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domingo, 6 de dezembro de 2009

O Vampiro de Versalhes

Cap I - Um Conto Vampiresco
Louis de Bourges foi um jovem afortunado. Nasceu em uma família nobre, pertencente da Casa de Boubon. Foi criado brincando nos jardins de Versalhes com o pequeno Luís. Quem seria esse amigo de infância no futuro? Ora, seria o futuro rei Luís XVI, de triste memória, pois o destino quis que ele se tornasse o último monarca da França pré-revolução. O adolescente Bourges também foi grande amigo de juventude de Maria Antonieta. Quando ela foi para Versalhes, vinda de sua terra natal Áustria, a garota tinha apenas 14 anos de idade. Mal sabia falar a língua de seu futuro marido. Na época era comum as casas nobres trocarem casamentos entre seus membros. Era uma forma de selar a paz entre países e nações.

Sua vida humana foi no luxo, na fartura e na festa, isso na corte mais luxuosa e excêntrica da Europa. Memoráveis as festas à fantasia promovidas pela amiga Antonieta, onde todos os membros da corte surgiam em fantasias belíssimas, com muita pompa e elegância. Tempos maravilhosos. Bourges não tinha muitos talentos pessoais, não era particularmente estudioso e tampouco se preocupava em construir o futuro com seus próprios méritos. Isso não existia, em absoluto. Só pelo fato dele ser um nobre já o definia como um homem bem sucedido. E o fato de ter sido amigo pessoal do casal que reinava na França o qualificava para qualquer cargo público que quisesse, onde pretendesse e com o salário que pedisse. Era assim naquele mundo de altos privilégios.

Só que a besta foi solta. E o que era a besta? Era a revolta do povo francês. Durante anos o povo foi esmagado por uma grande crise financeira. Enquanto o povo passava fome a corte de Versalhes se banhava em festas cada vez mais extravagantes. A Rainha Maria Antonieta desfilava com seus vestidos maravilhosos e seus excêntricos penteados ao estilo Poof. Havia ai uma tensão. O povo sustentava a classe nobre parasita enquanto mal conseguia colocar um prato de comida para seus filhos. Maria Antonieta e os nobres viviam de pura ostentação. O rei Luís XVI logo ganhou uma fama de fraco e impotente pois não conseguia consumar seu casamento para gerar um herdeiro. Havia um clima de panela de pressão prestes a explodir a qualquer momento.

Louis de Bourges não parecia preocupado. Com 19 anos de idade ele estava mais preocupado em levar para a cama as moças da pequena nobreza. Nem é preciso lembrar que a devassidão sexual imperava em Versalhes. Todas as mulheres eram de todos os homens. E algun homens também eram homens de outros homens. Embora a monarquia passasse a imagem oficial de católica e conservadora, o fato é que a luxúria imperava. A Rainha Maria Antonieta logo ganhou fama de devassa, com gravuras pornográficas sendo vendidas em toda Paris. Bourges não se importava. Ele detestava política, além disso estava em uma fase de vício em sexo, de todas as maneiras, de todas as formas. Sua pecadora existência porém estava prestes a chegar ao final. Em pouco tempo a Revolução Francesa bateria à porta de sua tranquila e perfeita vida. O mundo estava prestes à virar de ponta-cabeça.

Fazia quantos anos que Louis havia visitado Versalhes pela última vez? Essa conta não se faz com anos, mas com séculos. Fazia seguramente mais de 2 séculos que ele havia atravessado aquelas portas... e agora tudo parecia tão diferente. Não havia mais toda aquela elegância das pessoas da nobreza andando por seus corredores. Não havia a pompa e o luxo de Versailhes. Não havia mais nada. As pessoas que agora andavam por aqueles corredores eram turistas com suas bermudas e máquinas de filmar. Gente gorda, com os dedos sujos de batata frita. Um horror!

Louis voltava para Versalhes para um exercício de nostalgia. E deveria estar morto há séculos. Todas as pessoas que ele conheceu deveriam estar mortas. Ele havia visitado há pouco o túmulo de Maria Antonieta. Pobrezinha. Cortaram sua cabeça, jogaram seu corpo em uma vala comum, jogaram cal por cima de seu rosto lindo. Um fim de vida trágico.

Louis, o vampiro, tinha sido seu amigo. Agora de volta a Versalhes ele revia todos os salões, todas as salas, que um dia vivenciaram uma linda história da monarquia francesa. O Palácio com seus inúmeros espelhos realmente representavam um desafio a um ser cuja imagem não se refletia neles. Porém Louis era cuidadoso. Ele ficava parado sem passar na frente de um espelho se houvesse muitas pessoas próximas. Não queria dar sopa ao azar.

E ao adentrar o quarto que um dia pertenceu a Maria Antonieta, ele chorou. Chorou não apenas pela dor da morte horrível da amiga, chorou pela morte de toda uma era. Chorou pelo fim das grandes festas. Chorou ao saber que nunca mais iria fazer parte de uma corte tão maravilhosa como aquela. O mundo em que ele agora existia era sem brilho e sem glamour. Os revolucionários franceses envenenaram a alma dos homens. E Louis havia vivido toda essa história na pele. Ele estava na Rússia quando a revolução dos comunistas tomou o poder. Ele viu o sangue escorrendo da montanha mais uma vez... E ele chorou novamente por lembrar disso.

Cap. II - Valerie de Versalhes
Louis ainda se lembra da primeira vez que bebeu sangue. Foi na velha casa que servia de "fazendinha" para Maria Antonieta. Não poderia haver coisa mais inusitada. Enquanto os verdadeiros camponeses franceses sofriam com a grave crise econômica, muitos deles passando fome com suas famílias, a rainha brincava de camponesa em uma fazendinha de mentira perto do Petit Trianon, seu palácio privativo perto em Versalhes. Nesse lugar tinha tudo que uma verdadeira fazenda francesa tinha, como bois, porcos, aves, peixes. Só não tinha camponeses de verdade. Quem frequentava aquele lugar era a nobreza entediada que precisa preencher seus dias de tédio com alguma diversão.

Louis conheceu a jovem Valerie ali. Era filha de um dos serviçais de Versalhes. Uma mulher de longos cabelos pretos cacheados, carnes fartas, com jeito de ser muito quente na cama. Carnuda e muito sensual, Val pecava pela dentição ruim e feia. Ali ela se revelava mesmo uma senhorita das classes inferiores. Tinha dois dentes centrais prejudicados, chegando a serem ridículos. Louis porém não estava interessado em sexo. Ele poderia satisfazer sua lascívia entre as pernas da mulher quando bem entendesse. Só que ele não queria sua vagina, mas sim sua jugular. Louis queria sangue para se alimentar.

E o mais estranho é que ele nem tinha tido consciência ainda que havia se tornado um vampiro, uma criatura da noite. Não sabia quem o havia mordido, provavelmente na madrugada anterior, numa orgia no templo do amor, onde nobres e garotas da plebe se entregavam ao máximo da luxúria. Onde ninguém era de ninguém, onde todos beijavam todos, chupando todos os membros sem se importar quem era os seus donos. Na orgia de sexo e bebidas provavelmente perdeu a consciência. Com o pescoço à mostra foi infectado, virando para sempre um desgraçado filho de Satã que jamais encontraria a morte... ou a vida!

Val pensou que Louis queria transar com ela. Levantou as saias, mostrou as coxas carnudas. Louis deu um salto, tal com um ente predador que ataca sua caça. Ela mal teve tempo de reação. Seus olhos abriram com espanto, tentou dar um grito, mas Louis tapou sua boca e em um ato de extrema violência quebrou seu pescoço. O sangue de presas vivas sempre foi mais saboroso para os vampiros. Eles conseguiam sentir o pulso de seus corações no delicioso líquido vermelho, mas como Louis ainda era um novato nem pensou muito nisso. Preferia matar, ante de ingerir. O inesquecível para ele nessa noite nem foi o sangue dela corrente em seus caninos, mas sim a sensação única de ver a vida de sua vítima escoar pelas pupilas dilatadas. A morte chegando e a vida indo, lhe trouxe um enorme prazer.

Cap. III - Anne de Bourbon
Em 1982 uma velha agenda foi desenterrada nos amplos jardins de Versalhes. Estava debaixo de uma pequena cerca. Corroída pelo tempo, conseguiu resistir ao tempo por causa das areias onde foi enterrada. Enterrada ou perdida? Não se sabe ao certo. O que se sabe é que em suas páginas havia um conteúdo inacreditável. Ao ler página após página o leitor iria chegar na conclusão que era o diário de um vampiro! Estranho não é mesmo? Assinando apenas como "Lobo da Noite" essa figura era na realidade Louis, um jovem que circulava na nobreza de Versalhes nos tempos de Maria Antonieta.

A primeira página era reveladora. O autor confessava sua própria situação ao escrever: "Estou morto! Minha temperatura corporal é nula. Minha pele vai perdendo a elasticidade se eu não for atrás do néctar dos deuses. O que é o Néctar dos deuses? É sangue humano, meu caro. Eu preciso de sangue humano. Não importa, se de jovem ou velho, homem ou mulher. O sangue humano é preciso para que o corpo não entre em decomposição. Alguns disseram que ratos e animais inferiores eram o bastante. Não são! Só o sangue de um ser humano restaura a beleza da juventude. Eu sou um animal e preciso abater um animal da mesma espécie para continuar existindo".

E havia mais nesse desabafo: "As pessoas gostam de ver vampiros como seres nobres. Não são! São monstros. Se há alguma elegância, se há alguma educação ou modos finos, isso tudo é apenas a antevéspera do ataque. Eu quero morder o pescoço, eu quero quebrar a coluna de quem estou matando. Eu sou um predador e eu sou um imundo das trevas. Todos os vampiros que tive o desprazer de conhecer eram seres repugnantes. Asquerosos... asquerosos! Fingiam ser até mesmo religiosos, mas no fundo eram seres forjados no ódio. Não havia finesse, havia sede de sangue!".

Muitas vezes a ira soltava das páginas: "Eu quero triturar essa vadia, eu quero matar ela. É bonita? Se acha superior? Eu quero mostrar a ela quem é o superior! Eu sou superior, eu sou eterno! A escrota se chamava Anne Bourbon. Depois de virar mãe solteira, ao ser usada como vasilha de esperma de um médico arrogante e insensato, ela ficou grávida. Ele a largou.  Quando eu era mortal havia gostado dela. Fui desprezado. Mais do que isso, fui ridicularizado! Maldita, maldita! Agora veja essa vadia. Largada, abandonada. Mãe solteira. Tu não vale nada, mas eu vou sair com você. Eu vou te seduzir na calada da noite. Vou te fazer sentir uma deusa, como nos velhos tempos quando eras jovem e bonita. Porém eu vou te destroçar quando levá-la a um quarto de quinta categoria de um bordel imundo de Paris. Eu vou te matar, mas antes vou fazer com que se sinta especial. Depois vou sugar seu sangue, cravar minhas unhas em sua pele bronzeada e vou tirar sua vida.  Com prazer enorme vou te jogar na lata de lixo! Pensa que me desprezou no passado e vai ficar por isso mesmo? Eu vou te destruir, eu vou sugar sua vida, sua desgraçada miserável". O amor não correspondido pode mesmo facilmente ser transformado em puro ódio irracional.

 Segundo consta nos registros policiais o corpo de Anne de Bourbon foi encontrado numa velha casa no dia 12 de dezembro de 1799. Ela tinha a cabeça decepada e vários cortes em todo o seu corpo. Pelo tamanho das feridas havia sido atacada por um animal feroz, provavelmente um lobo ou um urso selvagem. Mas quem poderia imaginar um urso andando por Paris? Não havia sentido nisso. Por essa razão o inquérito ficou por anos sem solução até ser arquivado definitivamente cinco anos depois.

Se o que estava escrito era verdade ou não, o autor vampiro revelava tudo. O texto contava sobre a morte de Anne: "Eu a encontrei por volta das oito horas. Apesar dos anos passados ela ainda poderia ser vista como uma mulher desejável. Claro, dois filhos depois seus seios já não eram os mesmos. Ela também não era uma atleta e por isso gorduras denunciavam o passar dos anos. Seus dedos, tantos dos pés como das mãos, sempre foram horríveis. Parecia algo mal feito, de segunda mão. Era o que denunciava suas origens pobres, de gente que foi subindo aos poucos na escala social. Ela era inicialmente filha de um militar de terceiro escalão. Depois que ficou grávida do tal médico melhorou um pouco seu status".

E continuou: "Depois de bebermos vinho por toda a noite, a convidei para ir a um quarto ali perto. Ela já estava um pouco embriagada. Foi fácil levar aquela jovem senhora, já se tornando velha snehora, para aquele lugar escuro. Ao colocar esse corpo feminino na cama pensei como eu era tolo aos 19 anos de idade. Pensando que aquilo ali tinha algum valor maior. Não tinha, era carne de segunda. Olhei para ela e disse falsamente como ela era bonita. Nisso a Anne deu um sorriso. Em fúria rasguei seu rosto com minhas mãos. O sangue jorrou por todo o quarto..."

"Ela quis gritar, mas eu dei um forte soco em sua cara. Ela não chegou a perder os sentidos, mas ficou zonza... não perdi mais tempo e avancei em seu pescoço. Não foi uma mordida, foi uma carnificina! Eu arranquei grandes nacos de sua carne... o sangue me lambuzou todo... eu fiquei em êxtase... queria uivar como um lobo... e continuei a cortar e cortar... tome sua vadia, sua puta! É isso o que você merece... um morte indigna... Eu quis lhe dar seu amor, mas você não quis... Agora pagará, MORRA CADELA, MORRA CADELA... eu amei cada segundo da morte daquela mulher. Bebi e bebi seu sangue até me fartar..."

Os detalhes combinavam com o que estava descrito pela polícia. Foi uma morte digna de Jack, o Estripador. Aliás para os investigadores que estiveram na cena do crime foi muito além disso. O pescoço estava em frangalhos. Sua cabeça foi separada do corpo não por um corte de espada ou faca, ou algo equivalente, mas sim por mordidas, cada vez mais profundas e violentas... algo que destruiu suas estrutura física. Depois de tudo o assassino havia jogado sua cabeça dentro do vaso sanitário imundo que havia naquele quarto infecto. Havia ali claro sinais de fúria e vingança. Depois que o vampiro aniquilou e humilhou sua vítima ele ainda se virou para dar uma última cuspida naquela carcaça sem vida. "IMUNDA, IMUNDA... " - Foram suas últimas palavras antes de virar sua capa e sair pela noite adentro.

Essa foi a segunda morte da não vida vampiresca de Louis de Bourges.

