário ser o mais inteligente dos homens. Se o jovem médico optasse por morar no interior, em pequenas cidades, ele também teria uma vida de privilégios, pois os médicos eram ao mais bem pagos por onde passavam. Era uma vida cheia de promessas no futuro, um sensação de sucesso enchia a todos de orgulho.

Claro, naquele meio também existiam os patifes, os pequenos canalhas e os assumidamente escroques. Todos eram, em maior ou menor grau, filhos da elite escocesa, pois o curso exigia vários anos de estudo e era necessário para isso uma família abastada e rica por trás. Os livros custavam pequenas fortunas e manter um estudante de medicina naquele tempo custava caro. Só as famílias mais ricas podiam dispor desse privilégio.

E no plano de futuro brilhante também havia a expectativa que o jovem médico escolhesse uma bela dama para se casar. Uma moça de família de sobrenome, a mulher que seria a ideal para um jovem médico em começo de carreira.

Era justamente isso que Mark mais temia. Ele era apaixonado por Katja, a garçonete filha de um coveiro. Impensável para sua mãe ter uma nora assim. Ele podia inclusive ouvir a voz de sua mãe berrando em sua mente numa hipotética situação dela um dia vir a descobrir tudo. Era enervante. A mãe dominadora provavelmente teria um colapso nervoso caso viesse a saber que Mark, seu filho motivo de orgulho, era apaixonado por uma vagabunda. E o que dizer de seus excessos na bebida?

Conforme a semana ia chegando ao fim Mark começava a salivar, a sentir um enorme desejo de tomar uma bebedeira. Ele sabia que isso era sintoma de que provavelmente ele iria desenvolver nos próximos anos um alcoolismo crônico. Porém é a tal coisa, quando se é jovem e se tem o futuro pela frente tudo é possível, nada parece ser trágico, cinza ou negro em seu futuro. Tudo parece brilhar, é claro. Só que contra fatos não há argumentos. Mark sentia a abstinência. Assim quando mal acabavam as aulas na sexta-feira pela tarde ele corria, subia em uma carruagem e ia para o interior, freqüentar as piores e mais esfumaçadas tabernas. Ele queria se esbaldar, com muito álcool, sexo pago e aquele clima de vida boêmia decadente e depravada que ele tanto amava.

E sim, havia ainda Katja, seu amor bandido. Mark não via a hora de se deitar com ela, ficar enrolado em seus braços, sentir aquele cheiro de perfume barato que tanto o excitava. Era um paradoxo. Quanto mais Katja parecia vulgar e dissoluta, mais ele parecia se apaixonar por ela. Quanto mais ela quebrava convenções, mais ele se derretia. Psicologicamente era um portão de liberdade. Liberdade de se ver preso a semana inteira na imagem de jovem impecável, de jovem promissor. Ele queria a esbórnia, queria a embriaguez.

Cap. III - O Cemitério
Naquele fim de semana Mark finalmente resolveu que iria até o cemitério, tarde da noite. Queria ver o que se passava. Já meio embriagado ele partiu ao lado de Katja pelas ruas escuras da cidade.

- Vamos encontrar seu tio – vamos lá! – gritava Mark enquanto caminhava. Ele via as pedras das calçadas brilhando ao luar.

- Fale baixo, cala a boca, vão nos prender por arruaça – devolvia Katja com os braços de Mark em seu ombro.

Ele tinha uma garrafa de whisky numa das mãos e na outra segurava Katja com força. Imaginem o escândalo caso sua nobre família o visse daquele jeito. O tio de Katja estava de plantão naquela madrugada. Era a velha história dos adeptos de ocultismo e paganismo invadindo o cemitério de noite para fazer seus rituais de satanismo. Havia até mesmo adeptos de uma nova linha de ocultismo francês, que havia sido compilado em um livro de sucesso chamado “O Livro dos Espíritos”. O autor? Um professor desconhecido que havia adotado o nome de Allan Kardec. No cardápio muita necromancia e invocação de mortos travestido de bom mocismo. O velho professor estava de olho mesmo nas vendas dos livros, mas no fundo acreditava em toda aquela nova doutrina de clara linhagem de anjos caídos.

