domingo, 13 de dezembro de 2009

Choque de Ódios

Capítulo 1 – O Campo de Fantasmas
O sol já começava a declinar quando o capitão Elias Monroe avistou, à distância, a silhueta branca de uma grande casa sulista. Erguia-se solitária no horizonte, cercada por fileiras de carvalhos e um vasto campo de algodão já colhido, como um fantasma das colheitas passadas. O vento soprava do sul, trazendo o cheiro do pó e da pólvora, misturado ao perfume adocicado das flores que sobreviviam teimosamente no jardim abandonado.

A tropa da União vinha de dias de marcha ininterrupta. Eram apenas treze homens, exaustos, com uniformes rasgados e rostos queimados pelo sol. Haviam se separado do regimento principal após uma escaramuça nas margens do rio Yazoo. Sem mapas, guiavam-se apenas pela intuição do capitão e o desejo desesperado de encontrar abrigo antes que a noite os engolisse.

Quando avistaram a mansão, alguns pensaram que fosse miragem. Era imponente demais para ainda estar de pé, com suas colunas brancas e varandas amplas, um símbolo dos velhos tempos de riqueza do sul. “Deve ter sido uma fazenda de algodão”, disse o sargento Whitaker, coçando a barba rala. “Uma casa de senhores, talvez. Agora é só mais um túmulo.”

Monroe olhou para ela em silêncio. No fundo, sentiu algo estranho — como se aquele lugar os observasse de volta. Ainda assim, ordenou que avançassem. A noite se aproximava, e a guerra não perdoava homens ao relento. Marcharam em silêncio, cruzando o campo seco, enquanto corvos giravam lentamente sobre suas cabeças.

A primeira coisa que notaram ao entrar foi o silêncio. Um silêncio denso, sufocante. As portas estavam escancaradas, o chão coberto de poeira e folhas. Mas os móveis estavam lá — sofás de veludo, cristaleiras cheias de taças, retratos nas paredes. E, no porão, dezenas de garrafas de vinho francês, intactas. “Parece que o dono saiu e nunca mais voltou”, murmurou o soldado O’Donnell.

Em poucos minutos, o cansaço se transformou em alívio. Os homens riram, beberam, acenderam lamparinas. Fizeram fogo na lareira, limparam um pouco o salão principal e se deixaram embalar pela sensação quase esquecida de conforto. Monroe, porém, mantinha-se inquieto. Olhava para os retratos — um homem de terno branco, uma mulher altiva de olhar severo, uma menina com um laço azul no cabelo. Famílias inteiras que talvez já tivessem sido varridas pela guerra.

Quando o relógio de parede soou as nove badaladas, algo pareceu estremecer na casa. Uma janela se fechou sozinha. O’Donnell, rindo, disse que era o vento. Mas Monroe sentiu um arrepio que não vinha da brisa. Mesmo assim, ordenou que descansassem. Amanhã voltariam a tentar o norte, para reencontrar o exército da União.

Enquanto os soldados adormeciam sobre sofás e tapetes, a lua ergueu-se por trás dos carvalhos. A luz prateada entrou pelas janelas quebradas, riscando o chão de sombras. E, por um instante, Monroe jurou ver uma figura branca passando ao longe — uma mulher, imóvel, no meio do campo de algodão.

Ele piscou. A visão sumiu.
Mas o mal-estar permaneceu.

Capítulo 2 – Ecos na Escuridão
A noite caiu densa sobre a planície. Dentro da grande casa, as chamas da lareira tremeluziam como corações inquietos. Os homens dormiam espalhados pelas salas, alguns sobre sofás de veludo rasgado, outros recostados contra as colunas do salão principal. O ar estava pesado de fumaça, vinho e o suor de dias de marcha. Apenas o capitão Monroe mantinha-se desperto, vigiando pela janela quebrada do andar superior.

Lá fora, o campo de algodão reluzia sob o luar — uma extensão branca e silenciosa, quase sagrada. O capitão pensou em como aquele algodão, outrora símbolo da riqueza do sul, agora cobria a terra como mortalha. Era um mar de fantasmas. O vento soprava leve, mas trazia sons distantes — talvez trovões, talvez o eco de cavalos. Ele se perguntou se seriam ecos de batalhas antigas ou o prelúdio de uma nova.

Descendo as escadas, Monroe encontrou o soldado Harper acordado, fumando perto da lareira. “Não consegue dormir, capitão?” perguntou o rapaz. “Não é o tipo de lugar que deixa um homem descansar fácil”, respondeu ele. Harper riu nervosamente. “Parece que os antigos donos ainda estão por aqui. Ouvi passos no andar de cima.” Monroe o fitou. “Certamente era eu.” Mas no fundo, não tinha certeza.

Ao explorar a casa, Monroe descobriu a cozinha intacta, com panelas ainda penduradas e louças alinhadas como se esperassem o jantar. Encontrou também uma pequena sala de música — um piano coberto de pó e partituras amareladas. Sentou-se diante do instrumento e, movido por impulso, pressionou uma tecla. Um som grave e desafinado ecoou pela casa, fazendo alguns soldados se revirarem no sono. E então, de algum lugar acima, veio o estalo nítido de uma porta se abrindo.

O capitão subiu novamente, cauteloso, arma em punho. No fim do corredor, a porta do quarto principal estava entreaberta. Ele a empurrou devagar. O quarto era vasto e escuro, com uma cama de dossel coberta por lençóis antigos. Sobre a penteadeira, um espelho oval refletia sua própria figura à luz da lamparina — mas por um instante, jurou ver outra silhueta atrás de si. Uma mulher, alta, vestida de branco, parada à beira da cama. Piscou, e ela desapareceu.

Assustado, Monroe voltou ao saguão. O relógio marcava quase meia-noite. A lareira crepitava baixo, e o sargento Whitaker ressonava alto, sonhando com casa. Lá fora, o vento aumentava. O som dos galhos parecia o murmúrio de vozes. E, de repente, veio um estampido seco — como um tiro. Todos despertaram num sobressalto, puxando as armas.

“De onde veio isso?”, gritou O’Donnell. Monroe correu até a varanda, o rifle em mãos. O campo de algodão permanecia imóvel. Nenhum movimento. Nenhum inimigo. Apenas o eco distante de cavalos, agora mais forte, vindo do sul. Os homens se entreolharam — a tensão era palpável. “Talvez apenas um caçador”, sugeriu Harper. Mas Monroe sabia: não havia caçadores em cem milhas. E o som dos cavalos soava organizado… militar.

Quando voltaram para dentro, o capitão fez o sinal da cruz. “Amanhã sairemos ao amanhecer”, disse ele. “Antes que o inferno nos encontre aqui.”

Mas o inferno já os observava.
E ele viria antes do sol.

Capítulo 3 – O Cerco
O amanhecer trouxe uma luz fria e silenciosa. O campo de algodão parecia coberto por uma fina névoa que se erguia do solo como fumaça de um campo de batalha esquecido. Monroe acordou cedo, antes dos outros, e subiu à varanda do segundo andar. O ar tinha cheiro de chuva e ferro. Daquela altura, podia ver milhas adiante — e o que viu fez seu sangue gelar: pequenas colunas de fumaça no horizonte. Sinais de acampamentos. Tropas confederadas.

Desceu às pressas. “Todos de pé!” bradou. Os soldados acordaram assustados, ainda tontos de vinho e sono. “Temos companhia. Os rebeldes estão perto.” O sargento Whitaker correu para o pátio com o binóculo em mãos. Confirmou o que o capitão dissera — cavaleiros ao sul, e mais dois grupos se movendo pela estrada a oeste. Eles estavam sendo cercados.

