Denominar “Crepúsculo dos Deuses” como uma das maiores obras cinematográficas de todos os tempos é desnecessário. Poucas vezes foi realizado um filme tão humano, tão cruelmente verdadeiro como esse. Ao mostrar uma diva envelhecida, uma antiga estrela do passado, há muito esquecida do grande público, o filme na realidade cria um estudo da alma humana poucas vezes vista nas telas. Em termos de melancolia e nostalgia, essa é uma obra insuperável. A personagem Norma Desmond (Gloria Swanson) não é apenas uma atriz que perdeu sua estrela e sua fama, mas também uma pessoa psicologicamente em ruínas que tenta de todas as formas se agarrar em um passado glorioso para suportar viver no presente. Embora muitas pessoas não parem para pensar sobre isso, a trama de “Crepúsculo dos Deuses” é mais comum na vida real do que se imagina. Não são poucos os artistas que presenciam o fim de suas carreiras, muitas vezes prematuramente. Astros e estrelas que brilharam por momentos fugazes e após o sucesso inicial simplesmente deixam de atrair o público e somem dos holofotes, sendo descartados pelos grandes estúdios. Poucos são os grandes mitos que resistem ao passar do tempo. Norma é de certa forma um retrato em microscópio da realidade de centenas e centenas de artistas que não conseguem superar a terrível passagem do tempo. Vivendo de suas imagens joviais e trabalhando em um meio que valoriza acima de tudo a beleza e a juventude, muitos são simplesmente descartados após atingirem uma certa idade.
Assim não serão poucos os artistas que irão se identificar com Norma, uma mulher que vive do passado, das fotos amareladas pelos anos e das recordações do tempo em que era de fato um mito em celulóide. Pensando em delírio que ainda é uma estrela, ignora o fato que o tempo passou e não há mais retorno possível aos seus anos de glória, das ribaldas, da aclamação dos seus fãs que lotavam os cinemas para assistir seus filmes. O brilho, a fama, o sucesso e a riqueza ficaram em um passado distante. O filme é realmente magistral. Há uma narração em off do personagem de William Holden que é um dos textos mais bem escritos da história do cinema americano. Misturando ironia com melancolia latente, ele nos apresenta sua história, contando em detalhes como acabou conhecendo Norma e seu estranho mundo enclausurado. Vivendo em uma mansão decadente, literalmente caindo aos pedaços, ao lado do mordomo fiel Max (interpretado pelo cineasta Erich von Stroheim com raro brilhantismo), ela ainda pensa que é uma estrela no mundo fútil das celebridades de Hollywood. O fato porém é que a passagem do cinema mudo para o cinema sonoro simplesmente acabou com sua carreira.
Suas opiniões sobre a irrelevância do cinema sonoro inclusive me lembraram do próprio Chaplin, que também em inúmeras vezes atacou a nova tecnologia. A atriz Gloria Swanson interpretando Norma é uma força da natureza. Impressionante a carga emocional que ela traz para seu papel. O curioso é que ela própria foi uma diva do cinema mudo, tal como sua personagem. Possessa e imersa completamente em sua interpretação, ficamos não menos do que impressionados pela força de seu talento. William Holden não fica atrás. Levemente cínico e incomodado com sua situação pessoal, ele esbanja aquele tipo de ironia que nasce da decepção consigo mesmo. Para o fã de cinema, o filme “Crepúsculo dos Deuses” traz ainda um verdadeiro presente. Em cena vemos o grande Cecil B. DeMille interpretando a si mesmo dentro dos estúdios da Paramount. DeMille foi um dos maiores nomes da indústria e vê-lo ali representando a si próprio é um deleite para qualquer amante da história da sétima arte. Outra presença marcante é a do ícone do humor Buster Keaton em uma participação particularmente melancólica. Sério e com olhar aterrorizado, ele participa de um estranho jogo de cartas com a diva em sua mansão, a mesma que foi usada como cenário de outro grande clássico, “Juventude Transviada” com James Dean.
Em conclusão, “Crepúsculo dos Deuses” merece toda o status cult que possui, todo o prestígio de grande clássico do cinema. É a obra prima definitiva do genial diretor e roteirista Billy Wilder, um mestre da era de ouro de Hollywood. É um desses filmes atemporais, que não envelhecem nunca e continuam tão maravilhosos como em seu lançamento. Delírios, traições, insanidade, compaixão e melancolia em um roteiro muito bem escrito, primoroso mesmo. Esse quadro completo compõe esse que é seguramente uma das maiores obras primas do cinema americano de todos os tempos. Simplesmente essencial.
Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, Estados Unidos, 1950) Direção: Billy Wilder / Roteiro: Charles Brackett, Billy Wilder, DM Marshman Jr. / Elenco: William Holden, Gloria Swanson, Erich von Stroheim, Nancy Olson, Cecil B. DeMille, Hedda Hopper, Buster Keaton / Sinopse: Norma Desmond (Gloria Swanson) é uma diva da era do cinema mudo que mora em uma grande mansão na Sunset Boulevard cercada apenas de seu mordomo fiel Max (Erich Von Stroheim). Por um acaso do destino, o roteirista desempregado Joe Gillis (William Holden) acaba indo parar na mansão de Norma após tentar fugir de credores do banco onde fez um empréstimo. Lá conhece a velha estrela e seu estranho mundo particular construído sobre velhas lembranças de um passado glorioso que não existe. Ela ainda pensa ser uma superstar no céu de Hollywood. Doce ilusão. Vencedor do Oscar nas categorias de Melhor Roteiro, Trilha Sonora e Direção de Arte. Vencedor do Globo de Ouro nas categorias de Melhor Filme - Drama, Diretor (Billy Wilder), Atriz (Gloria Swanson) e Trilha Sonora.
Pablo Aluísio.