A entrada no cemitério foi tranquila. Os velhos portões enferrujados estava entreabertos.  Era um velho cemitério decrépito, com suas antigas lápides, encobertas por vegetação rasteira. Aquelas pessoas tinham morrido há muitos anos. Provavelmente seus familiares também estavam mortos. Assim não havia mais quem se importasse com os túmulos. Com o abandono a natureza voltava a tomar conta.

Era aquele clima de abandono e solidão. Aqueles nomes nas pedras já não significavam nada para ninguém. O tempo, senhor de tudo, já havia de certo modo apagado da memória dos vivos a história daquela gente que jazia sete palmos abaixo da terra. Quem foram? Quem eram? Quais eram suas personalidades? O que faziam quando eram vivos? O que pensavam? Tudo havia se perdido nas areias do tempo. Dizem que nenhuma alma se apaga. É uma visão romântica. A maioria das pessoas terá suas memórias apagadas para todo o sempre. As ditas pessoas comuns serão esquecidas. Suas pegadas serão apagadas. Nem seus descendentes vão se lembrar delas após alguns anos. A morte é a morte também da lembrança, da memória.

E no meio desses pensamentos melancólicos Mark e Katja foram adentrando pelas ruelas do velho cemitério decrépito. Ela olhava acima dos ombros em busca de seu tio. Ele, meio bêbado, não estava preocupado. Tinha o calor do corpo de Katja ao seu lado. Era tudo o que ele queria na vida, no final das contas. Foram andando, andando, de vez em quando se lia algum nome de algum morto até que...

Eles ouviram barulhos. Pareciam tambores. Parecia gente cantando uma música estranha. Eram os pagãos, com certeza. Mark colocou o dedo sob a boca, fazendo aquele gesto de “silêncio” que todos conhecemos. Havia uma fogueira, se via pela claridade do fogo no meio da escuridão da noite. Mark e Katja foram em sua direção, se agachando um pouco para que ninguém os visse. Era um misto de aventura, mistério, tudo junto. Embiaguez de sentidos.

Ao subirem o pequeno morro viram então a cena. Eram de cinco a seis mulheres. Elas dançavam ao redor do fogo. Gritavam e cantavam numa língua estranha. Parecia um velho idioma dos druidas. Era obviamente uma cerimônia antiga, uma coisa de invocação de espíritos da natureza. Era o que os antigos costumavam chamar de bruxaria. Se fosse ainda os tempos da santa inquisição aquelas mulheres seriam queimadas na fogueira com toda a certeza.

Elas pareciam invocar o nome de demônios. Nomes que Mark desconhecia, mas que soavam um pouco familiares. Eram nomes de anjos caídos, de seguidores de Lúcifer. O que aquelas mulheres queriam com aquilo show de bizarrice? Era apavorante, estúpido, ridículo, tudo ao mesmo tempo. Claro, havia ali também um prato servido para sociólogos e teólogos em geral. Afinal ver um bando de mulheres nuas dançando em volta de uma fogueira, com atacas nas mãos, invocando antigos nomes de demônios, definitivamente não era algo que se via todo dia.

Até que Mark ouviu um barulho vindo do meio da escuridão das árvores. Parecia uma fera grunhindo de fúria perto de atacar. Era um rosnado aterrorizador, é verdade. Mark colocou as mãos sobre o paletó e percebeu que estava totalmente desarmado. Se aquele bicho resolvesse atacar ele não teria nem ao menos como se defender... Se havia momento para ter medo, bom, aquele era a hora certa para isso...

Cap. IV - O Lobo
Chorem crianças da noite, chorem! - Mark conseguiu ouvir essa ladainha bem no meio da tensão. Uma criatura estranha o enxergava por entre as árvores. Árvores de cemitério. Velhas, longas, sinistras... O animal foi se aproximando, mas ainda sem se revelar. Era algo não natural. Parecia um lobo, mas de porte extremamente avantajado. E aqueles olhos vermelhos, bem, aquilo não lhe parecia familiar? Era a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. A fúria e a violência. Nada de paz provinha daquele bicho.