Cap. IV - A Condessa Russa
Em meados de 1820 o vampiro Louis ouviu falar que a condessa russa Raissa estava em Paris. Uma mulher fabulosamente rica, única herdeira de um militar que havia caído nas graças do czar. Com sua morte ela teria herdado milhões em joias, propriedades e dinheiro, depositado nos mais exclusivos bancos da Europa. Apesar de toda a riqueza, a condessa era uma pessoa desprezível. Ela era uma mulher feia. Apesar de possuir olhos verdes, todo o conjunto era tenebroso. Ao invés de ter curvas, como convém a uma bela mulher, ela tinha o corpo quadrado. Não havia seios. Era magra em demasia. Os dentes estavam amarelados pelo fumo. O conjunto era ruim. Era uma mulher feia por fora e por dentro.

Ela procurava compensar sua feiura indo atrás de belas jovens. Era lésbica. Porém ao invés de se relacionar com essas moças, que eram lindas, mas pobres, a condessa abusava de todas elas. No começo enchia todas dos mais belos vestidos. Das mais belas joias. Depois quando começavam a se sentir belas, a condessa começava a tirar tudo. Era um jogo psicológico doentio. Ela queria humilhar, desprezar a juventude a a beleza dessas mulheres. Na Rússia se dizia que ela havia matado algumas de suas servas. Não por acaso as mais belas. Ela tinha complexo de inferioridade perante aquelas belas jovens. Como era feia e ruim, queria destruir a beleza feminina da face da terra.

Quando as mortes começaram a incomodar, por terem caído na boca do povo, a condessa decidiu ir embora para Paris. Só que na capital francesa ela não perdeu o gosto pela morte. Em poucas semanas já surgia como suspeita da morte de uma jovem empregada. Só que Paris não era São Petersburgo. Na capital francesa ela seria investigada e se seus crimes fossem descobertos, seriam punidos. O Lord Louis a desprezava. Em pouco tempo procurou se aproximar dela. Com seu eterno corpo de 19 anos (idade em que se tornou um vampiro, um ser da noite), ele seduziu uma das damas de companhia da condessa. Em pouco tempo foi apresentado a ela. Na verdade o vampiro só queria matar aquela mulher.

Numa noite, conversando com a condessa, Louis descobriu que ela realmente era uma pessoa asquerosa. A condessa desfilou todos os seus preconceitos. Odiava negros e pessoas de cor. Era racista. Preconceito racial. Achava os homossexuais aberrações, isso apesar de ser uma lésbica violenta e possessiva. Como se pode perceber tinha preconceito sexual, ao mesmo tempo sendo a pessoa mias hipócrita da Europa. Dizia ser religiosa, mas sua vida pessoal era de pura devassidão. Mais uma prova de sua hipocrisia. E para fechar o quadro geral, odiava pessoas pobres. Tinha preconceito social contra as pessoas mais humildes. Era a mulher mais asquerosa da Europa. Seu destino era de morte. Louis estava pronto para cumprir esse destino.

O vampiro, com os longos anos passado, acabou se tornando uma pessoa culta. Era ótimo na conversação envolvendo livros, artes e história. Afinal ele tinha sido uma testemunha ocular de todos os acontecimentos desde os tempos de Maria Antonieta. Durante uma das noites a condessa o convidou para ir ao teatro com ela. Iriam de carruagem. Aliás a carruagem da condessa, vinda da Rússia, chamava atenção por onde passava. Era puro luxo e ostentação. E seria dentro dessa gaiola de ouro que o Lord vampiro iria atuar.

Já era tarde da noite quando saíram do teatro. Ao entrarem numa rua escura de Paris, Louis não perdeu tempo. Ele imediatamente deu uma pausa, olhou para a condessa e disse: "Seu destino chegou!". A condessa riu e perguntou: "O que você está querendo dizer com isso?"... mal houve tempo dela terminar a frase. Com suas garras de vampiro, Louis rasgou seu rosto. Ela ainda deu um grito, o que levou o condutor da carruagem parar para ver o que estava acontecendo. Ao descer e olhar pela janela ele viu Louis já sugando a jugular da condessa dentro da carruagem.

"Meus Deus! O que é isso?" - gritou o empregado. Louis percebendo que ele poderia criar problemas pulou fora da carruagem em um piscar de olhos. Com uma barra, tirada da lateral da carruagem, atingiu em cheio a cabeça do homem. Esse caiu imediatamente, seu sangue jorrava pela calçada escura e molhada da ruela. A condessa ainda respirava. Louis teria que matá-la, caso contrário ela iria virar uma vampira. Imagine uma pessoa ruim como aquela com os poderes de um ser da noite! Com a mesma barra que estava em mãos Louis nem pensou duas vezes e cravou ela no peito da nobre russa, destruindo seu coração com o impacto. O cenário foi desolador. A condessa destroçada, com o corpo arruinado e seu condutor afogado no próprio sangue. Louis então viu que ambos estavam mortos. Ele calmamente pegou seu elegante chapéu, sua capa e sua bengala sueca e saiu, tranquilamente pela rua, encoberto pela noite, que agora, após tantos anos como vampiro, aprendera a amar mais do que tudo nessa existência noturna.

Cap. V - A Jovem Estefânia
Depois de encontrar vários textos avulsos fui nas principais bibliotecas nacionais em busca de manuscritos. Quem sabe poderia haver algo sobre esse estranho personagem chamado Louis de Bourges. Acabei me deparando com uma série de manuscritos que podem ser catalogados em ordem cronológica. Muitos deles com informações preciosas. A maioria deles datam a pattir de 1850 e são creditados a uma suposta família Bourges. Ali estão registros de avô, pai e filho. Minha opinião? Todos foram escritos pelo próprio Louis, que ia assumindo novas identidades conforme o tempo ia passando. Assim Louis I era o mesmo Louis II e Louis III. Era a mesma pessoa, o mesmo vampiro, escrevendo suas experiências enquanto as areias do tempo iam se acumulando em sua existência.

O tal de Louis Bourges II surge por volta de 1850. Ele se auto denomina estudante de direito, indo pela primeira vez para a Universidade Jurídida de Paris. É curioso. O Louis original nada mais tinha sido do que um devasso na corte de Maria Antonieta. Agora, passados décadas da morte da rainha, ele parecia se inclinar para os estudos. A leitura de livros era o seu foco. Se tornar um jovem e promissor advogado um de seus objetivos. Sobre isso, datando de março de 1850, o novo Louis escrevia em uma carta enviada para uma tal senhorita Estafânia ou Estefânia (a letra estava bem ruim, borrada pelo tempo): "Eu quero um novo recomeço em minha existência. Os dias de loucos parasitas ficaram para trás. Se há algo que aprendi nessa minha vida é que os livros engrandecem o homem. A busca pelo saber e pela sabedoria é o grande desafio. Oh, como eu tinha uma vida tola! Agora... novos tempos, novos desafios..."

Esse Louis II era bastante empenhado na sua nova profissão. Ele se tornou advogado pela luta dos trabalhadores pobres. Quem diria que um antigo nobre, da corte mais luxuosa e fútil da história da Europa, iria se dedicar tanto ao campo das lutas sociais? Em um texto que encontrei na biblioteca o jovem jurista Louis proclama por igualdade: "Os trabalhadores, que geram toda a riqueza, vivem na mais completa pobreza. Uma classe de novos burgueses, sugam toda a riqueza da nação." Quem diria mesmo. Os ideais de um socialismo utópico agora calavam alto no peito daquele jovem homem de estudos jurídicos.

Mas os sonhos, pelas minhas pesquisas, iriam durar pouco. O jovem Louis II foi preso e julgado pelo crime da morte de uma jovem chamada Estefânia Saint - o mesmo nome que encontrei na carta citada. Ela foi encontrada na beira de uma estrada de terra, mordida no pescoço. Pelo visto Louis não conseguiu conter seus impulsos vampirescos e colocou tudo a perder. Ele foi visto subindo na carruagem da jovem donzela pouco antes de seu corpo ser encontrado sem vida. Embora fosse um bom advogado ele não conseguiu convencer os jurados de sua inocência. Acabou sendo condenado pela morte da garota, pegando 40 anos de prisão em uma cadeia de Nice. Depois de poucos meses ele fugiu e desapareceu para sempre das páginas dos jornais.

Foi então que Louis III apareceu. Ele dizia ser o filho de Louis II (balela, era a mesma pessoa). Através de um rápido inventário herdou todos os bens e imovéis do suposto pai. Vendeu tudo e foi embora de Paris para sempre. Ao que me consta esse terceiro Louis foi para a Romênia, onde comprou uma grande propriedade rural, que contava inclusive com um castelo medieval. Estaria Louis agora pensando em levar uma vida de Conde Drácula, igual ao famoso personagem da literatura? É possível. Por isso nem pensei duas vezes e fui até a região onde ele morou até, segundo meus registros preliminares, 1880. Estaria eu seguindo as pistas certas? Veremos no próximo capítulo.

Cap. VI - Londres, 1888
Um dos escritos mais interessantes do Lord Vampiro se refere a Jack, o Estripador. Isso mesmo. Colocarei aqui suas impressões na íntegra: "Em 1888 eu fui até Londres. Quando estava em Paris soube que havia um assassino insano nas ruas da cidade, em um bairro pobre, cheio de prostitutas, chamado Whitechapel. Em um primeiro momento pensei se tratar de um membro da minha linhagem, um desgraçado chupador de sangue, que havia enlouquecido, matando e estuprando mulheres que eram conhecidas como desafortunadas, mulheres pobres, com problemas de alcoolismo, que vagavam pelas ruas e ofereciam seus corpos a quem estivesse interessado. Pobres mulheres perdidas nesse mundo vil e violento, devo dizer que senti pena delas.

Infelizmente, para meu infortúnio, descobri que as mortes tinham cessado quando finalmente coloquei os pés naquela cidade suja, sempre com céu nublado e muita neblina asfixiante. Apesar de todo o glamour e pompa da rainha Vitória, devo dizer que viver ali naquela pocilga não era a melhor coisa do mundo. Sempre preferi o belo litoral do sul da França, isso apesar de como é óbvio, não poder desfrutar das praias ensolaradas daquela região. Mas voltemos, voltemos, porque tenho uma revelação a fazer. Muito provavelmente ninguém vai resgatar esses meus escritos das areias do tempo, mas vou escrever, porque hoje é uma noite particularmente sombria.

O verdadeiro Jack, o Estripador era um pobre coitado corroído pela doença mental chamado Aaron Kosminski. Ele era um imigrante polaco, de origem judaica, que foi para Londres atrás de seu irmão mais velho que abriu um pequeno comércio de vendas de roupas para mulheres. O Aaron era o filho mais jovem dessa família. Ele foi criado sem pai, pois esse morreu muito cedo. Os judeus sofriam forte perseguição na Polônia. Por isso parte da família Kominski se mandou para a Inglaterra. Lá eles mudaram seus nomes para Abrahams. Primeiro porque era mais fácil de pronunciar na língua. Segundo, porque eles tinham medo de serem reconhecidos como judeus que eram. O medo era grande naquela época.

Aaron Kosminski matou aquela mulheres porque estava em surto psicótico. Ele tinha esquizofrenia e iria passar o resto de sua miserável vida em um hospício imundo. Ele nunca escreveu aquelas cartas para a polícia de Londres se auto denominando Jack, o Estripador. Ele era analfabeto. Quem escreveu as cartas foi um jornalista que queria afinal de tudo vender jornais. Era o seu negócio. Penso até que esse louco do Kosminski sequer sabia o que estava fazendo. Ele não tinha consciência de seus crimes. Quando cheguei a Londres fui com o objetivo de trucidar o assassino Jack, mas quando descobri a verdade, simplesmente desisti. Não valia a pena. Eu tive pena e nojo dessa criatura.

Por fim mais uma revelação. Os judeus de Londres sabiam que Aaron Kosminski era Jack, mas esconderam a verdade. Por qual razão? Eles tinham receios que uma onda de violência contra judeus iria explodir depois que a verdade fosse espalhada. Por isso decidiram resolver a questão de uma forma menos escandalosa. A família de Aaron Kosminski o levou até um hospício e de lá ele nunca mais saiu. Morreu pesando 30 quilos, completamente louco, envolto em sua própria mente doentia. E isso foi tudo. Queria saber quem foi Jack, o Estripador? Está aí toda a verdade, pobre mortal..."

Cap. VII - Estrasburgo, 1899
Entre os escritos há uma carta não enviada pelo Lord Vampiro. Está endereçada a uma tal Thatiana. Provavelmente um amor do passado. Segue seu texto: "Estrasburgo, 2 de janeiro de 1899. Querida Thatiana, lhe escrevo para contar minhas últimas novidades. Recebi sua carta no último fim de semana e decidi responder, afinal sou um cavalheiro. Estou no momento nesse bonita cidade na fronteira com a Alemanha. Há meses fico na dúvida se devo ultrapassar a fronteira. Não gosto muito da cultura alemã, nem de sua culinária. Na dúvida fica onde estou, curtindo o tempo passar, enquanto faço mil planos.

Viver, de certa maneira, é fazer planos. Alguns dão certo e outros dão terrivelmente errados. Soube que você se casou com aquele sujeito. Olha, vou ser indelicado. Aquele não é homem para você. Além de já ter traído sua confiança, é um homem sem estudos, sem formação cultural. Fruto de uma cidadezinha do interior, rude e desprezível. Penso que ele vai ser um estorvo por toda a sua vida. Você vai carregar esse indíviduo nas costas, por toda a vida. Ele até pode ser bonito no momento, mas o tempo vai passar. Ele vai ficar gordo e tudo o que vai sobrar em sua vida é um homem ignorante e estúpido que você vai sustentar. Estou sendo rude? Pode ser, porém não tão rude como será seu casamento com ele. Essa é minha opinião sincera. Lamento dizer.

Em relação a mim, adotei a solteirice completa. Ser solteiro é ter liberdade. Hoje estou aqui, amanhã... não sei. Possa ser que acorde e decida fazer uma viagem. Ninguém vai ter nada a ver com isso. Não terei que dar explicações a ninguém. Tenho uma prima. Ela reclamava de que seus pais a prendiam muito. Então se casou precocemente "para ter liberdade". Pobre mulher! Saiu das algemas de pais opressivos para uma nova jaula, agora controlada pelo marido. Triste destino. O homem solteiro vive por si. Tem suas próprias aventuras. Curte a noite, saboreia o luar. Casamento é uma das piores invenções humanas. Aprisiona em correntes, quase sempre enferrujadas. É um contrato. E como todo contrato a pessoa só  assina se quiser. Prefiro não colocar minha assinatura em um papel desses. Prefiro ter minha carta de alforria.

