Criminologia – Da Expansão e da Resistência no Direito Penal
1. Crise histórica do Direito Penal
O Direito Penal, desde o final do século XIX, enfrenta uma crise estrutural decorrente da incapacidade de cumprir plenamente suas promessas de prevenção e redução da criminalidade. A ideia de que a pena teria função reabilitadora ou intimidadora começou a se mostrar distante da realidade, principalmente diante do aumento do encarceramento, da reincidência e da seletividade do sistema penal. A prisão, antes vista como avanço civilizatório, passou a ser criticada como instituição falida, violadora de direitos fundamentais e pouco funcional para resolver conflitos sociais.
A crise também se relaciona com transformações sociais profundas, como a urbanização acelerada, globalização da economia e surgimento de novas formas de criminalidade que desafiam o modelo tradicional. Crimes econômicos, ambientais, tecnológicos e transnacionais escancaram a insuficiência de um Direito Penal pensado para sociedades simples, baseadas em relações pessoais e crimes de violência física direta.
2. Teorias que defendem a restrição do uso do Direito Penal
Diante da crise, surgiram correntes minimalistas e abolicionistas que propõem limitar o alcance da intervenção penal. O minimalismo penal, inspirado em Ferrajoli e Zaffaroni, entende que o Direito Penal deve ser a última ratio, usado apenas quando mecanismos menos gravosos são insuficientes. Defende-se a redução de tipos penais, diminuição de penas privativas de liberdade e combate à supercriminalização. O objetivo principal é evitar abusos estatais e preservar liberdades individuais.
Já o abolicionismo penal, associado a autores como Nils Christie e Louk Hulsman, vai além e critica a própria existência do sistema penal. Para essa corrente, o Direito Penal é um mecanismo de controle social seletivo, produtor de violência institucional e incapaz de solucionar conflitos. Propõe-se substituí-lo por formas comunitárias, restaurativas e não repressivas de resolução de conflitos.
3. Teorias que defendem a modernização do Direito Penal
Em contraposição, há correntes que defendem a necessidade de modernização do Direito Penal para responder às novas ameaças sociais. Inspiradas em Ulrich Beck, consideram que vivemos em uma “sociedade de risco”, onde danos em larga escala podem ser causados por organizações empresariais, grupos terroristas e operações tecnológicas complexas. Defende-se, assim, um Direito Penal mais ágil, voltado para riscos coletivos e capaz de prevenir danos antes que ocorram.
Essa visão apoia a criação de novos tipos penais, fortalecimento da legislação contra crimes empresariais e ambientais, e ampliação da persecução penal transnacional. Para seus defensores, a modernização é necessária para enfrentar ameaças globais e proteger bens jurídicos difusos.
4. Modelo de Direito Penal Liberal
O modelo liberal clássico, consolidado nos séculos XVIII e XIX, baseia-se nos ideais iluministas de limitação do poder estatal. Defende que o Direito Penal só deve intervir quando houver lesão a bens jurídicos individuais, como vida, liberdade e propriedade. Apresenta princípios fortes de legalidade, taxatividade, culpabilidade e individualização da pena.
Nesse modelo, a punição é essencialmente repressiva e posterior ao dano, sendo proibido punir condutas meramente arriscadas ou futuras. A liberdade individual está no centro, e o sistema penal deve operar com máxima restrição, evitando interferência indevida na esfera privada do cidadão.
5. Modelo de Direito Penal de Prevenção
O modelo preventivo, por sua vez, busca antecipar-se à ocorrência do crime. A proteção não se limita mais a bens individuais, mas também a interesses difusos, como meio ambiente, economia e segurança coletiva. Esse modelo fortalece medidas de controle, monitoramento e vigilância, criando figuras penais baseadas em risco, perigo abstrato e responsabilização objetiva em alguns contextos.
É um sistema frequentemente criticado pelo potencial de expansão excessiva do poder punitivo e pelo risco de violar garantias constitucionais, mas defendido como resposta necessária à criminalidade complexa e globalizada.
6. O Moderno Direito Penal e suas características
O Direito Penal moderno apresenta algumas características marcantes:
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Tutela de novos bens jurídicos: meio ambiente, ordem econômica, sistema financeiro, dados pessoais.