Então ele se colocou por fora das sombras. A luz do luar iluminou a cabeça daquela insana visão. Mark ficou em alerta. Ele não queria fazer um gesto brusco porque isso poderia assustar aquela criança da noite! E então o animal começou a rosnar, a rosnar, era o prelúdio de um ataque iminente. Mark percebeu que tinha apenas alguns segundos e então.. o pulo fatal!

Ele se esquivou, mas não escapou de ser machucado pelas garras da fera. O sangue escorria em seu ombro. Mark então se abaixou e pegou uma pedra enorme, provavelmente pedaços de uma lápide secular. Ele ficou jogando a imensa pedra de mão em mão, olhando a besta nos olhos. Era uma dança corporal que passava a mensagem que haveria reação, que caso fosse atacado ele iria revidar. Besta dos infernos ou não, cão de Satã ou não, haveria luta. Mark, cerebral agiu como se tivesse pronto para a guerra com seu opositor.

O animal deu uma segunda investida e cravou os dentes no ombro de Mark. Ele caiu ao chão, viu de perto os dentes da fera pingando com seu sangue. Com adrenalina a mil nem pensou duas vezes e bateu a pedra na cabeça do bicho. Deu certo. A pancada surtiu efeito e o monstro bateu em retirada. A violência e a força do ataque acabou chamando a atenção de todas as pessoas que estavam no cemitério, até mesmo das garotas pagãs que se vestiram e saíram correndo em direção a Mark para prestar socorro.

Ele caído no chão, com a roupa rasgada e o sangue escorrendo pela camisa.  "O que aconteceu? O que aconteceu?" - gritavam as aprendizes de bruxas do inferno. "Fui atacado por um lobo!" - Respondeu Mark, ainda desnorteado pelos acontecimentos. Apoiado nas meninas ele se levantou. Sacudiu para tirar a areia. Areia de cemitério. A mesma que era jogada em cima dos caixões putrefatos dos corpos sem vida. Então as garotas o levaram até o portão. Só que havia um problema;. Mark parou, olhou para trás e gritou: "Katja, onde você está?"

Mark acordou no hospital. Ele estava mal. O animal que o atacou gravou os dentes em seu ombro. O ferimento foi feio. Rasgou a pele e danificou várias veias e músculos. O quadro não era bom. Ele ardia em febre. Seu pai ficou espantado ao saber das circunstâncias do ataque. O que diabos Mark estava fazendo em um cemitério? Que bicho o atacou? Por que ele não avisou sua família? Eram questões que todos se perguntavam.

Mark ficou doente e febril por três dias seguidos. Coisa grave. Só que para espanto dos médicos, após o terceiro dia ele teve uma melhora espantosa. O ferimento deixou de inchar e um risco de infecção foi descartado. No quarto dia ele parecia muito bem. Sentou na cama, andou pelo quarto, falou alegremente com os familiares. Parecia ter se recuperado bravamente! Até o corpo médico que o atendeu ficou surpreso! Era caso de entrar nos estudos da medicina.

No sexto dia Mark pegou sua camisa, seu casaco e saiu do hospital. Os médicos não lhe deram alta. Ele se deu alta. Acordou, lavou o cabelo, escovou os dentes e se foi. Sua primeira parada não foi na casa dos pais, mas na de Katja. Ele estava preocupado com ela. O que aconteceu com a garota pela qual ele tinha tantos sentimentos? Ele estava muito preocupado, porque em seus lembranças difusas ele viu ela sendo brutalmente atacada pelo bicho. Aquilo havia acontecido mesmo ou era fruto de uma mente em delírios, após a grande febre que teve no hospital?

 A notícia não foi nada boa. Jack Anderson, o velho coveiro, tio de Katja, lhe deu a terrível verdade.

- Katja está morta! - O velho era duro, sua profissão lidava com a morte, mas agora ele estava realmente entristecido.

- Meu Deus! Eu não acredito! - Mark, com lágrimas nos olhos, não conseguia acreditar. Ele se abaixou e ficou ema posição que mostrava sua vulnerabilidade emocional.

- O lobo a matou. Ele arrancou a cabeça dela - O tom do velho Jack era estarrecedor.