Sobre os amigos dos tempos da faculdade, nunca mais vi ninguém. Devo dizer que sinceramente falando muitos deles eu apenas suportava. Era muita conversa vazia sobre esportes. Você descobre o quão um homem é vazio pelo teor de suas conversações. Se ele só fala em times e jogos, pode ter certeza que há um idiota na sua frente. A maioria dos que conheci na universidade eram assim. Uma gente bem decepcionante, devo confessar. Os suportava na época do curso de direito, mas agora não preciso mais suportar aquela gente. Com a graduação fiquei livre de todos eles, graças a Deus! E pensar que outro dia um velho conhecido me enviou uma carta de Toulouse me convidando para uma reunião de velhos alunos. Deus me livre de um destino desses! Não quero... não quero... não desejo mal nenhum para aquelas pessoas, mas ao mesmo tempo também não quero eles por perto. Aguentar cinco anos de sua companhia já foi o bastante... Hoje só sento para conversar com quem tem algo interessante a dizer. Falar sobre cultura, artes e filosofia. Todo o resto me parece tempo perdido. Então é isso minha cara amiga. Desejo tudo de bom para ti e suas filhas. Abraços de seu eterno amigo Louis."

Cap. VIII - O Vampiro Guitage
Por volta de 1904 ou 1905, o Lord Vampiro Louis conheceu um curioso vampiro latino-americano conhecido nos meios obscuros das ruas sombrias de Lisboa simplesmente como Guitage, ou resumidamente Gui. E quem era essa criatura das trevas? Não se sabe ao certo. Ele ficou obcecado por sangue de lindas virgens da capital portuguesa. Por seu sotaque e forma de agir ele provavelmente tinha origem além-mar, talvez no distante e exótico Brasil. Só que Gui não falava sobre seu passado, como se escondesse algo trágico. E quando não se fala muito sobre o que passou, se abrem janelas para especulações.

Era um vampiro antigo, provavelmente trezentos anos. Dizia-se que havia sido mercador de escravos para o nordeste brasileiro. Outras fontes diziam que havia criado uma rede de masoquismo no novo continente, o que fez com que fosse perseguido pelos colonos. De uma maneira ou uotra, por volta do século XVIII ele finalmente subiu em uma velha nau holandesa de madeira e foi para a Europa. Essa estranha figura se instalou em Lisboa, onde abriu uma taverna que só funcionava a partir do crepúsculo. Ali, dizia-se (sempre muito boatos envolvidos) que ele mantinha uma casa de tolerância com beldades inglesas que importava para Lisboa. Esse vampiro - sim, eu o conheci e sei do que estou falando - tinha mesmo preferência por mulheres jovens a quem podia sugar o sangue, participando de orgias sexuais sem fim.

A vida devassa e inescrupulosa de Guitage fez com que Louis cruzasse seu caminho. Havia um código de ética entre vampiros europeus e essa sombra noturna estava violando todas essas regras não escritas. Havia rumores que Gui estava transformando algumas de suas raparigas em vampiras, o que ia contra todo o protocolo de comportamento de um nobre bebedor de sangue humano. Assim Louis resolveu visitá-lo, como se fosse um mero cliente de seu estabelecimento de prostituição sádica.

Louis, que havia vivido na luxuosa corte de Maria Antonieta, achou o cabaré de Gui um verdadeiro horror estético. Com cortinas vermelhas escuras, clima de pura decadência moral, não era o lugar adequado para se levar alguém de bom gosto e valores morais. Gui sentava-se ao centro do grande salão e comandava suas prostitutas de inferno. Logo Louis percebeu que pelo menos duas ou três delas já estavam transformadas. Um absurdo vampiresco, transformar aquelas cadelas em nobres de sangue. Ele obviamente deveria ser punido.

Guitage, o vampiro-gigolô, havia cruzado um limite. E eu sabia que deveria eliminá-lo depois daquela noite. Houve uma grande surpresa na noite que Louis adentrou aquele recinto. Todas as noites um baile Dantesco era realizado, onde todos os convidados ficavam completamente nus. Era engraçado e mórbido nas mesmas proporções. Certo, as mulheres propiciavam uma bela vista, pois eram mulheres bonitas, de seios fartos. Já os homens, gordos e de barrigas salientes, destruíam a imagem global daquele festim de horrores. E no bordel de Gui havia dois tipos de homens. Os ricos estavam ali para depois realizar favores de corrupção para aquele ser da noite. Já os pobres e mais jovens seriam sua janta, já na alta madrugada. Afinal Gui também não tinha reserva de apetite para sua sede de sangue humano.

Louis ficou em sua mesa, olhando ao redor. Ele apenas ficou olhando pelo canto do olho enquanto tomava um vinho do Porto de boa procedência. Gui se aproximou e quis conhecer aquele cavalheiro estranho que ele nunca havia visto. Pelo seu sentido de ser da noite sabia, mesmo que de forma inconsciente, que era um de seus pares. Apresentações formais foram feitas e Guitage sentou alguns instantes com aquele nobre com sotaque francês. Algo soava no ar, um estranho clima de doce veneno. Aqueles seres sabiam que em pouco tempo haveria um jogo de vida e morte prestes a começar sob a luz da lua cheia.

Cap. IX - Ruas Sangrentas de Lisboa
O Lord Louis tinha planos de matar Guitage, mas decidiu que deveria ser algo bem planejado, sem pressa, tudo deveria ser executado de forma minuciosa. Para sua surpresa, enquanto tecia planos e mais planos em sua mente, o vampiro Gui foi encontrado morto em sua taverna esfumaçada e escura. As investigações apontavam para uma certa mademoiselle Cuca. Essa jovem moça era uma das escravas sezuais do vampiro. Uma pessoa que sofreu atrozes torturas em suas mãos por anos e anos. Depois de muitos abusos, o caldeirão um dia iria entornar. Ela o havia matado com requintes de crueldade.

Guitage foi encontrado pelos policiais completamente calcinado. Impossível reconhecer. Porém havia dois detalhes determinantes que chamaram muito a atenção de Louis na noite seguinte quando leu os jornais com as notícias. Em volta do pescoço de Gui havia um arame farpado que o prendia a um crucifixo. E em seu peito uma grande estaca havia sido fincada. Isso provava duas coisas importantes. Primeiro que Guitage estava definitivamente morto. Nenhum vampiro iria sobreviver aquele tipo de agressão com ares de culto religioso, seguindo bem de perto o manual dos matadores de vampiros. Segundo, o mais importante, é que quem o matou sabia que estava matando um vampiro. Teria sido apenas a mademoiselle Cuca ou alguém com os adequados conhecimentos a havia lhe ajudado?

De uma maneira ou outra, Louis comprou uma passagem de viagem para a Espanha naquele mesmo dia. Lisboa era uma bonita cidade, mas o excesso de igrejas e catolicismo o incomodava muito. Nas pequenas ruas de pedras seculares sempre havia uma procissão passando, gente rezando. Para falar a verdade ele nunca havia conhecido um povo tão religioso como aquele. E isso, para um vampiro, era a pior parte. Ter que ficar ouvindo aquelas ladainhas, aquelas orações que pareciam nunca chegar ao final, o incomodava bastante. Era muita carolice para um vampiro velho como aquele.

Assim que anoiteceu ele então subiu na carruagem e foi embora rumo à Espanha. Essa seria a última vez que Louis iria fazer uma longa viagem com carruagem. A modernidade havia chegado também na Europa. Os carros estavam dominando as estradas. O próprio Louis achava aquela máquina algo intrigante. Ele costumava zombar um pouco, dizendo que eram carruagens sem cavalos, porém quem poderia deter o progresso? Ao longo dos séculos ele nunca havia visto uma prova concreta da existência de Deus, mas todos os dias se espantava com a capacidade da ciência em inovar e trazer melhorias para a sociedade. Seria a ciência o verdadeiro Deus da humanidade? De vez em quando ele se pegava com esse tipo de questionamento passando por sua mente.

Cap. X - Perdido nas areias do tempo...
Depois de muitas pesquisas só uma velha carta, amarelada pelo tempo, foi encontrada desse singular personagem. Era o ano de 1914, não por acaso o ano em que explodiu a primeira guerra mundial. Depois dessa data e dessa carta nada mais foi encontrada sobre o Lord vampiro Louis em bibliotecas da Europa continental. O que terá acontecido? Por onde andou? Estaria ainda vagando nas noites escuras? Pela importância do registro histórico passo a seguir a publicar na íntegra a carta escrita pelo ser noturno.

"La Rochelle, 28 de julho de 1914. Prezado Lobothan, Pelo visto a guerra eclodiu de vez em nossa querida Europa. Não há mais heróis e nem vilões. O morticínio será trágico e de proporções imprevisíveis. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde a Casa de Habsburgo iria levar todos para a ruína completa. Nunca gostei dessa gente, são seres desprezíveis. Além de parasitas inomináveis, também são gigolos de suas próprias filhas. Desde os tempos anteriores a Maria Antonieta, todas as arquiduquesas eram prostituítas pelas casas reais afora. Os cretinos até mesmo diziam que deveria se fazer casamentos, ao invés de guerras. Sempre foram gananciosos e facínoras, isso sim! Nunca me enganaram.

E agora todos esses jovens vão para os campos de batalhas, onde morrerão por coisa nenhuma. O patriotismo é uma estupidez. O militarismo só bate forte em mentes de debeis mentais. Morrer pelo quê? Morrer por quê? As guerras são lugares terríveis onde jovens morrem através de outros combatentes que não conhecem e nem odeiam, tudo por causa de velhos políticos que se conhecem e se odeiam. Coloquem todos esses patifes em ringues de lama e lá que eles resolvam seus problemas pessoais e políticos. Não enviem jovens para o campo da morte. É isso o que penso sobre tudo o que está acontecendo... Assinado, cordialmente, por seu amigo Louis"

Há um obituário em nome de Louis datada de meados de 1916, nessa mesma cidade de La Rochelle. Esse nobre senhor foi encontrado morto em sua pequena cabana nos arredores da cidade. Morreu tranquilamente enquanto lia um livro de ciência política. O senhor Jean Lobothan cuidou de seu funeral. Ninguém apareceu, apenas o padre Mckenzie que leu alguns salmos, enquanto o caixão de Louis descia em sua cova. Era uma manhã gelada de inverno. A senhora Eleanor, que havia sido sua governanta nos últimos meses jogou um pequeno buquê de flores violetas. Depois todos se cumprimentaram e deram as costas, deixando Louis para a eternidade. E os flocos de neve começaram a cair suavemente em seu ataúde preto com detalhes dourados...

Pablo Aluísio.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Assassina das Estradas

Cap. I - O Detetive
Cliford Atkins. Policial, 46 anos de idade. O aumento de peso denunciava que ele não estava mais preocupado em manter as aparências. Era um bom investigador de homicídios, mas já tinha entendido tudo, como as coisas funcionavam. Recentemente havia pego um figurão, filho de uma família rica da região de New Orleans. Gente envolvida em política. Não deu em nada. Ele foi absolvido pelo tribunal do júri. Algum jurado foi comprado? É possível que sim, mas Cliford não tinha como provar. Ele não queria se envolver no jogo sujo envolvendo juízes e políticos. Certamente sua carreira seria prejudicada dali em diante, afinal ele havia mexido com uma das famílias tradicionais da cidade. iriam dar o troco para ele, mais cedo ou mais tarde.

Assim seu telefone tocou logo pela manhã. Ele ainda estava de ressaca da noite anterior. Começar a segunda-feira logo atendendo a um caso de assassinato não estava bem em seus planos. Só que era trabalho e ele teria que seguir em frente. Um homem de meia idade havia sido encontrado em seu carro na estrada que ligava a Louisiana à Flórida. Dois tiros na altura do abdômen. A carteira com dinheiro fora roubada. Havia sinais de luta corporal dentro do carro. Clift pegou seu velho chapéu e foi para a estrada. Tinha que fazer as primeiras análises no local do crime.

Esse caso lhe lembrou outro que havia acontecido há 3 meses, ainda sem solução. Clift desconfiava que os dois crimes poderiam ter sido cometidos pela mesma pessoa. As vítimas e as circunstâncias do crime revelavam isso. Eram dois homens, entre 55 a 60 anos. Ambos tinham histórico de contratar prostituas nas rodovias pelas quais passavam. Os dois foram mortos com tiros à queima roupa, sugerindo que o assassino (ou a assassina) entraram em seus carros e ficaram próximos suficientes para dar um tiro a pouca distância.

Isso fez Clift desconfiar que o homicida ou mais provavelmente a homicida fosse um ou uma profissional do sexo. Como os dois homens eram héteros havia fortes suspeitas que eles pegaram algum mulher para se prostituir em seus carros. Algo havia dado errado. Em algum momento essa mulher reagiu aos avanços deles, puxou uma arma e os matou. Depois roubou tudo o que havia de valor dentro do carro de seus "clientes", ou seja, dinheiro, relógios, anéis, cartões de créditos, qualquer coisa. Clift no alto da experiência de sua profissão estava praticamente convencido que havia uma assassina à solta nas estradas.

Ao retornar para a delegacia, o bom e velho detetive Cliford Atkins resumiu o caso em sua cabeça. Para ele uma pessoa havia entrado no carro da vítima. Provavelmente entrou sem reação violenta, o que significava que o criminoso contava com a confiança da vítima. Dentro do carro eles foram para uma estrada mais remota, onde poderiam fazer sexo. Partindo do pressuposto de que as vítimas eram homens heterossexuais só havia a quase certeza que era uma assassina, um prostituta a principal suspeita. Porém havia algo que não se encaixava no caso montado em sua mente. Mulheres raramente usam de métodos violentos para cometerem crimes. Mulheres geralmente matam com venenos, coisas assim. Elas detestam sangue e bagunça na cena do crime.

Cap. II - A Assassina
Não muito longe dali, em um bar para motoqueiros, Alicyn Woother bebia uma cerveja gelada. Ela certamente não se enquadraria em um perfil típico de assassina do FBI. Estava mais para vítima. Aos 12 anos havia sofrido abuso sexual de seus próprios parentes próximos. Traumatizada, saiu de casa. Para sobreviver trocava sexo por dinheiro ou carteira de cigarros. Foi criada praticamente na rua, sendo abusada por pedófilos. Era uma vida triste. Só que agora Alicyn parecia viver uma vida mais feliz. Há alguns anos ela tinha se descoberto lésbica. Anos e anos sendo abusada por homens imundos fizeram com que ela criasse uma ojeriza com o sexo masculino. Havia criado um trauma com o falo ereto. As mulheres eram mais delicadas, carinhosas e sensíveis. Não é de se admirar que ela havia se tornado lésbica.

Agora estava tendo um caso amoroso com Kaitlin Riley. Ela trabalhava em pequenos empregos mal remunerados nos motéis da região. Trabalhava como faxineira e arrumadeira. Era o que os americanos costumam chamar vergonhosamente de "White Trash" (Lixo branco). Pessoas até bonitas, mas pobres, sem educação formal superior. Ela tinha um jeito meio masculinizado, o que lhe valia em certas ocasiões o apelido de "Buddy", como se fosse um cara qualquer, que tinha gestos másculos e falava sobre futebol americano. Com ombros fortes e cabelo curto parecia mesmo um macho, um caminhoneiro da pesada.