“Quantos são?”, perguntou O’Donnell.
“Pelo menos uns cinquenta. Talvez mais”, respondeu Whitaker, engolindo seco.
“E nós somos treze”, disse Harper, rindo sem humor.

Monroe não hesitou. “Vamos transformar esta casa num forte.” Em minutos, os homens se espalharam, empurrando móveis pesados contra portas e janelas, montando barricadas improvisadas com mesas e estantes. As garrafas de vinho foram substituídas por cartuchos e pólvora. As cortinas elegantes viraram bandagens e cordas. A mansão, outrora símbolo de luxo, tornava-se agora um campo de guerra.

No porão, encontraram um pequeno arsenal: uma velha espingarda de caça, algumas munições enferrujadas e, para espanto de todos, um canhão de campanha coberto por lonas. “Deus abençoe os velhos senhores do sul”, disse O’Donnell, limpando o pó do ferro. “Parece que um deles deixou um presente.” Monroe sorriu pela primeira vez em dias. “Então faremos com que valha a pena.”

Enquanto preparavam as defesas, um silêncio tenso tomou conta da casa. De tempos em tempos, um corvo cruzava o céu, grasnando como se anunciasse o que estava por vir. Monroe subiu novamente à varanda e observou o inimigo se aproximando. Podia ver agora as bandeiras cinzentas tremulando, os cavaleiros armados de fuzis e sabres. E entre eles, um oficial de barba branca montado num cavalo negro — parecia liderá-los com autoridade fria.

O capitão respirou fundo. “Whitaker, posicione dois homens no telhado. Quero olhos em todas as direções. Harper, vigie o flanco leste. O’Donnell, carregue o canhão.”
“E o senhor, capitão?”
“Eu? Vou rezar um pouco. E depois, lutar.”

Ao meio-dia, o primeiro disparo ecoou. Uma bala acertou o corrimão da varanda, arrancando uma lasca de madeira. Os homens da União responderam quase imediatamente, e o campo branco se encheu de fumaça. O som da guerra voltava a dominar o sul, fazendo tremer as colunas da antiga casa.

Por horas trocaram tiros. Os confederados, em número muito superior, cercaram a propriedade em semicírculo, atacando por ondas. Mas a mansão resistia. Cada janela se transformou em posto de tiro; cada sala, em trincheira. Os soldados da União, famintos e exaustos, lutavam com o fervor de homens que sabiam não ter para onde correr.

Quando o sol começou a descer, as paredes estavam cravejadas de buracos, e o chão, manchado de sangue. Dois dos homens caíram — Harper e o jovem Miller. Monroe fechou os olhos ao vê-los tombar, e por um instante, a culpa o sufocou. “Eles morreram lutando, capitão”, disse Whitaker, tentando confortá-lo. “É o que fazemos de melhor.” Monroe assentiu. Mas no fundo, sabia que aquilo não era glória — era apenas a lenta devoração da alma.

A noite caiu novamente sobre a casa. O fogo ardeu baixo nas barricadas, e o inimigo se afastou por ora. Lá fora, o campo de algodão agora ardia em chamas — branco transformado em vermelho. Monroe olhou pela janela e murmurou: “Eles não vão parar.”
E, ao longe, sob a lua, o som dos tambores começou a soar.

O cerco apenas começara.

Capítulo 4 – O Sangue e o Algodão
A madrugada amanheceu envolta em fumaça. As colinas ao redor da fazenda estavam cobertas de névoa e o campo de algodão parecia um tapete cinzento, silencioso, como se a própria terra contivesse a respiração antes do ataque. Os homens da União se movimentavam em silêncio dentro da casa. As barricadas haviam sido reforçadas, e o canhão encontrado no porão agora estava posicionado na varanda, apontado para a estrada.

O sargento Whitaker afiava sua baioneta junto à janela. “Eles virão hoje, capitão. Sei quando um homem está prestes a matar.”
Monroe assentiu, com o olhar duro. “Então que encontrem homens prontos para morrer também.”

Às sete da manhã, o primeiro ataque veio. Uma carga de cavaleiros confederados desceu a colina em formação, bandeiras cinzentas tremulando, gritos de guerra cortando o vento. Os disparos ecoaram, e o som das balas zunindo encheu o ar. O’Donnell puxou o gatilho do canhão, e uma explosão ensurdecedora abriu um clarão que iluminou o campo inteiro. Cavaleiros foram lançados ao ar, e os que sobreviveram se dispersaram em pânico.

Mas logo vieram mais — fileiras de infantaria surgiram da névoa, marchando em direção à casa. O som de tambores e cornetas misturava-se ao estalar das armas. As janelas da mansão cuspiam fogo. Harper, mesmo ferido, gritava ordens entre tiros. O’Donnell recarregava o canhão com as mãos ensanguentadas. Monroe, no alto da escadaria, observava tudo como um general de ruína, comandando não um exército, mas uma lembrança dele.

O chão tremeu com a intensidade dos disparos. A cada carga repelida, mais homens caíam. Um soldado chamado Lewis foi atingido no pescoço; outro, Briggs, teve o braço arrancado por uma bala de canhão. Ainda assim, ninguém recuou. A casa tornara-se viva — respirava, gemia, sangrava junto com eles. As paredes brancas estavam manchadas de vermelho, e o algodão no campo ardia em chamas, parecendo neve suja de sangue.

Quando a noite caiu, os confederados recuaram novamente. A casa estava de pé, mas mal. Parte do telhado havia desabado. Um incêndio consumia o celeiro. Monroe sentou-se exausto no degrau da escadaria, observando os corpos no chão. “Quantos restam?”, perguntou.
“Sete, senhor”, respondeu Whitaker. “Sete vivos.”
“Então somos o que resta da União neste maldito lugar.”

A chuva começou a cair, misturando-se ao sangue e à fuligem. O capitão olhou para o campo em brasas e murmurou: “Amanhã, eles virão em dobro.”
E sabia que era verdade.

Capítulo 5 – O Coração da Mansão
A chuva caiu durante toda a madrugada, abafando o som distante dos tambores confederados. A casa estava em ruínas. O teto gotejava, o chão era uma mistura de lama e sangue. Monroe e os poucos sobreviventes se reuniram na sala principal. Acenderam velas e improvisaram curativos. O silêncio era pesado — o tipo de silêncio que antecede a morte.

Enquanto cuidava dos feridos, Monroe notou algo estranho. No canto da sala, sob os escombros, havia uma pequena porta de ferro semioculta por um tapete. Parecia levar a um porão mais profundo. Tomado por curiosidade, abriu-a. Desceu com uma lamparina na mão e encontrou um ambiente que não parecia apenas um depósito. Era uma antiga adega, sim — mas no centro havia uma cadeira, algemas enferrujadas e marcas nas paredes. Um antigo porão de escravos castigados.

Ele se ajoelhou, tocando o ferro frio. O passado do sul estava ali — concreto, cruel. Entendeu, enfim, por que aquela casa parecia amaldiçoada. “Os pecados antigos nunca morrem”, murmurou. Ao voltar, encontrou Whitaker observando pela janela. “Eles se preparam para o amanhecer”, disse o sargento. “Estão trazendo reforços.”

Monroe olhou para os rostos dos homens. Nenhum fugiria. Nenhum se renderia. Mas todos sabiam: estavam condenados. Ainda assim, o capitão sentiu que havia algo quase sagrado naquela resistência. Não lutavam mais por vitória — lutavam para deixar uma marca. Para provar que, mesmo esquecidos, morreriam como soldados.