- Não, não... não... - Mark não conseguia acreditar no que estava ouvindo...

O  velho coveiro então percebeu que Mark tinha pedaços de curativos saindo por seu casaco. Ele percebeu que Mark tinha sido ferido também pela criatura. Isso não era um bom sinal, pelo contrário, era um péssimo indicativo. O velho acreditava em velhas lendas... como a de homens que viravam feras em noites de lua cheia. Para ele o ataque do "lobo" nada mais era do que o ataque de um "lobisomem" e como tal isso condenaria a vida de Mark para sempre. Se em algum momento, durante o ataque, seu sangue teve contato com o sangue do monstro feroz, então ele também estava condenado.

Cap. V - O Monstro
Mark virou-se e saiu, meio tonto pela ruas molhadas pela chuva. Foi uma imersão traumática para ele, do ponto de vista psicológico. Isso porque ele amava Katja, mas ela agora não passava de um cadáver. Ele queria saber o que tinha acontecido, o velho até estava disposto a lhe dizer, porém não naquele momento. O coveiro iria se inteirar dos acontecimentos. Saber o que havia mesmo acontecido. Caso Mark começasse a apresentar um comportamento estranho, o velho estava disposto a usar seu rifle para dar um tiro em sua cabeça. Mais uma criatura metade lobo, metade homem, seria demais para aquela pequena cidade.

Mark foi se recuperando aos poucos. A cada dia ele ganhava uma dose de normalidade. Começou a beber muito, na maioria das vezes para superar o trauma da morte de Katja. Era algo que ele não conseguia entender. O que havia acontecido naquela noite? Uma fera saindo das sombras, atacando as pessoas em um cemitério, durante uma noite de luar? Não fazia muito sentido. Era algo complicado de entender. Muitas perguntas ficaram sem respostas. Tudo havia ficado pelo caminho.

Numa tarde recebeu a visita do inspetor da cidade. Ele estava investigando a morte de Katja. Queria saber como ela havia morrido. Mark não tinha muito o que esclarecer. Ele mesmo tinha muitas dúvidas sobre tudo. Se alguém estava em busca de respostas era ele mesmo. O velho policial não gostou da atitude de Mark. Achou ele evasivo e fraco em seu depoimento. Desconfiado, colocou Mark na lista de suspeitos. Ele era um jovem rico, estudante de medicina, de uma ótima família tradicional, mas nada disso impedia de quem sabe ser indiciado pelo crime.

Durante a primeira semana após o ataque Mark foi notando algumas diferenças. Ele não conseguia mais se concentrar nas aulas e tinha tonturas e crises de vômitos, todos os dias isso acontecia. Ele estava tão deprimido que ignorou os sinais que seu corpo estava lhe passando. Outro fato também o deixou perplexo. Sua fome aumentou consideravelmente. E não era uma fome como outra qualquer. Era algo voraz. Ele não se satisfazia com o que estava acostumado a comer todos os dias. Agora Mark queria grandes fatias de carne, e se essas fossem sangrentas, muito melhor!

Ele passou a frequentar o restaurante especializado em assados e caças. Ele nunca havia ido muito por lá, mas agora era uma necessidade vital que sentia. Mal as aulas caminhavam para o final e ele já estava nos corredores, correndo em direção à comida. Queria comer, comer, comer, muito carne, sempre, sem intervalos. Virou algo obsessivo e doentio. Seus colegas de faculdade logo notaram isso. E mais de uma vez surgiu na classe com a roupa suja de sangue da carne que havia comido. Logo ele, um verdadeiro dândi no modo de vestir. Agora parecia o porco de uma açougueiro... o que estava acontecendo?

Ele não sabia disso, mas o estudante de medicina Mark Longbridge III havia se transformado em um monstro. Nas noites de lua cheia ele perdia a consciência humana e se transformava em um lobo feroz, uma fera em busca de carne! A fome era insuportável, assim qualquer coisa que se mexia era atacada ferozmente. O lobo causou pânico e terror por onde passava. A polícia já sabia que algo estava acontecendo. Era raro não aparecer o corpo de algum camponês ao amanhecer. Algo estava fora de controle e algo sedento por sangue.