Em muitos casos envolvendo casais de lésbicas havia a que representava o lado masculino da relação e o que servia como a mulher feminina. Kaitlin Riley "Buddy" era o machão do namoro, o que em certos meios gays é conhecido como "Lady Botina". Alicyn Woother era a fêmea, o que em redutos era conhecida como Lady Penélope. As duas tinham alugado um quarto na beira da rodovia. Estavam vivendo bem. O que "Buddy" não sabia era como sua namorada ganhava dinheiro, afinal ela nunca tinha um emprego. Saía pela manhã e voltava no final de tarde, sempre com algum dinheiro. "Buddy" não dizia para ninguém mas desconfiava que ela fazia programas nas rodovias próximas. Porém esse assunto nunca era discutido entre elas. Iria quebrar o clima, quebrar o romantismo.

Alicyn Woother estava com 38 anos de idade. Estava perto dos 40. Já não sonhava com príncipes encantados. Ela também já tinha passado da idade de ser uma mulher atraente, que fosse interessar a alguém para se casar e ter um relacionamento. Sem profissão nenhuma, acabou se tornando prostituta de estrada. Para sua segurança ela havia comprado um revólver 38. Ela só entrava dentro do carro dos clientes devidamente armada. Como tinha uma personalidade psicopata pouco se importava com a vida humana. Depois de milhares de programas ela entendeu - em sua mente doentia - que era mais fácil simplesmente dar um tiro naquele que a contratava.

Um tiro certeiro no coração. Depois que o tal sujeito caía tudo o que ela precisava era roubar sua carteira e ir atrás de algo de valor nas cabines dos caminhões ou carros. Também era uma assassina desajeitada, que não tomava precauções no quesito provas. Digitais dela estavam em todas as partes. A polícia as tinha levado para perícia, mas faltava uma digital no banco de dados de criminosos para bater com o que eles tinham.

Enquanto os corpos iam aparecendo a imprensa começou a se interessar pelo caso. Vazamentos do departamento de polícia tinham chegado nas redações de jornais. Era muito interessante ter uma mulher como assassina. Não tardou muito e as manchetes vinham com sua nova alcunha de "Assassina das Estradas". O velho detetive ficou contrariado com toda a sensacionalismo do noticiários. Isso iria atrapalhar as investigações. Ele então resolveu ligar para o chefe de redação e foi bem claro sobre tudo o qu estava acontecendo.

Parem de publicar informações confidenciais! Isso vai atrapalhar as investigações! - Ninguém se importou. Nenum jornalistas deixou de continuar a escrever sobre o caso. Vendia jornais, despertava interesse do público, então a imprensa iria continuar a aproveitar ao máximo. O que Cliford estava disposto a fazer para pegar a criminosa? Ele então pensou em algo até óbvio. Ele iria preparar uma armadilha para ela. Quem sabe assim ela cairia nas mãos dos policiais.

Cap. III - As Pistas
Cliford Atkins estava em um beco sem saída. Não tinha respostas para os crimes. Ele tinha encontrado elementos que poderiam ajudar a condenar o criminoso em um tribunal, porém não tinham pistas sólidas que o levassem a essa pessoa. Era aquele tipo de situação ao estilo "Saberei quem é você quando o encontrar". Tudo estava no ar. Enquanto isso a imprensa atrapalhava a investigação, publicando reportagens sensacionalistas. Clift até mesmo teve que receber um telefonema mal humorado do comissário por causa da falta de resultados concretos.

Sem nada em mãos o velho detetive resolveu usar de antigas táticas. Uma delas seria atravessar o lado mais sórdido da cidade em busca de informações. Ali sobrevivia a nata da escória da região (muito embora essa definição não fazia o menor sentido). Clift ia nos bares, becos e bordéis para encontrar seus informantes. Gente desesperada por algum dinheiro. Eram cafetões, proxenetas e pederastas de todos os tipos. Gente sem moral. Gente boa para comprar com alguns trocados. Era hora de sujar as mãos com o excremento que escorria pelas ruas mais infames da cidade. Coisa que todo detetive deveria fazer, mais cedo ou mais tarde.

Como os crimes envolviam prostituição ali era o lugar natural para saber de alguma coisa. Para sua surpresa ninguém soltou nada. Não sabiam de nada. Ele ficou surpreso. Esse tipo de resposta só poderia ter uma explicação. O assassino ou a assassina deveriam se de fora, de outra cidade ou até mesmo de outro estado. O que estava acontecendo de fato?

Big Bangaroo era um dos cafetões mais conhecidos de New Orleans. Um cara da pesada, literalmente falando. Tinha mais de 150 kg e dois metros de altura. Era um daqueles negros que usavam grandes chapéus espalhafatosos e roupas de cores berrantes. A pessoa poderia vê-lo a metros de distância e reconhecer que ele era um cafetão. Clift tinha um passado com ele. O velho detetive havia se apaixonado por uma de suas garotas. Erika Von, uma loiraça maravilhosa. Cabelos curtinhos, grandes seios, bronzeado perfeito. Lindos olhos azuis em uma face de anjo. Linda demais! Era até complicado entender como uma mulher daquelas foi parar nas ruas, fazendo programas para o porco do Bungaroo.

Esse mundo porém não era perfeito. Pelo contrário, cheirava a cigarro apagado na calçada. A maioria das pessoas eram sórdidas. De vez em quando Clift ainda curtia uma dor de cotovelo por causa da loira Von, mas não havia muito o que fazer. Ela tinha ido embora com um cafajeste. Mulheres lindas, ainda mais se forem loiras de olhos azuis, caem de amores pelos cafajestes de plantão. Deve ser algo em seu DNA estúpido, quem sabe...

Pois então, Big Bangaroo não tinha nada a dar para Clift, mas involuntariamente lhe deu uma pista importante ao explicar que ele conhecia todas as vadias da cidade. Tanto as que estavam na ativa, como as novatas e até mesmo as aposentadas. Algumas tinham até mesmo se casado com políticos, gerando filhos da puta. Para Big a única explicação era de que essa prostituta envolvida nos crimes certamente não era de New Orleans. Se fosse ele teria ouvido algo. Ela era de fora. Pegava os caras em outros lugares e quando chegavam nos arredores da cidade cometiam o crime!

Poxa, a banha do Bangaroo deveria ter transformado ele em um tira. Clift havia pegado o fio da meada. Sua conversa com o cafetão grandalhão rendeu bons frutos. Afinal aquele cara era o "rei das putas" na cidade e isso não era por mero acaso. De volta para seu escritório Clift pegou a caneta, material para investigação, entrou em seu carro e caiu na estrada. Ele precisava refazer o caminho que aqueles homens tinham tomado. A intenção era conversar com seus familiares. Para onde eles costumavam viajar? Alguém tinha que falar algo...

Cap. IV - Na Estrada
Antes de falar com os parentes das vítimas o detetive Cliford Atkins cometeu o seu maior erro. Ele pegou seu carro e foi para a estrada. Queria conversar com as pessoas que viviam ali, literalmente à margem da sociedade. Rondando se deparou com uma mulher bonita. Era obviamente uma prostituta. Ele não iria fazer um programa, óbvio, mas conversar com alguém que vivia naquele ambiente era um ponto de investigação válido.

Por uma incrível coincidência a mulher que ele chamou para conversar era Alicyn Woother. Ela mesma, a assassina das estradas. Poderia haver algo mais inesperado do que isso? Não, jamais. Clift lhe ofereceu dinheiro, mas ela ficou arredia. Embora estivesse desesperada em busca de algumas notas sabia que aquele sujeito era um tira em busca de informações. Bem, depois de um tempo ela refletiu e pensou que ele estivesse em busca de informações de alguns travestis que faziam ponto por ali perto. Alguns tinham "navalhado" seus clientes.

Ela disse que aceitaria o dinheiro, mas que eles teriam que sair dali. Caso alguém a visse com conversa com algum policial isso seria perigoso. Ela seria morta por isso. Depois perguntou quanto iria levar pelas informações. O velho tira ofereceu 40 dólares. Ela não aceitou. Só iria pelo preço de um programa regular, 200 dólares. Veja, ela já não era mais a bonita mulher do passado. Certamente não ganhava isso por programa, era uma farsa, mas mesmo assim o policial aceitou.

Valores acertados, ela então entrou no carro. Foram para uma estrada secundária, de terra, sem asfalto. Longe da vista de todos. Era o modus operandi dela. Assim que o carro parou ela pediu um momento "para acertar a bota que estava calçando". Na verdade ela escondia um pequeno revólver de dois tiros, muito popular entre as mulheres.

A ação foi rápida. Ela veio por trás da cabeça do policial, mirou e atirou. Tiro certo, morte imediata. Sem saber Clift teve o mesmo destino dos homens que foram assassinados, dos crimes que investigava. Baixou a guarda, achou que seria altamente improvável encontrar a criminosa que procurava. Como um policial tão experiente caiu numa armadilha tão simples? Ossos do ofício. Ela ainda vasculhou o carro e a carteira do velho tira em busca de algum valor. Encontrou 400 dólares. Uma boa quantia. Com os 200 que já tinha saia agora daquela cena do crime com 600. Um dia produtivo. E o policial? Foi morrendo aos poucos... as pupilas perdendo o brilho... seu corpo lentamente morrendo. Ele deveria saber que em contos noir as mulheres sempre são fatais. 

Cap. V - O Sórdido Encontro de Lábios
Alannah não era uma mulher bonita. Baixa demais, gordinha, acima do peso, com tornozelos grossos, não tinha um corpo bonito. Era uma garota comum que procurava se arrumar para que o conjunto não parecesse tao feio. Ela era enfermeira, não era rica, de jeito nenhum, ganhava pouco e vivia no sufoco. Ainda morava com o pai, um sujeito caipira, do interior, rude e tosco. Charles, seu pai, poderia ser definido como um homem burro. Só falava de vacas e futebol. Não tinha muito conhecimento do mundo e nem queria ter. Ele cultivava um certo culto ao fato de ser um ignorante. Pessoas ignorantes não sabem a extensão de sua ignorância e assim acabam sendo sábias, pelo menos em sua cabeça de amendoim.

Alannah já tinha passado dos 30 anos de idade. Para uma mulher sempre há aquele estigma pejorativo da "tia solteirona" que não conseguiu se casar e nem ter filhos. Tudo preconceito, não se pode negar. O que poucos sabiam é que Alannah tinha aversão sexual a homens. Ela na realidade era lésbica. Nunca havia sido do armário porque seu pai tosco e pseudo conservador nunca iria aceitar isso. Provavelmente iria expulsá-la de casa, como seu tio havia feito com seu primo. Gente rude do interior, não aceitava homossexuais sob o mesmo teto. A tosquice misturada com a religião dava como frutos esse tipo de situação aflitiva. Assim Alannah ficava na moita, sem nunca assumir sua verdadeira identidade sexual.

Algumas vezes ela arranjava um namorado de fachada, mas aquilo era o fim da picada em sua mente. Quando as coisas apertavam demais e ela ficava sufocada o jeito era pegar seu carro e pegar a estrada, onde ela podia ir em bares escondidos frequentadas por mulheres lésbicas. Era a forma que ela tinha de respriar um pouco mais. Nesses lugares ela finalmente podia se sentir livre, sem ter que dar satisfação para seus familiares bocós. Ela inclusive se via livre de ter que conversar com seu irmão que também era o suprassumo da estupidez e ignorância. Nos bares lésbicos ela tinha com quem conversar, falar sobre a vida e o mais importante de tudo, conviver, mesmo que por pouco tempo, com pessoas como ela. Era libertador em todos os sentidos.

Em uma dessas tardes Alannah conheceu Alicyn Woother. Ela estava assustadoramente bonita naquela ocasião. Os anos que lhe fizeram tanto mal em termos estéticos havia dado uma trégua ali. Alicyn parecia tão sedutora ali, com um copo na mão, o rosto parcialmente bronzeado pelo sol, os olhos azuis, o cabelo loiro, que mesmo não sendo tratado como devia ainda chamava a atenção. Como uma profissional do sexo, com antenas ligadas ao redor, Alicyn percebeu que Alannah lhe encarava com uma certa insistiência. Era óbvio que ela estava interessada nela. Só não sabia que no dia anterior o alvo de seus suspiros havia matado um tira no meio da estrada... isso sem contar todos os outros clientes asquerosos que ela havia mandado dessa para melhor... ou pior, dependendo de suas crenças religiosoas ou do que significa um cova fria em sua visão pessoal.

Alicyn gostava de se ver de uma forma diferente, mas a dura realidade é que ela era uma puta. Passara a frequentar bares de lésbicas para quem sabe diversificar seu leque de clientes. Até porque ela tinha uma namorada fixa, era lésbica em sua vida pessoal e tinha ojeriza de homens, com seus pintos sujos, barrigas flácidas e conversas dementes. Se relacionar com uma mulher era sempre melhor. As mulheres sempre procuravam a sutileza, procuravam aparentar ser mais inteligentes do que eram, mesmo que fossem na realidade bem burras. Era parte da sedução que surgia entre duas fêmeas. Isso estimulava Alicyn ao máximo. Era o último porto de tesão que ainda percorria suas veias e mente.

Alannah se aproximou e ofereceu um drink. Alicyn aceitou com prazer, com um sorriso nos olhos. Havia ali todo um jogo de sedução. Uma olhava os lábios da outra e o clima ia ficando mais quente. Havia mesas mais ao fundo, para momentos de maior privacidade. Alicyn convidou Alannah para ir até lá. Convite aceito sem reservas ou receios. Em poucos minutos ambas estava se deliciando, saboreando a saliva da parceira. Beijos realmente afetuosos, que de certa maneira demonstravam o quanto Alannah se encontrava carente naquela ocasião. Não era fácil manter uma imagem quase por 24 horas por dia apenas para agradar a família conservadora e tosca. Esses momentos de liberdade, onde ela beijava outra mulher, era tudo o que ela queria na vida. Pena que não tinha dinheiro para abraçar a independência completa em sua vida.

Ficou meio óbvio que Alannah ficou caidinha por Alicyn. Essa era o que poderia se chamar de "puta velha". Sabia que poderia extrair algo dali. Ambas saíram depois de uma hora sarrando no bar. Foram para um motel de beira de estrada que ficava ali pertinho. Quantos homens Alicyn já não tinha atendido naqueles mesmos quartos? Já tinha perdido a conta. Porém agora com Alannah elas tiveram um momento muito quente e muito íntimo. Não era apenas mais uma cliente de sua vida de prostituta. Parecia haver algo a mais ali naquele encontro, algo mais forte e algo mais perigoso também...

Cap. VI - Orgia de Sangue
Alicyn matou Alannah com requintes de crueldade. Primeiro fez ela se despir completamente. Realmente não tinha um belo corpo. Era desleixada e isso ia contra ela. Também era mal feita por natureza. Pernas curtas demais, ausência de um bumbum bonito. Enfim. Nesse primeiro momento Alicyn ainda não tinha decidido se iria matá-la ou não, mas algo a fez decidir por um caminho. Ela viu de relance um cartão de crédito do American Express. Esse cartão geralmente tinha alto limite de crédito. Alicyn colocou olho gordo ali. Alannah estava condenada.