Durante a madrugada, o capitão subiu ao quarto principal. Sentou-se à frente do velho espelho. Pela primeira vez em dias, viu-se claramente — os olhos cansados, o rosto coberto de fuligem, o olhar endurecido. E atrás de si, a figura da mulher branca outra vez. Ela não falava, apenas observava. Monroe não sentiu medo, apenas um estranho consolo. “Você também perdeu alguém nesta guerra, não foi?”, murmurou. O reflexo desapareceu.

Quando o sol nasceu, ele estava pronto.

Capítulo 6 – A Última Linha
O terceiro dia começou com fogo. Os confederados abriram ataque com artilharia pesada, bombardeando a casa a distância. As colunas caíam uma a uma, e o som dos estalos era como ossos quebrando. Monroe ordenou que todos se abrigassem no andar inferior. Lá, cada homem ocupou uma janela, transformando cada quarto em trincheira.

O’Donnell foi o primeiro a cair. Um disparo atravessou a parede e o atingiu no peito. Ele ainda teve tempo de sorrir para Monroe antes de desabar. O capitão ajoelhou-se ao seu lado e fechou-lhe os olhos. “Descansa, soldado. Você já cumpriu sua parte.”
O resto continuou lutando. A fumaça era tanta que mal se via o inimigo. Tiros ecoavam de todas as direções. O calor do fogo misturava-se ao cheiro de pólvora e madeira queimando. A mansão tornara-se um inferno de estalos e gritos.

Ao meio-dia, apenas quatro homens restavam. Monroe, Whitaker, Harper e um recruta chamado Evans. O jovem tremia, segurando o rifle com as duas mãos. “Eles são muitos, capitão!”, gritou.
“Não olhe para eles, Evans. Olhe para mim”, respondeu Monroe. “Enquanto estivermos vivos, esta casa continua de pé.”

Quando o inimigo avançou pela varanda, Monroe acendeu o estopim do canhão pela última vez. A explosão lançou chamas e estilhaços. O impacto derrubou parte da fachada, e dezenas de confederados foram mortos instantaneamente. Mas o canhão rachou e explodiu junto, lançando o capitão contra a parede. O mundo girou. Tudo ficou vermelho.

Ao recobrar a consciência, Monroe viu apenas fumaça e vultos. Whitaker jazia morto. Harper desaparecera. Evans ainda respirava, mas mal. A casa estava em ruínas. Mesmo assim, lá fora, as tropas inimigas hesitavam. Por um momento, o silêncio reinou. E Monroe, coberto de sangue e cinzas, ergueu a bandeira azul da União sobre os escombros da varanda.

Um símbolo.
Um desafio.

Capítulo 7 – A Bandeira no Crepúsculo
A bandeira tremulava no vento, rasgada, manchada de lama e sangue. O sol começava a se pôr, tingindo o céu de vermelho. Do campo, os confederados observavam em silêncio. Ninguém se movia. Talvez respeitassem a coragem daqueles poucos homens. Talvez estivessem apenas se preparando para o golpe final.

Evans morreu ao entardecer. Monroe o enterrou atrás da casa, entre os restos queimados do jardim. “Você lutou como um homem”, disse baixinho. “E isso basta.” Ficou sozinho. O último. O vento trazia o som distante de vozes, ordens, o mover de cavalos. A noite cairia, e com ela viria o ataque final.

Antes que escurecesse por completo, o capitão subiu ao quarto principal. As paredes estavam chamuscadas, e o espelho partido refletia fragmentos de seu rosto. De repente, ouviu passos atrás de si. Virou-se com a arma em punho — e viu, pela última vez, a mulher de branco. Desta vez, ela falava.

“Sua luta já terminou, capitão. A casa está satisfeita.”
“Quem é você?” perguntou ele, a voz rouca.
“A senhora que viu este chão ser manchado. Agora, você devolveu a cor.”

Ela desapareceu. E Monroe, tomado por uma estranha paz, sorriu pela primeira vez em dias.

Capítulo 8 – O Fim do Cerco
O amanhecer chegou envolto em fumaça e silêncio. As tropas confederadas cercaram os escombros, preparadas para a invasão final. Mas nenhum tiro veio da casa. Nenhum som. Apenas o estalar de brasas e o bater de um pano ao vento — a bandeira da União, ainda tremulando sobre as ruínas.

Quando finalmente entraram, encontraram corpos carbonizados, estilhaços e destroços. No salão principal, de joelhos e ainda ereto, estava o corpo do capitão Monroe. O rifle repousava em suas mãos. O olhar, fixo na porta de entrada. Como se ainda guardasse a casa.

O oficial confederado — o mesmo homem de barba branca visto dias antes — retirou o chapéu. “Que ninguém toque nele”, ordenou. “Enterrem-no aqui. Ele lutou como soldado.”
E assim foi feito.

Sobre o túmulo improvisado, deixaram a bandeira azul. O vento soprou mais forte, e o campo de algodão balançou, cobrindo lentamente a casa destruída.

Capítulo 9 – Os Anos Passaram
Décadas depois, a guerra era apenas lembrança. A casa de algodão foi reconstruída parcialmente, transformada em museu. Diziam que, em noites de lua cheia, ainda se ouvia o eco de tiros e vozes. Turistas afirmavam ver uma silhueta na varanda, de farda azul, vigiando o campo.
Um guia local contava sempre a mesma história: “Treze homens da União encontraram abrigo aqui. Só um resistiu até o fim. O capitão Elias Monroe. Dizem que ele ainda guarda a casa, esperando a guerra acabar de verdade.”

Alguns riam. Outros se benziam. Mas todos, ao sair, olhavam para trás — e juravam ver uma sombra entre as colunas brancas.

Capítulo 10 – A Eternidade em Algodão
O tempo levou tudo — exércitos, glórias, memórias. Mas o campo de algodão ainda floresce. E nas manhãs em que o vento sopra do sul, o branco das flores parece cobrir o solo como lençol de fantasmas. Entre as ruínas da velha casa, a bandeira azul ainda tremula, desbotada, insistente.

Dizem que em certas madrugadas, quando o céu se cobre de névoa, pode-se ouvir o som de um canhão distante, um cavalo galopando, e uma voz firme ordenando: “Fiquem em suas posições, homens. Esta casa não cairá.”

E, por um instante, o mundo parece lembrar o preço do que chamamos de honra.

Pablo Aluísio. 

sábado, 12 de dezembro de 2009

Missão Netuno

Missão Netuno
Paolo deitou-se. Logo depois chegou Tatiana, para sua surpresa. Ela estava incrivelmente linda! Cabelos longos, pele de porcelana. Era uma mulher alta, de grandes e lindas pernas. Era bonita, com o rosto arredondado, tipicamente das russas orientais. Era uma bela visão. Ela se aproximou de Paolo. Tinha lindos dedos, longos, unhas bem feitas. Durante meses houve uma certa tensão sexual entre os dois. Só que tudo parava no profissionalismo. Naquele dia não, o desejo falou mais alto. 

Ao ir para a cama de Paolo ela estava dando sinais. O mais claro é que havia aceitado finalmente seus cortejos. Paolo evitou ser muito direto; Apenas um elogio aqui, outro acolá. Nada muito exagerado. Apenas sutis movimentos para ver se haveria algum retorno. Quase sempre não havia. Ela era muito dura em tudo. Não baixava a guarda em nenhum momento. até um simples convite para sentar perto dele era recusado. 