O velho Jack Anderson, o coveiro, sabia muito bem o que ocorria. Ele entendia a lenda. Os eruditos se recusavam a acreditar em lobisomens. Isso era coisa de gente ignorando do interior. Mas Jack, um velho experiente, que não se surpreendia com nada, bem sabia o que se escondia por trás das sombras. Ele então decidiu que iria matar o monstro. Lamentava que com isso também iria eliminar Mark, mas isso era algo que não poderia mudar. O ser humano teria que ser sacrificado com a morte da fera. A bestialidade não poderia mais andar à solta nos bosques.

O que ninguém sabia é que Jack já havia tratado com esse tipo de coisa antes. Ele era muito interessado em ocultismo e sabia que forças sobrenaturais agiam no mundo material que conhecemos. Para lobisomens apenas balas de prata eram eficientes. Ele então foi até o amigo que trabalhava com forjamento de metais e pediu que ele fizesse um conjunto de seis balas de prata. Uma vez armada com o tipo ideal de munição se colocou à moita, esperando Jack passar na madrugada. Ele conhecia a rotina do jovem.

Cap. VI - A Noite
Na noite ideal ele começou a seguir os passos de Mark. Ele parecia meio desorientado quando adentrou o bosque da região. Com as mãos no rosto mal conseguia ficar em pé, então caiu. A transformação iria começar. Em poucos minutos sua feição começou a mudar. Era uma transformação dolorosa e insana. O velho Jack então se posicionou, colocou as balas no rifle e fez mira.

- Morra, enviado do diabo - morra! - Foram suas únicas palavras.

O estampido do tiro espantou os pássaros. O tiro não foi certeiro, atingindo apenas o ombro da fera. Essa deu um pulo de sobressalto, procurando pelo atirador. Os olhos vermelhos de ira denunciavam que o ser humano não existia mais, apenas a besta.

Então o velho Jack mirou com capricho em seu coração. E apertou o gatilho. A bala acertou em cheio...

Um ruído assustador cortou a madrugada. A fera caiu de frente, com as mãos tentando segurar o sangue que jorrava.

Mais um tiro, nas costas. Três balas de prata já cravavam o corpo do monstro.

O animal então caiu definitivamente. Estaria abatido?

O velho Jack chegou perto para conferir. E para não restar dúvidas deu mais dois tiros de prata, os chamados tiros de misericórdia. O animal deu seu último suspiro.

Jack não perdeu tempo e foi embora do lugar. Alguém poderia ter ouvido os tiros. Ele não queria ser acusado de assassinato.

E ali naquela lareira abandonada, iluminada apelas pela luz opaca da Lua, o jovem Mark começou a ressurgir. Ele estava morto, com as roupas rasgadas, o ombro nu, sangrando...

Era o fim de sua vida, era o fim de todos os seus sonhos... ou não?

Cap. VII - O Uivo do Lobo
Mark não morrera. As balas usadas pelo coveiro não tinham o teor necessário de prata pura para matar o lobo, apenas para suspender por um curto período de tempo sua transformação. O velho coveiro não teria dinheiro mesmo para comprar prata de alto nível de pureza. Mark estava vivo. Ele recobrou sua consciência levando as mãos em seu rosto. Sentiu como se 1 tonelada estivesse pressionando sua cabeça. Era uma dor terrível, mas ele havia retomado a consciência de si mesmo, de onde estava. As roupas rasgadas, sujas, cheias de lama... sangue coagulado em seus braços e mãos. Aquela noite que passou havia sido mesmo uma noite infernal, sob todos os aspectos.

Mark então se levantou. Ele ainda cambaleava, procurando por uma direção. Por sua sorte foi visto por uma jovem colega da universidade de medicina. Ela ficou horrorizada com o que estava vendo. Mark estava em frangalhos, ou melhor dizendo, suas roupas estavam esfarrapadas. Naquele momento parecia o mais imundo escocês do mundo - mais sujo do que os mendingos que andavam pelas ruas da cidade. Sua conhecida (veja bem, não era sua amiga, mas eles se conheciam), correu e usou o grande lençol que estava usando para seu pic-nic para cobrir Mark.