Alicyn levava dois punhais bem cortantes e bem afiados em sua bolsa. Dessa vez ela estava sem a arma calibre 38 que costumava usar para matar seus clientes homens. Então ela fez com que Alannah deitasse de costas para ela, insinuando que iria fazer uma massagem. Disse que ficaria mais erótico se ela deixasse que fosse colocada um pano em sua boca. Era a segurança de que ela não iria gritar. Alannah inocentemente aceitou a sugestão. Erro fatal.

Com Alannah nua, indefesa, com os braços amarrados (para simular o tal fetiche erótico), de costas para Alicyn, completamente nua, era a vítima ideal. O cordeiro no altar do sacrifício. O abate seria fácil demais. Alicyn pegou seus dois punhais. Alannah não sabia o que estava acontecendo então.

- Toma sapatão escrota, toma sua puta safada! - gritou Alicyn no primeiro golpe...

Alicyn deu a primeira punhalada... depois outra, nas laterais, Alannah gritou de dor, lágrimas saíram de seus olhos, mas ninguém ouviu. Ela estava amordaçada e morrendo em um banho de sangue, em uma orgia de sangue. E Alicyn continuava a apunhalar com todas as suas forças... Os músculos exteriores foram rompidos, e Alicyn fez ainda mais força para que os punhais entrassem mais fundo nos órgãos internos de Alannah. Também girou a arma branca para causar ainda mais estragos...

Nesse assassinato algo estranho aconteceu. Alicyn ficou realmente excitada com tudo aquilo. O sangue, sua vítima nua na cama, morrendo afogada em seu próprio sangue... aquilo deixou Alicyn molhadinha... excitada, chegou inclusive a fazer movimentos lascivos com sua língua, como se tivesse em um caso de amor com o próprio diabo. Tão excitada ficou que quase não conseguiu parar as punhaladas - que segundo o laudo do médico legista, havia ultrapassado as 80 estocadas no corpo de Alannah. Nenhum ser humano iria resistir a tamanha agressão e violência. Logo Alannah perdeu os sentidos e morreu...

A assassina cuspiu no corpo de sua vítima e xingou: "sapatão safada". Depois Alicyn foi ao banheiro, se lavou rapidamente e pegou dinheiro e o cartão de crédito de Alannah. Não demorou muito e correu em direção ao caixa do banco onde conseguiu sacar mais de 5 mil dólares do dinheiro de Alannah. Nossa, ela iria fazer a festa com tanta grana. Havia valido a pena matar aquela vadia... pelo menos era isso que pensava. O que nem parava para raciocinar é que havia deixado dessa vez uma centena de pistas para os policiais que iriam investigar a morte. Era um jogo onde ela mais cedo ou mais tarde iria se dar mal. 

Cap. VII - Rota 66
Numa quinta-feira à tarde, já completamente entediada pela vida, a assassina resolveu pegar a estrada. Pessoas com problemas de psicose não aguentam viver muito tempo em um mesmo lugar. Assim ela pegou seu cartão de crédito, foi até uma locadora de carros e saiu com o veículo. Não tinha a menor intenção de devolver aquele automóvel. Foi para a estrada com a intenção de matar geral, detonar quem encontrasse pela frente. Estava com sangue nos olhos. Queria esfaquear todo macho escroto que encontrasse pela frente. Quanto mais asqueroso fosse, melhor. Ela tinha intenção de cortar as gargantas deles, roubar seu dinheiro, chafurdar no crime.

E ela estava eufórica. No volante ela pensou em si mesmo. Pensou e lembrou que se sentiu culpada dos primeiros homens que matou. Só que agora ela não tinha mais culpa, não tinha mais consciência. Havia pegado gosto pela "arte de matar". Não queria mais saber de pensamentos de culpa e nem de teor religioso. Queria matar... matar... matar. Em sua mente ela pensou: "O que eu tenho a ver com um cara que morreu há 2 mil anos? Um sujeito que ninguém sabe exatamente quem foi? E o que tenho a ver com mãe dele?". Ela tinha tido formação católica e estava se referindo a Jesus e sua mãe Maria. Ela cuspiu pela janela e gritou: "Porra, eu sou livre! Eu vou fazer o que quiser da vida!"

Depois de viajar por toda a noite ela decidiu parar em  St. Louis, Missouri. Abasteceu o carro, comprou comida e parou um tempo para fumar um cigarro. Nisso chegou um autêntico "Red Neck", um caipirão daqueles bem típicos. Boné, roupa de operário. Puxou uma conversa fiada com ela. Papo furado. Ele perguntou de onde ela era e tudo mais. As respostas foram evasivas. O sujeito continuou a encher o saco. Ela então decidiu que iria dar uma marretada em sua cabeça, bem na frente, para afundar seu crânio.

Ele insinuou que ela poderia ser prostituta, sabe como é... com aquelas roupas. Ela então disse que fazia programas de vez em quando. Cobrava 10 dólares. Os olhos do infeliz brilharam. Transar com uma mulher daquela por apenas 10 dólares? Ele estava dentro do negócio. Ela aceitou a grana e disse que ele entrasse no carro. Pararam em um lugar bem vazio, com ninguém por perto. Ele tentou agarrar seus seios, mas ela pediu um tempo, foi atrás no porta-malas e disse que ia pegar umas coisas.

Ele esperou, já abaixando as calças. Quando ela retornou tinha uma daquelas marretas de construção civil. Objeto pesado, grotesco, rude e violento. Só deu uma na cabeça do pobre diabo. Chegou por trás, de forma sorrateira. Ele parecia lamber os beiços pensando que ia transar com ela. A assassina só deu uma porrada. Ele percebeu o osso do crânio afundando... afinal aquele tipo de marreta era usado para derrubar paredes, imagine o que iria fazer em um crânio humano. A pancada, dura e seca, fez com que o idiota morresse na hora. Seus olhos ficaram escuros, ele perdeu a consciência em segundos.

Ele ficou lá no chão tendo espasmos. Devia ser alguma reação ao golpe que sofreu. Ela não quis nem saber. Foi direto no bolso do desgraçado. Pegou sua carteira. Havia tirado a sorte grande. Ele provavelmente havia recebido salário naquele mesmo dia. Havia 800 dólares na carteira, uma boa grana, iria pagar a viagem por alguns quilômetros. Ela então olhou pela última vez para ele. Estava morto, não respirava mais. Uma vida sem importância chegava ao fim. Ela não queria nem saber! Foi tão fácil, ela pensou. Antes de entrar no carro para ir embora ainda acumulou o máximo de catarro, lá dos fundos de seu pulmão. Depois deu aquela cusparada na cara do homem morto. O musgo verde escorreu de sua cara feia. Ela ligou o carro e foi embora, pensando: "É mais fácil do que tirar doces de criancinhas"

Cap. VIII - A Fazenda Gromberg
Há coisas que não se faz. Há crimes que até mesmo os mais selvagens criminosos sentem asco e nojo. E exatamente o crime cometido pela assassina em relação ao casal Gromberg. Dois velhinhos. Duas pessoas adoradas pela comunidade. Viviam em uma fazenda afastada, onde passava a estrada da rota 66. A assassino parou por alguns instantes e visualizou aquela bonita casa de campo. Estava muito bem cuidada. Ela pensou, que essas pessoas certamente deveriam ter um cofre com dinheiro. "Vou até lá!".

Fingindo ter problemas no carro ela estacionou na frente da casa da fazenda e buzinou. A sra Gromberg, que na época deveria ter uns 80 anos de idade, abriu a porta da casa. Vendo aquela jovem ali, pedindo ajuda por causa de problemas mecânicos no carro, imediatamente se prestou a ajudá-la. Depois saiu da cara o senhor Gromberg, veterano de guerra, 86 anos de idade. Eles ouviram a mulher e disseram que sim, ela poderia entrar em sua casa, com a finalidade de ligar para um mecânico. Era tudo mentira. Ela queria apenas roubar os pobres e indefesos velhinhos.

Quando o xerife Tom Oxford chegou na casa, duas horas depois, ele viu uma cena de terror. O casal havia sido amortaçado, torturado e morto com requintes de crueldade. O cofre que ficava no último quarto da casa, estava aberto. O criminoso havia levado todo o dinheiro. A morte do casal de idosos, que Tom conhecia desde os tempos em que era um simples colegial, o enfureceu. Quem poderia ser tão vil a ponto de matar aquelas duas pessoas? A violência e a insanidade foi perturbadora. Ao sair da casa, em busca de um pouco de oxigênio, ele puxou sua escopeta, a destravou e prometeu:

- Eu vou caçar esse criminoso até os confins do inferno, se for preciso! - Quem conhecia o xerife sabia que ele iria cumprir aquela promessa! Homem da lei há muitos anos, veterano policial, era visto como um homem honesto e íntegro pela comunidade. Quando era necessário ser duro, ele o era, sem pensar duas vezes. Quando era preciso um pouco mais de equidade, em vista de alguma pequena falha de algum morador que ele conhecia, ele certamente fazia vista grossa. Sabia ser justo, sabia ser honesto.

Ele era o xerife de Flagstaff, Arizona, há mais de 30 anos. Começou bem jovem, como patrulheiro da rodovia 66. Depois foi subindo na hierarquia. Quando o xerife John Jones se aposentou, ele assumiu a força policial daquele pequena cidade. Agora se via diante do crime mais brutal, violento e insano de sua vida. Já nos primeiros minutos na casa encontrou um cigarro fumado da marca Chellender. Era uma marca feminina. Os dois idosos não fumavam. Estava claro que uma mulher havia feito parte do crime. Evidências periciais indicaram que apenas uma pessoa entrou naquela casa. Era uma assassina! Uma assassina das estradas! Oxford estava pronto para começar sua caçada! 

Cap. IX - A Perseguição
O xerife Oxford nem pensou duas vezes. Com as (poucas) informações que tinha entrou em seu carro e pisou o pé no acelerador. Ele queria pegar aquela criminosa de todas as formas. A Rota 66 era ao mesmo tempo uma rota de fuga para ela, mas também uma armadilha. Isso porque ela muito provavelmente não sairia de seu caminho, o que iria facilitar e muito em sua captura. Do rádio do carro patrulha, o xerife entrou em contato com todos os demais xerifes da região. Barreiras foram montadas, ninguém sairia do estado do Arizona sem ser totalmente identificado.

As pistas diziam que se tratava de uma mulher, entre 40 e 55 anos de idade. Provavelmente loira (fios de cabelo foram encontrados na cena do crime). Ela também estaria dirigindo um Ford 41. Arriscaria dizer que de cor preta, pois esse modelo tinha em maioria essa cor na lataria. Então todos os policiais tinham que passar pente fino em carros dirigidos por mulheres sozinhas, loiras e de lataria de cor preta. Parar o carro, revistar, pegar os documentos, tudo era procedimento padrão. Dirigindo a alta velocidade o xerife ouviu no rádio do carro que havia uma situação de emergência.

- Atenção, atenção! Policial atingido no KM 68, policial abatido, levou um tiro de revólver. Todas as patrulhas da região se desloquem até o KM 68, situação de emergência! - Ao ouvir isso o xerife respondeu imediatamente - Atenção, aqui xerife Oxford. Estou próximo da área da ocorrência. Estou me dirigindo imediatamente para lá.

Estava tão perto do lugar onde o policial havia sido baleado que, segundo seus próprios cálculos, chegaria no local em pouco mais de 20 minutos. Era necessário acelerar, acelerar, pisando fundo no acelerador. Agora não era apenas questão de prender a assassina das estradas, mas também de salvar a vida de um colega de farda.

Assim que chegou no lugar o xerife Oxford viu o jovem policial caído no chão. Para seu alívio ele estava vivo. Ao seu lado dois carros parados. A sua rádio patrulha e o carro da criminosa. Exatamente como havia sido sugerido pelas investigações, um carro Ford preto. O xerife percebeu que a criminosa havia fugido para um bosque ao lado, isso após dar um tiro no policial que a parou na rodovia para pedir documentos.

O jovem patrulheiro mal teve tempo para uma reação. Ao parar a assassina, pediu educadamente por seus documentos. Ela fingiu estar indo pegar sua carteira, mas na verdade sacou um revólver que estava debaixo do banco de motorista. E ela nem pensou duas vezes, nem pensou em render o guarda para pegar sua arma. Simplesmente sacou o revólver e atirou... a bala se fixou no ombro esquerdo do tira. Ele caiu com o impacto do tiro. Não havia risco de vida, pelo menos por enquanto.

O xerife Oxford então esperou pela chegada de um carro patrulha de apoio. Quando esse chegou ele nem pensou duas vezes, correu em direção ao bosque. Queria colocar as mãos naquela mulher fria que havia matado dois idosos em seu condado. Ao que tudo indicava era uma serial killer com outras mortes nas costas. Não seria fácil pegá-la no meio daquela região, mas ela não estaria muito longe. A chance era agora, mas por onde começar? Onde ela estaria se escondendo? 

Cap. X - Morte nas Folhagens
Há elementos complicadores em ir atrás de um criminoso no meio de um bosque. As folhas, úmidas, propicam quedas. Cada tronco de árvore é um pequeno e eficiente esconderijo. A surpresa pode ocorrer a qualquer momento. Um tiro pode vir pelas costas, pela frente, de lado, de qualquer lugar. Por isso quando o xerife Oxford foi em busca da assassina, ele foi com extrema cautela. Para sua sorte logo descobriu que ela vestia um casaco vermelho que a deixava bem à vista no meio de todo aquele verde. No passado os uniformes dos exércitos exibiam cores bem fortes. Isso durou até todos se tocarem que isso os transformavam em alvo ambulantes. A partir daí todos os exércitos do mundo se tornaram verdes.

Assim que o xerife a viu no meio da mata deu ordens para ela parar. Só que foi sem efeito. Ao invés disso ela se virou e deu um tiro no policial. Um tiro que não o atingiu. Provavelmente ela não era boa de mira, até porque só havia matado suas vítimas à queima roupa. Só bastou isso para o velho homem da lei descobrir que estava na presença de uma amadora. Ela não sabia atirar, nem mirar, nem nada. Em sua mente o xerife pensou que iria admitir que ela só atirasse por três vezes. Depois iria reagir.

O terceiro tiro aconteceu. Bom, a paciência havia se esgotado. O xerife se abaixou, dobrou suas pernas e fez mira. Ele tinha uma boa visão dela, mesmo que estivesse correndo por entre as árvores. O xerife então controlou sua respiração, fechou um de seus olhos, mirou bem e... apertou o gatilho! O tiro foi certeiro, bem em suas costas. A criminosa caiu com o impacto da bala atingindo seu corpo. O local atingido era bem mortal, ali ela poderia ter morrido de forma imediata, caso a bala chegasse em algum órgão vital. Mas estava realmente morta?