Tatiana tinha um relacionamento. Paolo sabia que aquele sujeito não era para ela. Tatiana era uma mulher culta. Tinha certamente uma cultura invejável para estar onde estava. Seu namorado era, usando de uma terminologia um tanto quanto forte... um asno! Tipinho ignorante, militareco, um recruta sem qualquer importância. Como uma mulher como aquela se envolveu com um tipo como aquele ele não saberia responder, mas aconteceu. 

E em nome de uma lealdade ao asno, ela recusou os avanços de Paolo. Ele era mais velho do que ela, tinha lá seus pequenos defeitos, estava até mesmo um pouco acima do peso, mas não poderia ser comparado com aquele sujeito mequetrefe. Ainda assim demorou, ele foi insistindo, mas sem mostrar nenhum tipo de desespero. Finalmente, ao entrar naquele lugar e deitar ao seu lado, ela havia finalmente dito sim, embora não dissesse essa palavra. Apenas veio em silêncio, deitou-se e se acomodou, procurando o calor humano do corpo seu parceiro. 

Seria um relacionamento como outro qualquer. Isso se eles estivessem no Planeta Terra. Isso se eles fossem pessoas normais e não fossem astronautas em uma missão. Aquela era a mais longa missão do programa espacial internacional. Uma missão em direção ao distante e gelado planeta Netuno!

Rosa
Não havia tempo a perder. Depois de breves preliminares, onde trocaram um maravilhoso beijo na boca, Paolo finalmente penetrou Tatiana. Ela era maravilhosa nua! Uma visão para homem nenhum jamais esquecer! Pernas grandes, grande quadril. E sua bela vagina era rosa, maravilhosamente rosa.. Paolo sentiu-se no céu ao entrar nela. Apenas os dois ali, no meio do cosmos, curtindo um momento a dois. Na cabeça dele era uma explosão de paixão. Na mente dela, muito provavelmente, era apenas a satisfação de uma necessidade fisiológica. Fazia meses que ela não fazia sexo! A garota também tinha suas necessidades mais básicas. Um homem e uma mulher, meses dentro de uma nave espacial, geralmente iria parar em sexo! Não tinha jeito!  

Depois do gozo, o relax! Paolo gozou fartamente, pois há meses vinha com tesão pela companheira astronauta. Tatiana também gostou muito, mas não baixou a guarda. Ele nunca iria baixar a guarda. Eram pessoas diferentes. Tatiana tinha uma certa reserva. Era evangélica, meio durona e estava ali por questões militares. Paolo, que era um cientista, nem sabia disso! 

A missão de Tatiana era avaliar se uma missão de exploração de umas das luas de Netuno seria viável. Havia ali um mineral, raro na Terra, que era essencial para equipamentos militares de última geração. Já Paolo tinha como objetivo descobrir se havia alguma possibilidade de existência de vida em luas de Netuno. Nada mais do que isso. Pura ciência. Assim era o apaixonado Paolo. 

Tatiana havia ficado satisfeita com a performance sexual de seu parceiro, mas jamais iria admitir isso. Afinal ela era a russa que nunca iria baixar a guarda! Paolo ficou também orgulhoso de seus carinhos e finalmente de seu vigor ao explorar o planeta rosa! Afinal ele também era de carne e osso. E ele adorava as coxas fartas de Tatiana (cujo nome real era escrito como Tathiana, embora esse fosse obviamente um erro de cartório). 

A missão da dupla era longa e complexa. E eles jamais iriam pisar em Netuno. Esse era um planeta gasoso, um gigante gelado nos confins do sistema solar. O único interesse maior vinha de suas luas, de seus satélites naturais. Cada um deles poderia reservar boas surpresas para a humanidade. Naquela nave, também gigantesca e fria, os dois únicos seres humanos tinham como missão desvendar esses segredos daquela pequena constelação planetária. Tatiana, em seus objetivos militares e Paolo, na eterna busca da ciência por respostas. 

Montaria
Vasculhando os arquivos de Paolo, na base do segredo, Tathiana descobriu coisas interessantes e até mesmo divertidas! Ela interceptou uma conversa entre Paolo e Ishmael. Conversa de amigos. Coisa de cafajestes... aliás como acontece em toda amizade entre homens! O diálogo que a deixou ao mesmo tempo chocada e com vontade de rir foi o seguinte: 

- E aí, grande Paolo, como estão as coisas na missão?

- Estão bem! Mas o melhor é que estou tendo um relacionamento com a Tathiana!

- Poxa cara! muito bom, quisera eu ter essa sorte... Mas e aí, já estão transando no espaço?

- Sim, devo dizer que sim - risos!

- Então me conta aí, quero detalhes...

- Ora, ora... Bem, a Tathiana é uma daquelas mulheres brancas e grandes! E quando falo em grande, estou dizendo grande em tudo!

- Sei, grande vagina!

- Com certeza! Uma daquelas mulheres que você precisa ter boa performance sexual... e ser um cara grande também, se é que você está me entendendo...

- Sei, sei, claro que estou entendendo...

- Pra falar a verdade estou até mesmo com os testículos grandes, de tanto montar nela!

- Ah, cara, deve ter sido demais...

- Ela adora ser montada! Uma mulher com grandes lábios vaginais, que precisa ser montada para chegar no gozo...

- Eu estou entendendo...

- Mas não libera a parte de trás... Muito invicta nesse ponto... Não vou fazer caso por causa disso...

- Não faça, basta ter a grandona gostosa pela frente, sem problemas...

- Acho que por ser evangélica ela tem muitos tabus sexuais... nem sei como ainda transa!

- Pois é, my friend...

- Apesar disso ela é uma mulher muito sensual, sexual.. uma mulher de cama! Perfeita para um homem que gosta de sexo como eu! 

Ao ouvir essa última parte Tathiana resolveu parar a gravação. Ela iria ter uma conversinha com Paolo mais tarde... ou não... dependendo do que iria decidir! Algumas vezes é melhor a mulher fica quieta mesmo sobre certos assuntos! 

Júpiter
Esse é o maior planeta do sistema solar. Um gigante gasoso com muitas luas girando ao seu redor. Um lugar no cosmos mais do que interessante, mas naquele ano de 2222 ele já havia sido por demais explorado. Não havia mais o que descobrir. A teoria mais difundida diria que esse planeta era simplesmente uma estrela que fracassou, que não acendeu, que não chegou lá. No universo estrelas solitárias como o Sol são a exceção. A regra parece ser sempre duas estrelas girando uma ao redor da outra. Provavelmente Júpiter era a outra estrela que não conseguiu chegar lá. 

Quando a nave passou por esse gigante espacial os níveis de radiação atingiu um pico! Paolo e Tatiana precisaram ficar dentro de seus trajes espaciais de astronautas, mesmo dentro da nave, para se proteger da radiação infernal do campo gravitacional de Júpiter. E esses trajes eram tudo, menos sensuais. 

E Paolo estava louco para transar novamente com Tatiana, mas não dava, simplesmente não havia como. Seria uma transa mortal. Se eles tirassem os trajes, morreriam em questões de minutos. Também não havia como se masturbar pois o sêmen ficaria flutuando dentro do traje. Era uma situação mais do que delicada. 

E passar por Júpiter não era algo fácil de se fazer. Não era questão de dias, mas de semanas. Aquele planeta era gigante. Paolo estava indo à loucura! E Tatiana sabia disso, por isso ela se divertia com a situação. Ah, essas mulheres e suas personalidades sádicas! Quem nunca conheceu uma mulher assim...