- Meu Deus! O que lhe aconteceu? - Isabel estava em choque. Mark não respondeu. Ele tinha problemas de se manter em pé. Imediatamente entrou na carruagem da amiga que o levou até um pequeno hotel nas vizinhanças. Mark mandou comprar roupas novas e depois de um longo banho estava novamente apresentável. Parecia finalmente um ser humano.

Ele se deitou na cama e ficou pensativo. O que havia acontecido mesmo? Ele tinha lapsos de memórias, apenas momentos breves surgiam em sua mente. Suas lembranças tinham cheiro e gosto. Cheiro e gosto de sangue humano. Lembrava de lutas, suor, fedores, adrenalina destroçando sua mente. Eram lembranças do momento em que se transformava em um monstro, em um lobo.

Como todo rapaz de sua geração ele também conhecia a lenda dos lobisomens. Era algo bem explorado por livros de bolso, publicações sensacionalistas. Era pulp fiction por excelência. Só que Mark também sabia que algo havia lhe acontecido. Verdade ou mentira, lenda ou realidade, ele sabia que algo havia lhe atingido. Sua mente de médico (ou de quase médico, já que ele ainda não havia se formado) se colocou a pensar. Ele poderia estar contaminado por algum vírus nunca estudado pela ciência médica. Ele poderia estar passando por alguma doença desconhecida. Virar simplesmente um monstro não era algo que lhe parecia crível. Era algo insano, fora de realidade, coisa de gente ignorante das pequenas vilas de interior. Mark tinha que achar a resposta, antes que fosse tarde demais...

Cap. VIII - Sexo, fúria e selvageria
Mark se tornou um lobo naquela mesma noite. Era sexta-feira de lua cheia. Impossível resistir ao chamado do lobo. Logo ele começava a suar em profusão, sentindo sua pele se revirar completamente. Era uma dor insana, uma dor da morte. Seus dentes caninos cresciam e forjavam sua caixa craniana. Geralmente nesses momentos ele desmaiava da dor insuportável que sentia. Perdia os sentidos. O homem era deixado de lado. A basta fera tomava o controle. E uma vez dominado, não havia mais nenhum pensamento racional em sua mente. Tudo que pensava em satisfazer seus desejos mais primitivos, como fome e sexo.

A fome logo foi saciada no bosque. Um cervo passeava tranquilamente na floresta, pensando estar seguro, coberto das sombras, quando o lobo o atacou. Era Mark transformado. Ele imediatamente atacou a jugular da pobre criatura. o sangue jorrou e lhe trouxe um prazer indescritível. Era insano, era selvagem, era maravilhosamente delicioso. Enquanto o animal morria, vendo sua vida escorrer por suas artérias, Mark se saciava, dando grandes mordidas em seu couro forte e resistente. Quando a pele finalmente rompia ele gritava para a luz do luar. Estava em êxtase completo.

Foi quando ouviu galhos se quebrando. Era uma pessoa. Melhor, era uma mulher. Andando no meio da floresta, no meio da noite, completamente indefesa. Tudo o que o lado bestial de Mark mais queria. Após saciar sua fome era hora de saciar sua lascívia. Não houve tempo de reação. A pobre garota gritou, mas não havia ninguém para ouvir. Mark pulou em cima dela, arrancando suas roupas com os dentes. Logo dois lindos seios rosados foram iluminados pela luz da lua da meia noite. Mark a possuiu com ferocidade, ali mesmo, no meio do mato, na areia do solo da floresta. Seu membro absurdamente aumentado por sua transformação praticamente rasgou a pobre garota em duas! Foi uma cena que o próprio Satã assistiu, tomando doses de vinho milenar e dando gargalhadas no meio da noite.

- Veja, seu desgraçado... Seu bastardo... veja... no que sua "genial criação" se transformou! - Era o anjo caído debochando e desafiando Deus. Era óbvio que ele, mais uma vez, queria demonstrar que o ser humano, dito como a maior criação de Deus, era uma piada infame. O seu ser humano, agora transformado em besta, devorava viva uma bela jovem loira de olhos azuis - Tome seu bastardo, tome seu canalha - Gritava Satã entre gritos e risadas diabolicamente ensandecidas.