Oxford começou a caminhar em direção ao corpo da criminosa caída. Foi devagar, com extrema cautela. Nada de movimentos bruscos. Então chegou perto, a menos de 1 metro. Nenhum sinal de vida. Estava morta. Abatida como a um alce no meio da floresta. O xerife então colocou seus dois dedos em seu pescoço, em busca de sinais vitais. Nada. Ela havia partido dessa para melhor (ou pior, se você acredita na existência do inferno).

O xerife então ligou o rádio, avisou aos seus colegas de farda e esperou. Ali ao lado do corpo morto de uma mulher, caiu sobre ele uma certa melancolia. Um certo sentimento de que algo havia dado errado. Embora fosse uma criminosa, ainda era uma vida que se ia. Ele pensou, observou e ouviu o canto de pássaros. Era um contraste incrível mesmo. Do lado da morte, ouvia-se as mais belas canções da natureza, cantadas pelas aves mais bonitas que ele já tinha visto em sua vida.

Pablo Aluísio.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O Lobisomem da Escócia

Prólogo - Nos Tempos Romanos
Sempre existiu lendas e mitos nas terras altas escocesas. O clima frio e hostil e aquelas terras onde ninguém morava dava mesmo margem para o aparecimento desse tipo de história. Já nos tempos em que as ilhas britânicas estavam sob dominação romana, se dizia que nenhum legionário do império deveria subir muito ao Norte pois a morte o encontraria de forma certeira. Isso impressionou os comandantes romanos que apesar de formar uma casta de homens bravos, não os encorajava a ponto de enfrentar forças sobrenaturais que eles não conheciam. 

Nessa época remota surgiu a história de Lupus, um monstro, meio homem, meio lobo. Dizia-se entre os romanos que certa vez uma patrulha foi muito ao Norte e acabou se perdendo naquelas terras sem fim. Com a chegada da noite eles precisaram levantar acampamento para no dia seguinte tentar voltar para sua legião. Entretanto isso não iria acontecer. 

Os quatro soldados romanos foram violentamente atacados durante a madrugada. Uma besta caiu sobre eles de forma avassaladora. Muito se cmentou sobre as forças que atuaram naquele ataque formidável. Dois legionários tiveram suas cabeças arrancadas, seu elmo destruído. O outro ainda tentou fugir em disparada, mas parou ao sentir que longas garras entravam em suas costas, arrancando seu coração. Um barbarismo como nunca se viu!

Os romanos que chegaram no acampamento duas semanas depois ficaram chocados com o que encontraram. Restos de braços, pernas e equipamento militar espalhados por todas as áreas. A fera que os atacou não apenas tirou suas vidas, mas comeu parte de suas carnes. Canibais! Os romanos já tinham enfrentado todos os tipos de bárbaros ao longo de sua história, mas nunca tinham se deparado com nada parecido com aquilo. O comandante do grupo de resgate ficou chocado e amaldiçou o homem ou o animal que fez aquilo! Por Júpiter, nunca se vira algo assim antes. 

Depois disso os romanos resolveram parar os avanços para o Norte. O imperador Adriano mandou erguer um muro para o qual nenhum romano deveria passar além. As muralhas de Adriano ainda se erguem em grande parte do Norte da Bretanha, no local basicamente onde está a fronteira entre a Inglaterra e a Escócia de nossos tempos. 

E a lenda sobreviveu, pois antigos textos romanos foram encontrados contando justamente essa história. Relatórios militares que foram enviados para o Imperador em Roma. A lenda de um homem lobo que atacava e matava todos os que ousavam ultrapassar seu território. Ninguém poderia sobreviver após aqueles terríveis acontecimentos...

Cap. I - O Coveiro
Estamos no século XVIII. Para ser mais exato em 1773. Jack é um homem que para muitas pessoas não passa de um sujeito asqueroso. Ele trabalha como coveiro na cidade de Newtown. Lugarejo que parece nunca ter saído da estagnação, embora fosse relativamente perto da capital. Ali muitos estudantes de medicina, da classe alta, iam em busca de passar algumas noites nos bares e prostíbulos do lugar. As mulheres tinham fama de serem bonitas. Afinal mulheres bonitas e pobres se tornam alvo fácil para gaviões endinheirados da capital escocesa.

Entre eles estava Mark Longbridge III, filho de uma família tradicional. Jovem de apenas 20 anos, fazendo o primeiro ano do curso de medicina. Ele não sabia mas seu destino iria cruzar, pelas vias tortas do acaso, com o coveiro Jack. Para completar o trio de pessoas importantes naquela noite havia Katja, a jovem de aparência russa que trabalhava na taverna. Mark era louco por ela, já a tinha levado para a cama algumas vezes, mas sempre com um tipo de impessoalidade que o incomodava.

Ele sabia que aquela garçonete de corpo maravilhoso era também disponível, pronta para fazer companhia noite adentro a quem pagasse bem. Um relacionamento do jovem futuro médico com uma meretriz era algo impensável para a tradicional família Longbridge. Nem em sonho isso iria acontecer. porém Mark estava literalmente caído por Katja. Algumas vezes viajava toda a noite de carruagem apenas para vê-la. E aqui temos o primeiro elo de ligação entre o promissor estudante de medicina e o coveiro asqueroso da cidade. Katja era sobrinha de Jack.

No começo Jack passava pela madrugada para pegar a sobrinha e levá-la em segurança pelas ruas escuras da cidade. Numa dessas ocasiões conheceu o acadêmico em medicina que estava apaixonado por ela. "Bem rapaz, você então vai ser médico?" - Jack perguntou acendendo seu cigarro de palha, enquanto olhava Mark com os olhos semicerrados -"Eu conheço alguns médicos da faculdade de Edimburgo" -o sorriso irônico não escondia a acidez de seu comentário. Era como se ele dissesse "Eu conheço aquela gente, aqueles porcos de jalecos brancos!". No passado Jack havia vendido corpos humanos para professores e médicos da universidade. Claro, era um crime abominável, ele vendia presuntos frescos para os doutores. Era uma forma deles estudarem a anatomia humana com mais precisão.

A revelação obviamente chocou em um primeiro momento o jovem Mark. Era algo sinistro, porém isso numa visão das pessoas comuns, do homem médio. Ele iria ser um homem da ciência, um médico, por isso embaixo do rosto espantado havia também um pensamento racional do tipo "Eu entendo esse tipo de coisa, eu posso aceitar essa situação que para muita gente é sinistra e nebulosa". Ora, ora, Mark e Jack então decidiram tomar uma bebida. Tudo pago pelo jovem. Afinal ele queria conquistar também o tio, pensando em levar mais uma vez para cama sua sobrinha, Katja, mulher de seus sonhos mais inconfessáveis. Então ele olhou diretamente nos olhos do velho coveiro e lhe disse com convicção: "Eu posso conviver com isso! Eu entendo meus colegas! Eles fizeram tal coisa pela ciência".

A noite de bebedeiras continuou até o dia seguinte. Lado a lado a fina flor da sociedade escocesa, um estudante de medicina jovem, o melhor que se poderia esperar de um rapaz. Do outro lado um coveiro, considerado um dos tipos de trabalho mais brutais e rudes que se poderiam imaginar, isso claro, sob um ponto de vista da elite burguesa e intelectual. Porém por mais diferentes que fossem acabaram se aproximando, se tornando, pelo menos naquela noite, bons amigos.

Mark Longbridge gostava de beber. Embora tivesse que estar na universidade pela segunda de manhã, ele passava os fins de semana nas tavernas mais obscuras daquele lugar. Entre uma poesia e outra ele enchia copos e mais copos de whisky. Entre devaneios puxava conversas envolvendo lutas, sexo e até sobre o sobrenatural. Tudo o que ele não falava entre as elegantes e elitistas salas de aula da universidade. Afinal o ambiente universitário não abria margens para esse tipo de conversação, considerada de baixo nível, de péssimo gosto.

O coveiro Jack lhe contou algo curioso. O cemitério tinha sua própria "fauna" noturna, pessoas envolvidas com religiões e rituais pagãos de magia negra. Com a igreja pressionando os adeptos desses cultos de ocultismo só sobravam mesmo as ruelas entre os túmulos onde eles podiam fazer seus rituais macabros, durante as madrugadas escuras. Mark ficou surpreso em saber da existência desse submundo. Ele pensava até aquele momento que o cristianismo havia varrido da Europa esse tipo de ocultismo. Porém havia muito mais sobre as sombras que ele nem poderia imaginar.

Jack se referia a todos eles como "as criaturas da noite" ou "as crianças da noite", um pequeno feudo de pessoas que flertavam perigosamente com as forças do outro lado. Não as forças das luz, mas sim as forças das sombras. Jack, ás vezes, assistia tudo de longe, escondido em alguma penumbra. Havia muitas invocações, bebidas estranhas eram tomadas pelos participantes e de vez em quando alguma presença maligna chegava a ser sentida. Seus superiores tinham dado ordem para ele expulsar todos que encontrassem para fora do cemitério, mas Jack era um homem prático. Enquanto não houvesse aberturas de túmulos ou violações de corpos, ele tolerava aquela presença. Afinal, se havia alguém culpado em profanar túmulos naquele lugar era o próprio Jack, como ele já havia confessado.

Cap. II - A Universidade de Medicina
Mark retornou para a universidade pela segunda de manhã. Era a volta à velha rotina estudantil. De fato o curso de medicina era extremamente puxado, um choque de realidades envolvendo a esbórnia dos fins de semana e as aulas intermináveis da semana. Para aliviar um pouco o stress de passar o dia correndo pelos corredores, indo de uma sala de aula a outra ele se reunia com seus amigos na parte da noite na área externa do campus. Ali eles bebiam um pouco, conversavam sobre o mundo, recitavam poesias. Gostavam de se ver como um clube de literatura. Membros da fina flor intelectual escocesa, era natural que levassem aquele estilo de vida dândi.

Ao lado de Mark estavam sempre seus bons amigos, John Robinson e William Clark. Todos jovens como ele, ali na faixa dos vinte e poucos anos. Tinham a vida toda pela frente. Robbie e Bill (seus apelidos dentro do grupo de amigos) sempre ficavam intrigados e interessados nos relatos de Mark. O que ele teria aprontado no fim de semana? Nesse dia em particular Mark tinha mesmo muito o que contar. Ele havia conhecido o velho tio da garçonete pela qual ele era apaixonado. Um senhor que trabalhava como... coveiro da cidade! Estranho, muito estranho.

Porém a ideia ali era mesmo relaxar, contar algumas piadas, ouvir histórias bizarras, tudo para passar o tempo. Mark lhes contou que o velho havia flagrado pessoas andando pelo cemitério na madrugada, fazendo rituais de velhas seitas pagãs. Robbie, assim como havia ficado Mark, simplesmente não acreditou que ainda havia paganismo na Escócia! Era surreal. Aliás eles como estudantes de medicina estavam obviamente mergulhados em pura ciência. Sentimentos religiosos eram encarados como crendices populares, uma herança distante de um tempo que para esses jovens que se sentiam imortais não trazia mais nenhum sentido. Talvez apenas uma curiosidade sociológica. Nada mais do que isso.

Robbie provocou. Quem sabe eles não poderiam por pura farra ir para o cemitério à noite para ver com os próprios olhos esses "medievais". Seria divertido, engraçado, bizarro, tudo ao mesmo tempo. Além disso ia trazer uma anedota para que eles pudessem contar pelo resto de suas vidas. A ideia empolgou os dois amigos, mas Mark ficou com um pé atrás. Afinal o velho coveiro era o tio da garota pelo qual ele estava caidinho. Valia a pena se queimar assim? Só pela farra de seus colegas de universidade? Era muito arriscado, mas nessa idade quem pensa com seriedade? É um jogo divertido de cartas meu caro.

A semana transcorreu sem maiores problemas. Havia muitas aulas e naquele semestre em particular Mark estava prestando praticamente todas as matérias sobre anatomia. O corpo humano o fascinava. Ele tinha aquela máquina da natureza como um conjunto perfeito o que em sua opinião exigia a presença de um criador. Anos antes do advento da inteligência de design, Mark já ficava pensativo sobre tudo o que aprendia. Desde a menor célula, até o mais bem organizado e complexo membro ou órgão, tudo tinha sua função. Não havia espaço para o inútil dentro do nosso corpo. Era fabuloso. Para Mark havia uma inteligência por trás de tudo aquilo. Não poderia ser mero acaso, definitivamente não haveria como!

Durante a semana Mark se comportava como um estudante de medicina exemplar. Ele tinha boas notas, era considerado um aluno inteligente pelos professores e se revelava uma pessoa bem sociável entre os colegas de universidade. E freqüentar uma universidade naquele época era mais do que um privilégio. Era um verdadeiro sinal de que assim que formado haveria empregos, bons salários e um futuro promissor pela frente. E para isso não era necessário ser o mais inteligente dos homens. Se o jovem médico optasse por morar no interior, em pequenas cidades, ele também teria uma vida de privilégios, pois os médicos eram ao mais bem pagos por onde passavam. Era uma vida cheia de promessas no futuro, um sensação de sucesso enchia a todos de orgulho.

Claro, naquele meio também existiam os patifes, os pequenos canalhas e os assumidamente escroques. Todos eram, em maior ou menor grau, filhos da elite escocesa, pois o curso exigia vários anos de estudo e era necessário para isso uma família abastada e rica por trás. Os livros custavam pequenas fortunas e manter um estudante de medicina naquele tempo custava caro. Só as famílias mais ricas podiam dispor desse privilégio.

E no plano de futuro brilhante também havia a expectativa que o jovem médico escolhesse uma bela dama para se casar. Uma moça de família de sobrenome, a mulher que seria a ideal para um jovem médico em começo de carreira.

Era justamente isso que Mark mais temia. Ele era apaixonado por Katja, a garçonete filha de um coveiro. Impensável para sua mãe ter uma nora assim. Ele podia inclusive ouvir a voz de sua mãe berrando em sua mente numa hipotética situação dela um dia vir a descobrir tudo. Era enervante. A mãe dominadora provavelmente teria um colapso nervoso caso viesse a saber que Mark, seu filho motivo de orgulho, era apaixonado por uma vagabunda. E o que dizer de seus excessos na bebida?

Conforme a semana ia chegando ao fim Mark começava a salivar, a sentir um enorme desejo de tomar uma bebedeira. Ele sabia que isso era sintoma de que provavelmente ele iria desenvolver nos próximos anos um alcoolismo crônico. Porém é a tal coisa, quando se é jovem e se tem o futuro pela frente tudo é possível, nada parece ser trágico, cinza ou negro em seu futuro. Tudo parece brilhar, é claro. Só que contra fatos não há argumentos. Mark sentia a abstinência. Assim quando mal acabavam as aulas na sexta-feira pela tarde ele corria, subia em uma carruagem e ia para o interior, freqüentar as piores e mais esfumaçadas tabernas. Ele queria se esbaldar, com muito álcool, sexo pago e aquele clima de vida boêmia decadente e depravada que ele tanto amava.