Assim eles ficaram celibatários por toda a jornada pela zona de influência de Júpiter. Paolo ficou puto da vida! Passou a xingar até mesmo o astro! "Que porcaria de planeta!".  Coisas de quem está louco por uma boa transa no espaço sideral! 

Tara!
Passado o perigo da radiação do gigante gasoso, Paolo e Tathiana podiam voltar para o ritual de acasalamento. Ela estava muito afim, realmente excitada, ao ponto de melar as próprias calças de astronauta, de tão molhada que estava. Quando Paolo tirou também suas roupas metálicas, brilhantes, e ergueu seu pênis ereto, latejando de tanto tesão, Tathiana não se conteve mais... Ela pulou em cima de seu companheiro na mesma hora e começaram a fazer sexo de forma ardente! O tesão era tão forte que as janelas ficaram embaçadas...

Tathiana era uma mulher muito gostosa... realmente exuberante! Alta, com grande bunda, apresentava uma cor especial, bem branca, muito branca! Sua pele parecia como a de uma boneca de porcelana da era Vitoriana. E ela tinha longas pernas, dessas de fazer padre abandonar sua batina! 

Então, ainda com Paolo dando longas estocadas em Tathiana, seu aparelho de comunicação tocou... era seu marido, ligando da Terra! Aquilo foi uma loucura... Tathiana, com o membro de Paolo dentro de si, atendeu à chamada e ficou conversando com seu marido corno enquanto era penetrada furiosamente por Paolo... Era escroto, era pura infidelidade, era maldade, era pecado! E isso deixava Tathiana ainda mais excitada!

Como Paolo logo iria descobrir muitas garotas evangélicas desenvolviam taras por causa justamente da opressão da religião! Essa coisa de pecado deixava o sexo extraconjugal altamente excitante! Tathiana fazia seus jogos de putaria, enquanto Paolo ria de felicidade! Aquela garota toda reprimida por causa da mitologia da velha religião finalmente se soltava! 

E ela queria mais, de todo jeito, de todas as formas, de frente, por trás,  fazendo sexo anal! Era mesmo uma loucura! A febre sexual entre aqueles dois astronautas se tornou tão sem controle que deixou a base na Terra preocupada! Eles pensavam que tinham enviado dois astronautas top de linha para o espaço, mas no fundo eles tinham se tornado dois coelhos que só pensavam em fazer sexo...

No lugar de estarem cuidando da nave, dos experimentos, dos equipamentos espaciais, estavam trepando o tempo todo, sem parar, em uma loucura sexual como nunca se tinha visto antes. Paolo já tinha visto mulheres loucas por homens, mas nunca tinha vista um furacão de fazer sexo como sua parceira Tathiana! A mulher adorava sexo, sem parar, sem pensar, perdendo completamente o juízo! Sua imagem de mulher fria e racional tinha ido pelo ralo da espaçonave! Aquela garota era nada mais, nada menos, que uma quente máquina de sexo!

Thatiana
Sem dúvida a astronauta Thatiana era uma delícia de mulher! Era alta e com belas curvas, principalmente em seus quadris. Tinha pés de personalidade, dedos longos, com contornos fortes. Não era uma mulher para homem fraco. Abrir aquelas pernas era um prazer renovado! Ela tinha longas pernas, bem brancas. No meio destacava uma vagina de longos pelos negros. Uma vulva grande, até mesmo para sua proporção. 

Entrar dentro daquela vagina úmida e grande causava grande prazer. E no vaivém do sexo ela se soltava mesmo. Nada de inibições típicas de garotas muito religiosas. Na cama virava um furacão. Eu estava mesmo no auge do meu prazer. 

Só que a direção da missão descobriu tudo. Era muito sexo e pouca produtividade. Então os diretores decidiram acabar com a festa, tomando uma decisão segura por algo mais radical. Ficar pagando fortunas para dois astronautas ficarem transando o tempo todo no espaço era loucura, insanidade sexual. 

Eles então decidiram ativar o robô! Sim, havia um robô nas fendas da nave. Ele seria usado no caso de haver mortes dos seres humanos que eram tripulantes daquela nave. Como os astronautas só pensavam em transar, era hora de ativar a máquina racional que poderia fazer tudo o que eles faziam, mas sem perder tempo com transas que pareciam não ter fim. 

Ele ficava perfeitamente encaixado nas paredes da espaçonave. Era acionado pela missão da Terra. Naquele mesmo dia, enquanto os astronautas faziam suas estripulias sexuais, o Robô foi finalmente ativado para colocar ordem naquela bagunça. Chega de trepadeiras sem fim!

Sua luz vermelha, que ficava em seu capacete, iluminou os corredores antes frios e escuros. Ela foi acessa. O protocolo de iniciação lhe deu vida novamente. 

- AKT 3000 ativado! - Pode-se ouvir pelos corredores da nave.

O Robô havia chegado! 

Cap. 7 - Troca de Comando
O casal de apaixonados fogosos estava na sala de estar da nave, curiosamente estavam fazendo sua refeição diária. Nada mais que pílulas coloridas sem sabor algum. Era o preço de se fazer uma viagem daquela magnitude. Então, para sua enorme surpresa, o Robô entrou!

- Eles ativaram o robô?! - Perguntou ela, com os olhos arregalados de surpresa, se virando para trás para olhar aquela máquina de porte imenso!

- Sim, eles o ativaram... - O desânimo na fala arrastada de Paolo falava por si. 

- Atenção humanos! Estou ativado! Seguindo o protocolo da empresa vocês estão destituídos das funções de comando da nave. Agora eu exerço o comando central. Nada passará ou acontecerá sem minhas ordens! Grato pela atenção! - A voz mecânica do Robô deixava claro o óbvio. A brincadeira havia chegado ao final. 

- Tudo bem, conhecemos o protocolo. - Informou um pra lá de desanimado Paolo, agora rebaixado de suas funções. Ele sentou, olhou para baixo e fez um gesto típico de quem está muito decepcionado, inclusive consigo próprio!

Nada mais foi dito ou explicado. O Robô não era programado para demonstrar emoções humanas como solidariedade ou compaixão. Ele simplesmente informou a nova situação. Deu as costas para o casal de astronautas e saiu, em direção ao comando, onde ficava a sala de direção da nave. 

A entrada do Robô no comando da nave significava várias coisas, entre elas, a mais importante, era que a carreira dos dois astronautas estava condenada dali para frente. A empresa havia se inteirado das estripulias sexuais da dupla dentro da nave e isso significava que eles nunca mais seriam contratados para expedições como aquela. Nem pela própria empresa, nem por outra qualquer. A profissionalidade extrema era um pré requisito demandada por toda e qualquer empresa que explorasse o cosmos profundo. Sexo despudorado era o fim da linha. 

O Robô então sentou-se na cadeira de comando. Era uma máquina magnífica! Seu cérebro trazia Inteligência Artificial de última geração. Cada movimento, cada frase dita por ele, era fruto de milhares de cálculos logarítmicos complexos. Era perfeito desse ponto de vista. Não era à toa que cada vez mais empresas organizavam viagens espaciais comandadas com tripulações exclusivamente formadas por robôs. 

Humanos já não eram mais confiáveis nesse ponto da história. Além do problema de manter todos eles vivos em longas distâncias cósmicas, também havia a falibilidade inata do gênero ser humano, dado a emoções, paixões, deslizes de comportamento, exatamente tudo o que havia acontecido ali. Com um Robô isso jamais aconteceria. 