Mark, ou melhor, a besta, continuou a possuir com ferocidade a jovem garota. Depois em um momento de pura fúria teve um orgasmo absoluto, feroz, incomparável. Ele estava fora de si, transformado em lobo. Lembrou de Katja, sua jovem amada, agora dentro de um caixão. Pensou em ir ao cemitério para tirar ela da sepultura, para fazer amor com seus restos mortais.

Satã, com seu poder de entrar na mente de Mark, deu risadas histéricas daqueles pensamentos. Imagine, depois de um ato de bestialismo, teríamos agora um ato de necrofilia. Esse Mark era realmente um de seus filhos malditos, um de seus ungidos nas escuras cavernas do inferno profundo. Satã dançava entre as árvores da floresta, ria de forma sarcástica, bebia o vinho derramando em seu corpo. Era a personificação do deboche, da blasfêmia, da sagacidade. Poucas vezes ele havia se divertido tanto como naquela noite escura.

Cap. IX - Carta a um Amigo...
Quando os inspetores entraram no quarto onde Mark vivia encontraram uma grande bagunça. Roupas rasgadas (e cheias de sangue) pelo chão, mau cheiro, podridão, moscas. Nada parecia lembrar o asseado estudante universitário do passado. A polícia já estava atrás de Mark há alguns dias. Ele foi visto saindo, praticamente nu, de uma das cenas de crime. Ali perto, a poucos metros, jazia o corpo de uma jovem que havia sido literalmente estraçalhada por uma selvageria poucas vezes vista. Assim o inspetor John Winston já sabia por quem procurar.

Ele começou uma série de investigações e descobriu alguns fatos interessantes. Mark há muito já não frequentava as aulas na universidade. Estava sempre apresentando um comportamento estranho, esquisito. Não falava mais com os velhos amigos, parecia perturbado da mente e do corpo. Seu cheiro ruim passou a ser comentado por colegas de classe. Ele não conseguia mais prestar atenção às aulas e fugia das provas. Numa dessas ocasiões chegou a quebrar um lápis bem no silência do teste. Aquilo chamou a atenção de todos. Ele apenas se levantou, jogou a prova no chão e se foi, grunhindo algumas palavras que ninguém entendeu.

Parecia estar sempre suado, enervado, colérico. O menor sinal de aborrecimento levava à ira. O menor comentário que ele considerasse ofensivo... partia para cima de quem dissesse tais palavras. De jovem calmo, sereno, amigo, culto, passou a ser visto como um sujeito rude, grosso, ignorante. Estava sempre vermelho, prestes a explodir. Era irascível, brigão... parecia estar sempre em busca de briga. Virou um valentão nos corredores da universidade. Destruiu sua imagem, virou uma paródia de si mesmo. Esse foi o quadro que surgiu de diversas entrevistas com outros estudantes.

Na carta que foi encontrada dentro de seu quarto, o inspetor descobriu mais sinais de que ele poderia ser o assassino selvagem e mordaz que estava há tempos procurando. A carta estava amassada, quase rasgada. Foi encontrada dentro de um balde onde o estudante jogava fora suas anotações. Era algo bem bizarro ter encontrado aquele manuscrito no meio de um monte de outras folhas de estudo. Ele estava com a mente alterada, por isso não devia se esperar por algo lúcido.

A carta tinha o seguinte teor: "Carta a um amigo. Estou muito mal nos últimos dias. Tenho passado por sintomas estranhos. Tenho momentos de delírio e loucura. Alucinações passam pela minha mente. Me vejo como um lobo no meio da floresta, correndo entre as árvores, predando pequenos e grandes animais. Sinto uma vontade imensa de consumir carne... humana! Quero matar, quero dilacerar... não sei o que está acontecendo comigo. Em um raro momento de lucidez nos últimos dias fui até a biblioteca da universidade em busca de respostas. Nos livros de medicina encontrei algo que pode ser a resposta para minhas perguntas. A palavra que pode me salvar é: licantropia! É isso, vou atrás de um especialista, vou atrás de cura... precisa me curar! Meu Deus... me ajude!"  