E sim, havia ainda Katja, seu amor bandido. Mark não via a hora de se deitar com ela, ficar enrolado em seus braços, sentir aquele cheiro de perfume barato que tanto o excitava. Era um paradoxo. Quanto mais Katja parecia vulgar e dissoluta, mais ele parecia se apaixonar por ela. Quanto mais ela quebrava convenções, mais ele se derretia. Psicologicamente era um portão de liberdade. Liberdade de se ver preso a semana inteira na imagem de jovem impecável, de jovem promissor. Ele queria a esbórnia, queria a embriaguez.

Cap. III - O Cemitério
Naquele fim de semana Mark finalmente resolveu que iria até o cemitério, tarde da noite. Queria ver o que se passava. Já meio embriagado ele partiu ao lado de Katja pelas ruas escuras da cidade.

- Vamos encontrar seu tio – vamos lá! – gritava Mark enquanto caminhava. Ele via as pedras das calçadas brilhando ao luar.

- Fale baixo, cala a boca, vão nos prender por arruaça – devolvia Katja com os braços de Mark em seu ombro.

Ele tinha uma garrafa de whisky numa das mãos e na outra segurava Katja com força. Imaginem o escândalo caso sua nobre família o visse daquele jeito. O tio de Katja estava de plantão naquela madrugada. Era a velha história dos adeptos de ocultismo e paganismo invadindo o cemitério de noite para fazer seus rituais de satanismo. Havia até mesmo adeptos de uma nova linha de ocultismo francês, que havia sido compilado em um livro de sucesso chamado “O Livro dos Espíritos”. O autor? Um professor desconhecido que havia adotado o nome de Allan Kardec. No cardápio muita necromancia e invocação de mortos travestido de bom mocismo. O velho professor estava de olho mesmo nas vendas dos livros, mas no fundo acreditava em toda aquela nova doutrina de clara linhagem de anjos caídos.

A entrada no cemitério foi tranquila. Os velhos portões enferrujados estava entreabertos.  Era um velho cemitério decrépito, com suas antigas lápides, encobertas por vegetação rasteira. Aquelas pessoas tinham morrido há muitos anos. Provavelmente seus familiares também estavam mortos. Assim não havia mais quem se importasse com os túmulos. Com o abandono a natureza voltava a tomar conta.

Era aquele clima de abandono e solidão. Aqueles nomes nas pedras já não significavam nada para ninguém. O tempo, senhor de tudo, já havia de certo modo apagado da memória dos vivos a história daquela gente que jazia sete palmos abaixo da terra. Quem foram? Quem eram? Quais eram suas personalidades? O que faziam quando eram vivos? O que pensavam? Tudo havia se perdido nas areias do tempo. Dizem que nenhuma alma se apaga. É uma visão romântica. A maioria das pessoas terá suas memórias apagadas para todo o sempre. As ditas pessoas comuns serão esquecidas. Suas pegadas serão apagadas. Nem seus descendentes vão se lembrar delas após alguns anos. A morte é a morte também da lembrança, da memória.

E no meio desses pensamentos melancólicos Mark e Katja foram adentrando pelas ruelas do velho cemitério decrépito. Ela olhava acima dos ombros em busca de seu tio. Ele, meio bêbado, não estava preocupado. Tinha o calor do corpo de Katja ao seu lado. Era tudo o que ele queria na vida, no final das contas. Foram andando, andando, de vez em quando se lia algum nome de algum morto até que...

Eles ouviram barulhos. Pareciam tambores. Parecia gente cantando uma música estranha. Eram os pagãos, com certeza. Mark colocou o dedo sob a boca, fazendo aquele gesto de “silêncio” que todos conhecemos. Havia uma fogueira, se via pela claridade do fogo no meio da escuridão da noite. Mark e Katja foram em sua direção, se agachando um pouco para que ninguém os visse. Era um misto de aventura, mistério, tudo junto. Embiaguez de sentidos.

Ao subirem o pequeno morro viram então a cena. Eram de cinco a seis mulheres. Elas dançavam ao redor do fogo. Gritavam e cantavam numa língua estranha. Parecia um velho idioma dos druidas. Era obviamente uma cerimônia antiga, uma coisa de invocação de espíritos da natureza. Era o que os antigos costumavam chamar de bruxaria. Se fosse ainda os tempos da santa inquisição aquelas mulheres seriam queimadas na fogueira com toda a certeza.

Elas pareciam invocar o nome de demônios. Nomes que Mark desconhecia, mas que soavam um pouco familiares. Eram nomes de anjos caídos, de seguidores de Lúcifer. O que aquelas mulheres queriam com aquilo show de bizarrice? Era apavorante, estúpido, ridículo, tudo ao mesmo tempo. Claro, havia ali também um prato servido para sociólogos e teólogos em geral. Afinal ver um bando de mulheres nuas dançando em volta de uma fogueira, com atacas nas mãos, invocando antigos nomes de demônios, definitivamente não era algo que se via todo dia.

Até que Mark ouviu um barulho vindo do meio da escuridão das árvores. Parecia uma fera grunhindo de fúria perto de atacar. Era um rosnado aterrorizador, é verdade. Mark colocou as mãos sobre o paletó e percebeu que estava totalmente desarmado. Se aquele bicho resolvesse atacar ele não teria nem ao menos como se defender... Se havia momento para ter medo, bom, aquele era a hora certa para isso...

Cap. IV - O Lobo
Chorem crianças da noite, chorem! - Mark conseguiu ouvir essa ladainha bem no meio da tensão. Uma criatura estranha o enxergava por entre as árvores. Árvores de cemitério. Velhas, longas, sinistras... O animal foi se aproximando, mas ainda sem se revelar. Era algo não natural. Parecia um lobo, mas de porte extremamente avantajado. E aqueles olhos vermelhos, bem, aquilo não lhe parecia familiar? Era a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. A fúria e a violência. Nada de paz provinha daquele bicho.

Então ele se colocou por fora das sombras. A luz do luar iluminou a cabeça daquela insana visão. Mark ficou em alerta. Ele não queria fazer um gesto brusco porque isso poderia assustar aquela criança da noite! E então o animal começou a rosnar, a rosnar, era o prelúdio de um ataque iminente. Mark percebeu que tinha apenas alguns segundos e então.. o pulo fatal!

Ele se esquivou, mas não escapou de ser machucado pelas garras da fera. O sangue escorria em seu ombro. Mark então se abaixou e pegou uma pedra enorme, provavelmente pedaços de uma lápide secular. Ele ficou jogando a imensa pedra de mão em mão, olhando a besta nos olhos. Era uma dança corporal que passava a mensagem que haveria reação, que caso fosse atacado ele iria revidar. Besta dos infernos ou não, cão de Satã ou não, haveria luta. Mark, cerebral agiu como se tivesse pronto para a guerra com seu opositor.

O animal deu uma segunda investida e cravou os dentes no ombro de Mark. Ele caiu ao chão, viu de perto os dentes da fera pingando com seu sangue. Com adrenalina a mil nem pensou duas vezes e bateu a pedra na cabeça do bicho. Deu certo. A pancada surtiu efeito e o monstro bateu em retirada. A violência e a força do ataque acabou chamando a atenção de todas as pessoas que estavam no cemitério, até mesmo das garotas pagãs que se vestiram e saíram correndo em direção a Mark para prestar socorro.

Ele caído no chão, com a roupa rasgada e o sangue escorrendo pela camisa.  "O que aconteceu? O que aconteceu?" - gritavam as aprendizes de bruxas do inferno. "Fui atacado por um lobo!" - Respondeu Mark, ainda desnorteado pelos acontecimentos. Apoiado nas meninas ele se levantou. Sacudiu para tirar a areia. Areia de cemitério. A mesma que era jogada em cima dos caixões putrefatos dos corpos sem vida. Então as garotas o levaram até o portão. Só que havia um problema;. Mark parou, olhou para trás e gritou: "Katja, onde você está?"

Mark acordou no hospital. Ele estava mal. O animal que o atacou gravou os dentes em seu ombro. O ferimento foi feio. Rasgou a pele e danificou várias veias e músculos. O quadro não era bom. Ele ardia em febre. Seu pai ficou espantado ao saber das circunstâncias do ataque. O que diabos Mark estava fazendo em um cemitério? Que bicho o atacou? Por que ele não avisou sua família? Eram questões que todos se perguntavam.

Mark ficou doente e febril por três dias seguidos. Coisa grave. Só que para espanto dos médicos, após o terceiro dia ele teve uma melhora espantosa. O ferimento deixou de inchar e um risco de infecção foi descartado. No quarto dia ele parecia muito bem. Sentou na cama, andou pelo quarto, falou alegremente com os familiares. Parecia ter se recuperado bravamente! Até o corpo médico que o atendeu ficou surpreso! Era caso de entrar nos estudos da medicina.

No sexto dia Mark pegou sua camisa, seu casaco e saiu do hospital. Os médicos não lhe deram alta. Ele se deu alta. Acordou, lavou o cabelo, escovou os dentes e se foi. Sua primeira parada não foi na casa dos pais, mas na de Katja. Ele estava preocupado com ela. O que aconteceu com a garota pela qual ele tinha tantos sentimentos? Ele estava muito preocupado, porque em seus lembranças difusas ele viu ela sendo brutalmente atacada pelo bicho. Aquilo havia acontecido mesmo ou era fruto de uma mente em delírios, após a grande febre que teve no hospital?

 A notícia não foi nada boa. Jack Anderson, o velho coveiro, tio de Katja, lhe deu a terrível verdade.

- Katja está morta! - O velho era duro, sua profissão lidava com a morte, mas agora ele estava realmente entristecido.

- Meu Deus! Eu não acredito! - Mark, com lágrimas nos olhos, não conseguia acreditar. Ele se abaixou e ficou ema posição que mostrava sua vulnerabilidade emocional.

- O lobo a matou. Ele arrancou a cabeça dela - O tom do velho Jack era estarrecedor.

- Não, não... não... - Mark não conseguia acreditar no que estava ouvindo...

O  velho coveiro então percebeu que Mark tinha pedaços de curativos saindo por seu casaco. Ele percebeu que Mark tinha sido ferido também pela criatura. Isso não era um bom sinal, pelo contrário, era um péssimo indicativo. O velho acreditava em velhas lendas... como a de homens que viravam feras em noites de lua cheia. Para ele o ataque do "lobo" nada mais era do que o ataque de um "lobisomem" e como tal isso condenaria a vida de Mark para sempre. Se em algum momento, durante o ataque, seu sangue teve contato com o sangue do monstro feroz, então ele também estava condenado.

Cap. V - O Monstro
Mark virou-se e saiu, meio tonto pela ruas molhadas pela chuva. Foi uma imersão traumática para ele, do ponto de vista psicológico. Isso porque ele amava Katja, mas ela agora não passava de um cadáver. Ele queria saber o que tinha acontecido, o velho até estava disposto a lhe dizer, porém não naquele momento. O coveiro iria se inteirar dos acontecimentos. Saber o que havia mesmo acontecido. Caso Mark começasse a apresentar um comportamento estranho, o velho estava disposto a usar seu rifle para dar um tiro em sua cabeça. Mais uma criatura metade lobo, metade homem, seria demais para aquela pequena cidade.

Mark foi se recuperando aos poucos. A cada dia ele ganhava uma dose de normalidade. Começou a beber muito, na maioria das vezes para superar o trauma da morte de Katja. Era algo que ele não conseguia entender. O que havia acontecido naquela noite? Uma fera saindo das sombras, atacando as pessoas em um cemitério, durante uma noite de luar? Não fazia muito sentido. Era algo complicado de entender. Muitas perguntas ficaram sem respostas. Tudo havia ficado pelo caminho.

Numa tarde recebeu a visita do inspetor da cidade. Ele estava investigando a morte de Katja. Queria saber como ela havia morrido. Mark não tinha muito o que esclarecer. Ele mesmo tinha muitas dúvidas sobre tudo. Se alguém estava em busca de respostas era ele mesmo. O velho policial não gostou da atitude de Mark. Achou ele evasivo e fraco em seu depoimento. Desconfiado, colocou Mark na lista de suspeitos. Ele era um jovem rico, estudante de medicina, de uma ótima família tradicional, mas nada disso impedia de quem sabe ser indiciado pelo crime.

Durante a primeira semana após o ataque Mark foi notando algumas diferenças. Ele não conseguia mais se concentrar nas aulas e tinha tonturas e crises de vômitos, todos os dias isso acontecia. Ele estava tão deprimido que ignorou os sinais que seu corpo estava lhe passando. Outro fato também o deixou perplexo. Sua fome aumentou consideravelmente. E não era uma fome como outra qualquer. Era algo voraz. Ele não se satisfazia com o que estava acostumado a comer todos os dias. Agora Mark queria grandes fatias de carne, e se essas fossem sangrentas, muito melhor!

Ele passou a frequentar o restaurante especializado em assados e caças. Ele nunca havia ido muito por lá, mas agora era uma necessidade vital que sentia. Mal as aulas caminhavam para o final e ele já estava nos corredores, correndo em direção à comida. Queria comer, comer, comer, muito carne, sempre, sem intervalos. Virou algo obsessivo e doentio. Seus colegas de faculdade logo notaram isso. E mais de uma vez surgiu na classe com a roupa suja de sangue da carne que havia comido. Logo ele, um verdadeiro dândi no modo de vestir. Agora parecia o porco de uma açougueiro... o que estava acontecendo?

Ele não sabia disso, mas o estudante de medicina Mark Longbridge III havia se transformado em um monstro. Nas noites de lua cheia ele perdia a consciência humana e se transformava em um lobo feroz, uma fera em busca de carne! A fome era insuportável, assim qualquer coisa que se mexia era atacada ferozmente. O lobo causou pânico e terror por onde passava. A polícia já sabia que algo estava acontecendo. Era raro não aparecer o corpo de algum camponês ao amanhecer. Algo estava fora de controle e algo sedento por sangue.

O velho Jack Anderson, o coveiro, sabia muito bem o que ocorria. Ele entendia a lenda. Os eruditos se recusavam a acreditar em lobisomens. Isso era coisa de gente ignorando do interior. Mas Jack, um velho experiente, que não se surpreendia com nada, bem sabia o que se escondia por trás das sombras. Ele então decidiu que iria matar o monstro. Lamentava que com isso também iria eliminar Mark, mas isso era algo que não poderia mudar. O ser humano teria que ser sacrificado com a morte da fera. A bestialidade não poderia mais andar à solta nos bosques.

O que ninguém sabia é que Jack já havia tratado com esse tipo de coisa antes. Ele era muito interessado em ocultismo e sabia que forças sobrenaturais agiam no mundo material que conhecemos. Para lobisomens apenas balas de prata eram eficientes. Ele então foi até o amigo que trabalhava com forjamento de metais e pediu que ele fizesse um conjunto de seis balas de prata. Uma vez armada com o tipo ideal de munição se colocou à moita, esperando Jack passar na madrugada. Ele conhecia a rotina do jovem.