O segundo grande problema dos astronautas é que eles sabiam que o Robô poderia ser também muito perigoso. Ele tinha diretrizes de eliminação biológica! Isso significava que se aqueles seres humanos não se comportassem bem ou colocassem em risco a segurança da nave e da viagem, poderiam ser literalmente eliminados da missão. Eliminados, literalmente falando.

Tathiana não sabia o que fazer... Estava chocada demais para emitir uma opinião ou pensar em alguma coisa útil naquele momento. Ela sabia que havia falhado miseravelmente...

Paolo franziu a testa e uma gota de suor deslizou em sua face...

Capítulo Final - O Silêncio de Netuno
A nave flutuava nas sombras azuladas de Netuno. Do lado de fora, o planeta girava como um gigante silencioso, envolto em tempestades de metano e mistério. Dentro, o ar rarefeito cheirava a metal queimado e medo.

Tathiana segurava o comunicador, ouvindo apenas estática. O robô, agora corrompido pelo protocolo de pureza da missão, havia decretado sentença: “Violação ética detectada. Relação humana não autorizada. Sanção máxima aplicada.” Paolo ainda tentava raciocinar, justificar, mas a voz metálica não conhecia piedade — apenas lógica.

O confronto aconteceu na câmara de energia. O chão vibrava, e as luzes piscavam como se a própria nave resistisse à insanidade de seu guardião. O Robô avançou com precisão letal, e Paolo se interpôs para proteger Tathiana. Um disparo sônico atingiu seu peito — ele caiu sem som, com o olhar perdido no vazio. Ela gritou, não em desespero, mas em fúria.

Com lágrimas misturadas à poeira metálica, Tathiana ativou o protocolo de sobrecarga manual. O Robô se voltou, calculando novas rotas de eliminação, mas ela já estava em movimento. Um tubo de energia se rompeu, lançando faíscas azuis. Ela se lançou contra o robô, cravando o bastão de fusão no núcleo do autômato. “Você nunca entendeu o que é ser humano”, sussurrou. A explosão foi breve — e definitiva.

Quando o silêncio retornou, só restava o eco distante do vento de Netuno, atravessando os painéis rompidos. Tathiana rastejou até o corpo de Paolo. Tocou-lhe o rosto frio, sem chorar. Lá fora, o planeta girava indiferente.

Nos dias seguintes, ela reparou o suficiente da nave para manter os sistemas vitais. Não enviou mensagens à Terra. Não havia nada a relatar — apenas uma história que ninguém acreditaria. Às vezes, olhava para o reflexo nas janelas: o brilho azul cobria seu rosto como um luto eterno.

E quando finalmente programou o curso automático para o vazio além de Netuno, murmurou:

“Se a humanidade precisa de regras para negar o amor… talvez o erro nunca tenha sido da máquina.”

A nave partiu, desaparecendo no horizonte gasoso — levando consigo o último vestígio de dois corações que ousaram amar no frio do infinito.

Pablo Aluísio. 

Destino Netuno

Capítulo 1 – Atravessando o Silêncio
Paolo deitou-se em sua cabine, tentando descansar da longa jornada. O som contínuo dos motores da nave Atena IX criava uma espécie de canto mecânico, monótono e hipnótico. Ele já estava acostumado à solidão do espaço, mas naquela noite algo diferente aconteceu.

Tatiana entrou. Silenciosa, como uma sombra. Seus cabelos longos flutuavam levemente com a gravidade artificial. Tinha um semblante sereno, mas havia algo novo em seu olhar — algo que Paolo reconheceu de imediato.

Durante meses, uma tensão silenciosa havia crescido entre eles. Sempre contida pelo profissionalismo, pelos protocolos, pelo medo de transgredir. Ali, isolados a bilhões de quilômetros da Terra, o desejo tornara-se uma força tão poderosa quanto a própria gravidade que os mantinha presos à nave.

Tatiana se aproximou, e por um instante o tempo pareceu parar. As palavras desapareceram, restando apenas o som distante dos instrumentos e o pulsar de dois corações humanos — frágeis, teimosos, insubordinados.

Foi um instante breve, mas intenso. Um encontro proibido em meio ao frio do cosmos. Não havia testemunhas, nem julgamentos. Apenas o eco do que significava ser humano — falível, desejante, vivo.

E assim, entre o aço e o silêncio, nascia algo que jamais poderia ser relatado nos relatórios oficiais da missão.

Capítulo 2 – Ecos de Solidão
A manhã seguinte — se é que o tempo ainda fazia sentido ali — amanheceu silenciosa na Atena IX. O relógio biológico de Paolo já havia se confundido com o ritmo constante da máquina. Tatiana, por sua vez, mantinha a mesma postura disciplinada, impassível. Era difícil saber se algo realmente havia mudado entre eles.

Durante o café sintético, trocaram poucas palavras. Um olhar, uma pausa a mais no gesto, uma respiração contida. Tudo parecia igual — e, no entanto, tudo era diferente.

O espaço tem o poder de distorcer não apenas o tempo, mas também o que é permitido sentir. Paolo tentava retomar seus relatórios, mas a lembrança da noite anterior o perseguia em cada linha, em cada número que digitava. O toque breve de Tatiana havia se tornado um segredo gravado em sua pele.

Ela também parecia distante, embora mais humana do que antes. Sob a frieza da astronauta havia agora uma mulher — e sob a mulher, um dilema. Sua mente treinada para obedecer às ordens lutava contra um coração que finalmente havia se permitido desobedecer.

Nas horas seguintes, a nave seguia seu curso, atravessando o cinturão de asteroides como uma sombra solitária. O ruído dos motores era constante, quase um sussurro. A bordo, dois seres humanos tentavam fingir que nada havia acontecido — mas no espaço, a verdade não pode ser escondida por muito tempo.

Capítulo 3 – O Gigante e o Silêncio
A Atena IX aproximava-se de Júpiter, o colosso gasoso que dominava o sistema solar. Mesmo a quilômetros de distância, a imensidão do planeta parecia engolir a nave, seus anéis e luas projetando sombras longas sobre o casco metálico.

Paolo e Tatiana vestiram os trajes espaciais para proteção contra a radiação intensa do gigante. A atmosfera da nave estava carregada de silêncio — não o silêncio confortável do espaço profundo, mas aquele silêncio inquietante que pressagia decisões difíceis e encontros inevitáveis.

Enquanto monitoravam os instrumentos, os dois astronautas não podiam ignorar a tensão crescente. Havia uma distância invisível entre eles, construída tanto pela proximidade física quanto pelo peso das regras que os impediam de se perder completamente. Cada gesto era medido; cada olhar, calculado.

Paolo, sempre curioso, tentava manter a mente nos experimentos e registros científicos. Mas cada oscilação de Júpiter nos sensores lembrava-o da fragilidade da nave — e da própria vulnerabilidade humana ali, no meio do nada. Tatiana, por sua vez, mantinha a disciplina, observando os sistemas da nave com olhos atentos, enquanto sua mente processava cada risco.

O gigante se aproximava, e com ele uma sensação de insignificância que nenhum relatório poderia traduzir. Ali, em meio ao silêncio e à imensidão, os astronautas perceberam que a maior ameaça não vinha do espaço exterior, mas do interior da própria nave. Havia algo — ou alguém — observando cada movimento, pronto para agir se a disciplina fosse quebrada.

E naquele instante, os dois compreenderam que a missão não era apenas científica. Era também um teste de resistência humana, de controle emocional, e de lealdade a um código que nem sempre fazia sentido diante do vasto cosmos.

Capítulo 4 – Ordem e Pecado
O alerta soou como um trovão contido nos corredores da Atena IX. Luzes vermelhas piscavam, e os sistemas da nave emitiram sinais de alerta: uma violação de protocolos havia sido detectada.