Cap. X - Mausoleum
O corpo de Mark foi encontrado alguns dias depois em um caminho para a cidade de Glasgow. Ele estava no chão, caído ao lado de sua carruagem de dois cavalos negros. O inspetor John havia acompanhado Mark nos últimos dias ao lado de dois investigadores. Trazia em mãos seu mandado de prisão. Não houve tempo de cumpri-los. As investigações revelaram que no últim dia de sua vida Mark comprou uma espingarda de caça a raposa. Depois comprou dois pacotes de muniação especial. Eram balas de prata, tiradas das minas de Montana, nos Estados Unidos. Algo caro, que apenas um jovem de família rica como ele conseguiria comprar tão facilmente.

Quem o encontrou foi um senhor, um velho camponês que morava perto. E ele tinha mais a dizer. Disse aos policiais que ouviu o tiro que matou Mark, mas que não foi até o local por puro receio de também sofrer alguma violência. Havia ladrões e bandidos atuando naquela área, principalmente pelas madrugadas. No dia seguinte, ao amanhecer, foi até o caminho e encontrou Mark morto no chão. O inspetor John descobriu que Mark havia se matado com um tiro na cabeça. O mais estranho em seu corpo é que um de seus braços estava absurdamente peludo para um ser humano.

A conclusão que o inspetor chegou foi algo que ele guardou apenas para si mesmo. Seria absurdo colocar isso em um relatório policial. Apenas em sua mente ele decifrou os acontecimentos. Era óbvio que Mark havia se matado durante sua jornada. Mas o que aconteceu? Para o inspetor ele começou a sofrer uma transformação. Era sexta-feira, noite de lua cheia. Sim, o inspetor, mesmo que não dissesse isso a ninguém, estava convencido que Mark estava se transformando em um lobisomem naquele momento. Desesperado, já com o braço direito em transformação, ele desceu da carruagem, pegou seu rifle, armou com duas balas de prata e atirou contra sua cabeça. Esse foi o seu fim.

Dentro da carruagem do suicida, o inspetor encontrou um livro chamado "Lendas e maldições do Lobisomem". Estava claro que Mark o estava lendo, pois havia muitas marcações em suas páginas. O inspetor pegou o exemplar e o tirou da cena do crime. Ele iria defender a tese de que Mark sim havia se matado, mas o havia feito em um surto psicótico. Ele estava sofrendo de algum distúrbio mental não diagnosticado. No auge da loucura havia decidido acabar com tudo. Esse seria o teor de seu relatório. Para poupar ainda mais a família e evitar problemas para ele, como servidor público, omitiu do relatório qualquer ligação de Mark com as mortes de mulheres. A família poderia ficar ofendida e destruir sua carreira, caso isso viesse a parar nos jornais.

Mark foi enterrado no cemitério local, na área reservada às famílias tradicionais e mais ricas da cidade. Não muito longe dali, na chamada "viela dos pobres", onde pessoas mais humildes eram enterradas, havia sido enterrada sua amada Katja. Eram tão jovens... morreram tão jovens... era algo a se lamentar. A família de Mark ficou arrasada e muito consternada com sua morte. Ele foi sepultado no bonito mausoléu de seu clã. Seu caixão foi depositado ao lado do lugar onde seu avô, um dos homens mais ricos da história da Escócia, há alguns anos jazia.

Curiosamente, com o passar dos séculos, aquele mausoleum ganhou fama de amaldiçoado pelas pessoas que moravam na cidade. Dizia-se que em noites escuras de lua cheia um lobo solitário, todo branco, ai até lá e uivava para a luz do luar. A fera tinha olhos vermelhos de sangue e não parecia ser desse mundo. A lenda urbana iria inspirar um jovem escritor a colocar no papel toda a história que era contada nas tavernas da região. Era a história de um jovem rico, estudante de uma das principais universidades escocesas, que nas noites escuras se transformava em uma besta assassina. Quem poderia discordar de algo assim? Absolutamente ninguém... O uivo do lobo nas noites tem seus próprios segredos seculares...

Pablo Aluísio.