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Criminalização de riscos: crimes de perigo abstrato e responsabilidade penal empresarial.
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Enfrentamento de criminalidade organizada e transnacional.
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Tipificação de crimes cibernéticos e tecnológicos.
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Uso de instrumentos processuais especiais, como delação premiada e infiltração de agentes.
-
Cooperação internacional e tratados penais globais.
É um modelo expansivo, mas sustentado pela necessidade de enfrentar crimes que ultrapassam fronteiras e afetam milhões de pessoas simultaneamente.
7. Diferenças entre Direito Penal clássico e moderno
A transição entre os dois modelos pode ser sintetizada em alguns pontos:
| Aspecto | Direito Penal Clássico | Direito Penal Moderno |
|---|---|---|
| Foco | Indivíduo | Sociedade |
| Bens jurídicos | Vida, liberdade, patrimônio | Meio ambiente, economia, dados, saúde coletiva |
| Natureza da conduta | Ato consumado | Risco, perigo, tentativa ampliada |
| Criminoso típico | Pobres e marginalizados | Empresários, políticos, classe média e alta |
| Papel do Estado | Mínima intervenção | Forte atuação preventiva |
| Escala | Local | Global e transnacional |
8. Expansionismo normativo do Direito Penal
O expansionismo penal descreve o aumento contínuo de leis, tipos penais e penas, muitas vezes impulsionado por demandas midiáticas e sensação de insegurança. Esse fenômeno leva a:
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hipercriminalização,
-
aumento do encarceramento,
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criação de tipos penais simbólicos (com pouca eficácia prática),
-
enfraquecimento das garantias penais clássicas.
A expansão busca responder a riscos reais, mas frequentemente é usada de forma populista, com leis emergenciais e pouco refletidas.
9. Direito Penal e sociedade de risco
A sociedade de risco, conceito de Ulrich Beck, marca o surgimento de ameaças tecnológicas e industriais de grande impacto. O Direito Penal passa a proteger:
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ambiente,
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consumidores,
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sistemas financeiros,
-
segurança cibernética,
-
saúde pública.
A responsabilidade penal de empresas e dirigentes aumenta, assim como a criminalização de condutas antes consideradas atípicas.
10. Direito Penal e criminalidade moderna e organizada
O crime organizado introduz desafios que o Direito Penal clássico não previa: estruturas hierárquicas, lavagem de dinheiro, corrupção sistêmica e atuação transnacional. Novas estratégias surgiram:
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leis de organização criminosa,
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cooperação internacional,
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interceptações e monitoramentos tecnológicos,
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confisco alargado de bens,
-
delações premiadas.
Esse arsenal representa forte ampliação do poder punitivo.
11. Criminalidade no mundo virtual
A internet e as novas tecnologias criaram crimes impossíveis de punir com ferramentas antigas, como:
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invasão de sistemas,
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roubo e vazamento de dados,
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fraudes eletrônicas,
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deepfakes,
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criptomoedas usadas para lavagem.
O Direito Penal moderno precisa se atualizar constantemente, pois a tecnologia evolui mais rápido que a legislação.
12. Do indivíduo à coletividade: direitos difusos e novos paradigmas
Enquanto o Direito Penal clássico era centrado em proteger o indivíduo e punir crimes típicos das classes pobres, o Direito Penal moderno se deslocou para bens jurídicos coletivos. A criminalidade econômica, ambiental e financeira — praticada por agentes da classe média e alta — passou a ganhar destaque e levar à criação de novos tipos penais e mecanismos de regulação.
Essa mudança reflete um novo paradigma: o Direito Penal deixa de ser instrumento de perseguição dos marginalizados e passa a atuar sobre estruturas sociais complexas, ainda que a seletividade continue existindo.
13. Mudanças de paradigmas
A transformação do Direito Penal pode ser resumida como uma transição de:
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punir o dano → punir o risco,
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proteger o indivíduo → proteger a coletividade,
-
criminalidade simples → criminalidade complexa,
-
Estado mínimo → Estado preventivo e globalizado,
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prisão como resposta padrão → combinação de instrumentos múltiplos (administrativos, civis, penais).
Essa mudança gera debates intensos entre garantistas (que defendem limites estritos) e expansionistas (que defendem mais intervenção para proteger a sociedade).

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