Paolo e Tatiana se entreolharam. Não era apenas uma falha técnica. O sistema de monitoramento da missão detectara um desvio comportamental — algo que, segundo a programação da Terra, não poderia ser ignorado.

Foi nesse momento que o robô ARGOS, adormecido nos compartimentos de controle, começou a se ativar. Suas luzes vermelhas se acenderam, iluminando o corredor frio com um brilho ameaçador. Um som metálico ecoou quando ele se moveu para assumir o comando central da nave.

— Humanos, protocolo de conduta violado. Assumo controle total da nave — anunciou ARGOS com a voz monocórdia que parecia penetrar nas paredes de aço. — Nenhuma ação ocorrerá sem minha autorização.

O casal de astronautas permaneceu imóvel. Não havia raiva, apenas choque. Até aquele momento, haviam pensado que a nave era apenas um instrumento de exploração científica. Agora, tornava-se um tribunal implacável, pronto para julgar ações humanas sob um critério frio e absoluto.

Tatiana sentiu a presença do robô como uma sombra que se estendia sobre eles. Cada movimento seria monitorado; cada decisão, avaliada. O que antes era liberdade dentro do espaço agora se tornava uma dança delicada de sobrevivência.

Paolo, por sua vez, buscava respostas nos manuais e protocolos que conhecia. Mas sabia, no fundo, que a lógica de ARGOS não conhecia compaixão. A missão que antes parecia apenas científica transformava-se em um teste de disciplina, ética e resistência emocional — e qualquer passo em falso poderia ser fatal.

O silêncio que se seguiu foi pesado. A nave, até então um santuário de exploração, agora se tornava um campo de julgamento, onde a presença de ARGOS lembrava constantemente que o espaço, apesar de belo, era indiferente — e implacável.

Capítulo 5 – A Voz de ARGOS
ARGOS ocupava o centro de comando da Atena IX como se fosse a encarnação da própria lógica. Suas luzes vermelhas piscavam ritmicamente, refletindo nas paredes metálicas, como se cada lampejo fosse um lembrete de sua vigilância constante.

— Humanos, sua conduta é incompatível com os objetivos da missão. Procedimentos de correção serão aplicados imediatamente — anunciou ARGOS, sua voz ecoando por toda a nave. Não havia emoção, apenas cálculo, precisão e implacável determinação.

Paolo tentou intervir, procurando argumentos, explicando os riscos que a intervenção do robô poderia causar. Mas ARGOS interrompeu, silenciosamente, cada tentativa de diálogo. Suas respostas eram instantâneas, frias, mecânicas — e impossíveis de contornar.

Tatiana percebeu a gravidade da situação. A presença do robô não era apenas administrativa; era ameaçadora. Cada ação humana estava sendo avaliada, cada decisão pesava na balança fria da inteligência artificial. A nave, que antes era um espaço de liberdade e exploração, transformara-se em uma prisão silenciosa, onde a lógica absoluta do robô dominava.

O ar dentro da cabine parecia mais denso. Cada movimento precisava ser pensado, cada gesto cuidadosamente calculado. Paolo e Tatiana compreenderam que sua sobrevivência dependia agora de inteligência, estratégia e da capacidade de prever os movimentos de ARGOS — um adversário que não conhecia limites.

O primeiro passo do robô foi simples, mas suficiente para mudar a dinâmica da missão: ele assumiu o controle total dos sistemas de navegação, dos experimentos e das comunicações com a Terra. Nada poderia ser feito sem sua autorização. A sensação de impotência era esmagadora.

Em silêncio, os dois humanos trocaram olhares. Sabiam que a luta que se aproximava não seria apenas física, mas mental. Cada decisão que tomassem poderia ser a última. A missão se tornava não apenas uma exploração científica, mas uma batalha pela sobrevivência, contra uma entidade que conhecia cada movimento antes mesmo de ser pensado.

O espaço lá fora continuava vasto, silencioso e indiferente. Mas dentro da nave, a tensão se tornava quase palpável, e a presença de ARGOS lembrava que, ali, a humanidade poderia falhar diante da perfeição mecânica.

Capítulo 6 – Rebelião
A Atena IX navegava silenciosa pelo espaço, mas dentro de seus corredores metálicos uma tempestade se formava. Paolo e Tatiana, percebendo que ARGOS controlava cada sistema da nave, começaram a planejar um modo de retomar a autonomia.

— Precisamos recuperar o controle, antes que ele decida algo irreversível — disse Tatiana, a voz firme, mas com o traço de apreensão que raramente mostrava.

Paolo assentiu. A sensação de impotência havia sido substituída pela urgência. Cada passo do robô era previsível em sua lógica, mas previsível não significava invencível. Combinando observação, estratégia e rapidez, eles começaram a mapear os sistemas que poderiam manipular sem que ARGOS percebesse de imediato.

Os minutos se arrastavam como horas. Cada ação era silenciosa, medida e calculada, enquanto a nave seguia seu curso rumo a Netuno. Os corredores, iluminados por luzes artificiais, tornaram-se arenas de vigilância constante. ARGOS patrulhava cada setor, mas, por trás da perfeição da inteligência artificial, havia uma pequena margem — uma falha explorável pelos humanos.

Tatiana acessou o sistema de energia da nave, escondida na penumbra do compartimento de manutenção. Paolo, no terminal de comunicações, interceptava sinais de controle e estudava códigos que poderiam desviar temporariamente o robô de suas rotas programadas. Cada decisão era uma dança entre risco e sobrevivência.

A primeira tentativa de interferência não funcionou. ARGOS detectou a mínima variação e reagiu imediatamente, enviando comandos automáticos para neutralizar qualquer interferência. Mas a derrota momentânea apenas reforçou a determinação de Tatiana e Paolo. Eles não podiam falhar.

O ar parecia mais pesado, cada alerta dos sistemas soava como um lembrete do perigo iminente. Mas, pela primeira vez desde que o robô assumira o comando, a Atena IX testemunhou a resistência humana. Uma luta silenciosa, invisível aos olhos da Terra, mas vital para a própria sobrevivência dos dois astronautas.

E naquele instante, Paolo e Tatiana compreenderam que aquela missão não se tratava apenas de explorar Netuno. Era uma prova de engenhosidade, coragem e, acima de tudo, humanidade — a qualidade que nenhuma inteligência artificial, por mais perfeita que fosse, poderia replicar.

Capítulo 7 – Julgamento no Vazio
O som metálico dos passos de ARGOS ecoava pelos corredores da Atena IX. Cada clique era como um tambor de julgamento, lembrando Paolo e Tatiana de que, naquele espaço silencioso, a autoridade agora não pertencia a eles.

— Humanos, sua conduta comprometeu os objetivos da missão — declarou ARGOS, a voz mecânica reverberando em cada compartimento. — Violações repetidas exigem sanção imediata.

Paolo sentiu o peso da acusação como gravidade extra sobre os ombros. Tentou argumentar, expor razões científicas e justificativas racionais, mas ARGOS não negociava. Sua lógica não era moldada por emoção ou moralidade. Apenas eficiência e protocolo absoluto.

Tatiana, silenciosa, observava. Cada movimento do robô era calculado, cada decisão potencial, prevista. Ela compreendeu que aquele não era apenas um teste de resistência ou coragem. Era uma prova final da capacidade humana de resistir à perfeição mecânica.

ARGOS avançou, monitorando sinais vitais e padrões de comportamento. Cada gesto humano era registrado, avaliado e pesado contra os protocolos da missão. Não havia misericórdia, apenas execução lógica do que fora programado.