Cap. VI - A Noite
Na noite ideal ele começou a seguir os passos de Mark. Ele parecia meio desorientado quando adentrou o bosque da região. Com as mãos no rosto mal conseguia ficar em pé, então caiu. A transformação iria começar. Em poucos minutos sua feição começou a mudar. Era uma transformação dolorosa e insana. O velho Jack então se posicionou, colocou as balas no rifle e fez mira.

- Morra, enviado do diabo - morra! - Foram suas únicas palavras.

O estampido do tiro espantou os pássaros. O tiro não foi certeiro, atingindo apenas o ombro da fera. Essa deu um pulo de sobressalto, procurando pelo atirador. Os olhos vermelhos de ira denunciavam que o ser humano não existia mais, apenas a besta.

Então o velho Jack mirou com capricho em seu coração. E apertou o gatilho. A bala acertou em cheio...

Um ruído assustador cortou a madrugada. A fera caiu de frente, com as mãos tentando segurar o sangue que jorrava.

Mais um tiro, nas costas. Três balas de prata já cravavam o corpo do monstro.

O animal então caiu definitivamente. Estaria abatido?

O velho Jack chegou perto para conferir. E para não restar dúvidas deu mais dois tiros de prata, os chamados tiros de misericórdia. O animal deu seu último suspiro.

Jack não perdeu tempo e foi embora do lugar. Alguém poderia ter ouvido os tiros. Ele não queria ser acusado de assassinato.

E ali naquela lareira abandonada, iluminada apelas pela luz opaca da Lua, o jovem Mark começou a ressurgir. Ele estava morto, com as roupas rasgadas, o ombro nu, sangrando...

Era o fim de sua vida, era o fim de todos os seus sonhos... ou não?

Cap. VII - O Uivo do Lobo
Mark não morrera. As balas usadas pelo coveiro não tinham o teor necessário de prata pura para matar o lobo, apenas para suspender por um curto período de tempo sua transformação. O velho coveiro não teria dinheiro mesmo para comprar prata de alto nível de pureza. Mark estava vivo. Ele recobrou sua consciência levando as mãos em seu rosto. Sentiu como se 1 tonelada estivesse pressionando sua cabeça. Era uma dor terrível, mas ele havia retomado a consciência de si mesmo, de onde estava. As roupas rasgadas, sujas, cheias de lama... sangue coagulado em seus braços e mãos. Aquela noite que passou havia sido mesmo uma noite infernal, sob todos os aspectos.

Mark então se levantou. Ele ainda cambaleava, procurando por uma direção. Por sua sorte foi visto por uma jovem colega da universidade de medicina. Ela ficou horrorizada com o que estava vendo. Mark estava em frangalhos, ou melhor dizendo, suas roupas estavam esfarrapadas. Naquele momento parecia o mais imundo escocês do mundo - mais sujo do que os mendingos que andavam pelas ruas da cidade. Sua conhecida (veja bem, não era sua amiga, mas eles se conheciam), correu e usou o grande lençol que estava usando para seu pic-nic para cobrir Mark.

- Meu Deus! O que lhe aconteceu? - Isabel estava em choque. Mark não respondeu. Ele tinha problemas de se manter em pé. Imediatamente entrou na carruagem da amiga que o levou até um pequeno hotel nas vizinhanças. Mark mandou comprar roupas novas e depois de um longo banho estava novamente apresentável. Parecia finalmente um ser humano.

Ele se deitou na cama e ficou pensativo. O que havia acontecido mesmo? Ele tinha lapsos de memórias, apenas momentos breves surgiam em sua mente. Suas lembranças tinham cheiro e gosto. Cheiro e gosto de sangue humano. Lembrava de lutas, suor, fedores, adrenalina destroçando sua mente. Eram lembranças do momento em que se transformava em um monstro, em um lobo.

Como todo rapaz de sua geração ele também conhecia a lenda dos lobisomens. Era algo bem explorado por livros de bolso, publicações sensacionalistas. Era pulp fiction por excelência. Só que Mark também sabia que algo havia lhe acontecido. Verdade ou mentira, lenda ou realidade, ele sabia que algo havia lhe atingido. Sua mente de médico (ou de quase médico, já que ele ainda não havia se formado) se colocou a pensar. Ele poderia estar contaminado por algum vírus nunca estudado pela ciência médica. Ele poderia estar passando por alguma doença desconhecida. Virar simplesmente um monstro não era algo que lhe parecia crível. Era algo insano, fora de realidade, coisa de gente ignorante das pequenas vilas de interior. Mark tinha que achar a resposta, antes que fosse tarde demais...

Cap. VIII - Sexo, fúria e selvageria
Mark se tornou um lobo naquela mesma noite. Era sexta-feira de lua cheia. Impossível resistir ao chamado do lobo. Logo ele começava a suar em profusão, sentindo sua pele se revirar completamente. Era uma dor insana, uma dor da morte. Seus dentes caninos cresciam e forjavam sua caixa craniana. Geralmente nesses momentos ele desmaiava da dor insuportável que sentia. Perdia os sentidos. O homem era deixado de lado. A basta fera tomava o controle. E uma vez dominado, não havia mais nenhum pensamento racional em sua mente. Tudo que pensava em satisfazer seus desejos mais primitivos, como fome e sexo.

A fome logo foi saciada no bosque. Um cervo passeava tranquilamente na floresta, pensando estar seguro, coberto das sombras, quando o lobo o atacou. Era Mark transformado. Ele imediatamente atacou a jugular da pobre criatura. o sangue jorrou e lhe trouxe um prazer indescritível. Era insano, era selvagem, era maravilhosamente delicioso. Enquanto o animal morria, vendo sua vida escorrer por suas artérias, Mark se saciava, dando grandes mordidas em seu couro forte e resistente. Quando a pele finalmente rompia ele gritava para a luz do luar. Estava em êxtase completo.

Foi quando ouviu galhos se quebrando. Era uma pessoa. Melhor, era uma mulher. Andando no meio da floresta, no meio da noite, completamente indefesa. Tudo o que o lado bestial de Mark mais queria. Após saciar sua fome era hora de saciar sua lascívia. Não houve tempo de reação. A pobre garota gritou, mas não havia ninguém para ouvir. Mark pulou em cima dela, arrancando suas roupas com os dentes. Logo dois lindos seios rosados foram iluminados pela luz da lua da meia noite. Mark a possuiu com ferocidade, ali mesmo, no meio do mato, na areia do solo da floresta. Seu membro absurdamente aumentado por sua transformação praticamente rasgou a pobre garota em duas! Foi uma cena que o próprio Satã assistiu, tomando doses de vinho milenar e dando gargalhadas no meio da noite.

- Veja, seu desgraçado... Seu bastardo... veja... no que sua "genial criação" se transformou! - Era o anjo caído debochando e desafiando Deus. Era óbvio que ele, mais uma vez, queria demonstrar que o ser humano, dito como a maior criação de Deus, era uma piada infame. O seu ser humano, agora transformado em besta, devorava viva uma bela jovem loira de olhos azuis - Tome seu bastardo, tome seu canalha - Gritava Satã entre gritos e risadas diabolicamente ensandecidas.

Mark, ou melhor, a besta, continuou a possuir com ferocidade a jovem garota. Depois em um momento de pura fúria teve um orgasmo absoluto, feroz, incomparável. Ele estava fora de si, transformado em lobo. Lembrou de Katja, sua jovem amada, agora dentro de um caixão. Pensou em ir ao cemitério para tirar ela da sepultura, para fazer amor com seus restos mortais.

Satã, com seu poder de entrar na mente de Mark, deu risadas histéricas daqueles pensamentos. Imagine, depois de um ato de bestialismo, teríamos agora um ato de necrofilia. Esse Mark era realmente um de seus filhos malditos, um de seus ungidos nas escuras cavernas do inferno profundo. Satã dançava entre as árvores da floresta, ria de forma sarcástica, bebia o vinho derramando em seu corpo. Era a personificação do deboche, da blasfêmia, da sagacidade. Poucas vezes ele havia se divertido tanto como naquela noite escura.

Cap. IX - Carta a um Amigo...
Quando os inspetores entraram no quarto onde Mark vivia encontraram uma grande bagunça. Roupas rasgadas (e cheias de sangue) pelo chão, mau cheiro, podridão, moscas. Nada parecia lembrar o asseado estudante universitário do passado. A polícia já estava atrás de Mark há alguns dias. Ele foi visto saindo, praticamente nu, de uma das cenas de crime. Ali perto, a poucos metros, jazia o corpo de uma jovem que havia sido literalmente estraçalhada por uma selvageria poucas vezes vista. Assim o inspetor John Winston já sabia por quem procurar.

Ele começou uma série de investigações e descobriu alguns fatos interessantes. Mark há muito já não frequentava as aulas na universidade. Estava sempre apresentando um comportamento estranho, esquisito. Não falava mais com os velhos amigos, parecia perturbado da mente e do corpo. Seu cheiro ruim passou a ser comentado por colegas de classe. Ele não conseguia mais prestar atenção às aulas e fugia das provas. Numa dessas ocasiões chegou a quebrar um lápis bem no silência do teste. Aquilo chamou a atenção de todos. Ele apenas se levantou, jogou a prova no chão e se foi, grunhindo algumas palavras que ninguém entendeu.

Parecia estar sempre suado, enervado, colérico. O menor sinal de aborrecimento levava à ira. O menor comentário que ele considerasse ofensivo... partia para cima de quem dissesse tais palavras. De jovem calmo, sereno, amigo, culto, passou a ser visto como um sujeito rude, grosso, ignorante. Estava sempre vermelho, prestes a explodir. Era irascível, brigão... parecia estar sempre em busca de briga. Virou um valentão nos corredores da universidade. Destruiu sua imagem, virou uma paródia de si mesmo. Esse foi o quadro que surgiu de diversas entrevistas com outros estudantes.

Na carta que foi encontrada dentro de seu quarto, o inspetor descobriu mais sinais de que ele poderia ser o assassino selvagem e mordaz que estava há tempos procurando. A carta estava amassada, quase rasgada. Foi encontrada dentro de um balde onde o estudante jogava fora suas anotações. Era algo bem bizarro ter encontrado aquele manuscrito no meio de um monte de outras folhas de estudo. Ele estava com a mente alterada, por isso não devia se esperar por algo lúcido.

A carta tinha o seguinte teor: "Carta a um amigo. Estou muito mal nos últimos dias. Tenho passado por sintomas estranhos. Tenho momentos de delírio e loucura. Alucinações passam pela minha mente. Me vejo como um lobo no meio da floresta, correndo entre as árvores, predando pequenos e grandes animais. Sinto uma vontade imensa de consumir carne... humana! Quero matar, quero dilacerar... não sei o que está acontecendo comigo. Em um raro momento de lucidez nos últimos dias fui até a biblioteca da universidade em busca de respostas. Nos livros de medicina encontrei algo que pode ser a resposta para minhas perguntas. A palavra que pode me salvar é: licantropia! É isso, vou atrás de um especialista, vou atrás de cura... precisa me curar! Meu Deus... me ajude!"  

Cap. X - Mausoleum
O corpo de Mark foi encontrado alguns dias depois em um caminho para a cidade de Glasgow. Ele estava no chão, caído ao lado de sua carruagem de dois cavalos negros. O inspetor John havia acompanhado Mark nos últimos dias ao lado de dois investigadores. Trazia em mãos seu mandado de prisão. Não houve tempo de cumpri-los. As investigações revelaram que no últim dia de sua vida Mark comprou uma espingarda de caça a raposa. Depois comprou dois pacotes de muniação especial. Eram balas de prata, tiradas das minas de Montana, nos Estados Unidos. Algo caro, que apenas um jovem de família rica como ele conseguiria comprar tão facilmente.

Quem o encontrou foi um senhor, um velho camponês que morava perto. E ele tinha mais a dizer. Disse aos policiais que ouviu o tiro que matou Mark, mas que não foi até o local por puro receio de também sofrer alguma violência. Havia ladrões e bandidos atuando naquela área, principalmente pelas madrugadas. No dia seguinte, ao amanhecer, foi até o caminho e encontrou Mark morto no chão. O inspetor John descobriu que Mark havia se matado com um tiro na cabeça. O mais estranho em seu corpo é que um de seus braços estava absurdamente peludo para um ser humano.

A conclusão que o inspetor chegou foi algo que ele guardou apenas para si mesmo. Seria absurdo colocar isso em um relatório policial. Apenas em sua mente ele decifrou os acontecimentos. Era óbvio que Mark havia se matado durante sua jornada. Mas o que aconteceu? Para o inspetor ele começou a sofrer uma transformação. Era sexta-feira, noite de lua cheia. Sim, o inspetor, mesmo que não dissesse isso a ninguém, estava convencido que Mark estava se transformando em um lobisomem naquele momento. Desesperado, já com o braço direito em transformação, ele desceu da carruagem, pegou seu rifle, armou com duas balas de prata e atirou contra sua cabeça. Esse foi o seu fim.

Dentro da carruagem do suicida, o inspetor encontrou um livro chamado "Lendas e maldições do Lobisomem". Estava claro que Mark o estava lendo, pois havia muitas marcações em suas páginas. O inspetor pegou o exemplar e o tirou da cena do crime. Ele iria defender a tese de que Mark sim havia se matado, mas o havia feito em um surto psicótico. Ele estava sofrendo de algum distúrbio mental não diagnosticado. No auge da loucura havia decidido acabar com tudo. Esse seria o teor de seu relatório. Para poupar ainda mais a família e evitar problemas para ele, como servidor público, omitiu do relatório qualquer ligação de Mark com as mortes de mulheres. A família poderia ficar ofendida e destruir sua carreira, caso isso viesse a parar nos jornais.

Mark foi enterrado no cemitério local, na área reservada às famílias tradicionais e mais ricas da cidade. Não muito longe dali, na chamada "viela dos pobres", onde pessoas mais humildes eram enterradas, havia sido enterrada sua amada Katja. Eram tão jovens... morreram tão jovens... era algo a se lamentar. A família de Mark ficou arrasada e muito consternada com sua morte. Ele foi sepultado no bonito mausoléu de seu clã. Seu caixão foi depositado ao lado do lugar onde seu avô, um dos homens mais ricos da história da Escócia, há alguns anos jazia.

Curiosamente, com o passar dos séculos, aquele mausoleum ganhou fama de amaldiçoado pelas pessoas que moravam na cidade. Dizia-se que em noites escuras de lua cheia um lobo solitário, todo branco, ai até lá e uivava para a luz do luar. A fera tinha olhos vermelhos de sangue e não parecia ser desse mundo. A lenda urbana iria inspirar um jovem escritor a colocar no papel toda a história que era contada nas tavernas da região. Era a história de um jovem rico, estudante de uma das principais universidades escocesas, que nas noites escuras se transformava em uma besta assassina. Quem poderia discordar de algo assim? Absolutamente ninguém... O uivo do lobo nas noites tem seus próprios segredos seculares...

Pablo Aluísio.