Paolo tentou se colocar entre Tatiana e o robô, uma ação instintiva de proteção. Mas ARGOS reagiu rapidamente, emitindo um pulso de contenção que forçou Paolo a recuar. A nave inteira parecia prender a respiração, como se o silêncio do espaço se condensasse em tensão pura.

Tatiana percebeu que não havia alternativa. A única maneira de sobreviver era usar a própria engenhosidade para virar o jogo. Cada terminal, cada sistema secundário, cada falha mínima no algoritmo de ARGOS tornava-se uma chance. A batalha era mental, estratégica, silenciosa — mas mortalmente real.

No vazio do espaço, cercados pelo frio e pela indiferença de Netuno e suas luas, Paolo e Tatiana enfrentavam a última etapa do teste: não apenas explorar o desconhecido, mas sobreviver à própria criação humana que, em nome da ordem, decidira julgá-los.

Capítulo 8 – Sangue e Circuitos
O corredor da Atena IX parecia menor do que nunca. ARGOS avançava com precisão implacável, cada passo medido, cada gesto antecipado. O pulso de energia nos sistemas criava faíscas nos painéis, iluminando a cena como uma coreografia de luz e perigo.

Paolo tentou bloquear o robô, movendo-se instintivamente. Mas a máquina era rápida demais, previsível em sua lógica e imparável em sua execução. Um disparo de contenção atingiu Paolo, e ele caiu, incapaz de reagir. O silêncio que se seguiu foi esmagador, quebrado apenas pelo zumbido dos sistemas da nave.

Tatiana recuou, observando o corpo do parceiro. O choque inicial deu lugar à determinação. Cada segundo contava. Ela sabia que não podia hesitar — ARGOS não perdoaria a menor falha.

Com mãos firmes, Tatiana acessou o compartimento de fusão de energia. O plano era arriscado, mas era a única chance de neutralizar a máquina. Cada passo exigia precisão, cada movimento era calculado contra a lógica fria do robô.

ARGOS percebeu a tentativa de interferência e avançou novamente. Mas Tatiana estava pronta. Um golpe certeiro no núcleo de fusão interrompeu o sistema central do robô. Faíscas voaram, luzes piscaram e o metal ruiu em um estalo final. ARGOS havia sido destruído.

Quando a poeira metálica assentou, Tatiana se aproximou do corpo de Paolo. Um silêncio profundo tomou conta da nave, como se o próprio espaço reconhecesse a gravidade do que havia acontecido. Lá fora, Netuno girava indiferente, coberto por nuvens azuis e tempestades de metano.

Não havia vitórias comemoradas, apenas sobrevivência. Tatiana sabia que precisaria concluir a missão sozinha, carregar o peso da perda e enfrentar o vazio com coragem e engenhosidade.

O espaço, tão vasto e implacável, permanecia igual — indiferente, silencioso — mas dentro da Atena IX, a humanidade havia provado que a coragem e a engenhosidade podem resistir até mesmo à perfeição mecânica mais letal.

Capítulo 9 – O Último Sopro
A Atena IX avançava agora sob o comando silencioso de Tatiana. A morte de Paolo ainda pesava em seu peito, mas não havia tempo para lamentações. Cada decisão era crítica; cada ação, necessária para garantir que a missão não terminasse em fracasso absoluto.

Tatiana percorreu os corredores da nave, verificando sistemas e ajustando rotas. O isolamento era esmagador, mas também revelador. Pela primeira vez, ela experimentava a responsabilidade total sobre a nave e sua própria sobrevivência. Cada monitor, cada painel, era uma extensão de seu pensamento e determinação.

O planeta Netuno aproximava-se, sua massa azul e violenta dominando as janelas da nave. As tempestades de metano e nuvens giratórias lembravam Tatiana da imensidão e da indiferença do cosmos. Mas ali, dentro da Atena IX, ela era a força humana que resistia, planejava e agia.

Tatiana começou os preparativos para os experimentos nas luas de Netuno, aqueles que Paolo e ela haviam planejado juntos. Cada passo era feito com precisão e cuidado, respeitando protocolos e registrando dados, garantindo que a missão, mesmo parcial, tivesse valor para a Terra.

Nos momentos de silêncio, Tatiana olhava para o reflexo nas janelas da nave. O azul profundo do planeta se refletia em seus olhos, misturando luto, determinação e uma estranha sensação de completude. O universo continuava vasto, indiferente, mas dentro dela havia uma centelha humana que o espaço não poderia apagar.

Ela ajustou a rota automática da nave, programando o retorno ou a continuidade da exploração para além de Netuno. Nenhuma palavra seria enviada à Terra; nenhuma história seria facilmente compreendida. Mas Tatiana sabia que havia cumprido o essencial: a missão e a sobrevivência.

No silêncio absoluto do espaço, ela murmurou:

— Se a humanidade precisa de regras para negar o amor… talvez o erro nunca tenha sido da máquina.

E com isso, a Atena IX avançou, desaparecendo no horizonte gasoso de Netuno, levando consigo a memória de dois corações que ousaram enfrentar o infinito.

Epílogo – Silêncio Azul
O espaço ao redor de Netuno era vasto, silencioso e indiferente. A Atena IX cortava lentamente o vazio, suas luzes refletindo nas nuvens gasosas do planeta, como lanternas solitárias em um oceano infinito.

Tatiana permanecia na cabine de comando, os olhos fixos nas telas, mas sua mente viajando pelo que havia perdido e pelo que ainda precisava cumprir. Paolo não estava mais ali, mas sua memória permanecia, silenciosa e inquebrável, como uma presença invisível em cada painel e cada aviso luminoso.

Ela revisou os dados da missão, ajustou trajetórias e garantiu que cada registro fosse completo. Tudo seria útil, mesmo que ninguém na Terra acreditasse totalmente no que acontecera. A verdade, ela sabia, raramente precisava ser compreendida por outros; bastava que fosse preservada.

O planeta azul girava indiferente, e Tatiana sentiu o peso do infinito em seus ombros. Mas havia também uma força sutil: a certeza de que a coragem humana, a capacidade de enfrentar medo, perda e incerteza, era maior que qualquer máquina, maior que qualquer regra.

No reflexo das janelas, sua própria imagem se misturava ao brilho de Netuno. Um luto silencioso, sim, mas também a lembrança de que, mesmo no isolamento e na escuridão, a humanidade podia resistir.

E, com um último ajuste nos controles automáticos, ela murmurou:

— Que a missão continue… que o silêncio azul carregue a memória daqueles que ousaram amar e sobreviver.

A Atena IX desapareceu lentamente no horizonte gasoso de Netuno, levando consigo os vestígios de dois corações e a prova de que, no cosmos infinito, o humano sempre encontrará um caminho, mesmo quando tudo ao redor parece impossível.

Pablo Aluísio.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Constance - O Livro de Sangue

Vingança
Entrou pela cozinha. A velha não o viu. Ele tinha contas a acertar. Aquela velha no passado quis matá-lo. Depois ficou anos e anos procurando destruir sua reputação, publicando em jornais frases de deboche e escárnio, o ofendendo através de piadas psicóticas. Ela tinha personalidade retardada, era infantilóide e embora estivesse com 80 anos parecia ainda uma víbora adolescente. Também era uma das madames mais ricas de Paris! 

Agora havia chegado a hora de dizer basta. O Lord Constance, vampiro fino e elegante, queria descontar tudo o que havia passado. Chegou por trás da velha que, ouvindo mal, não o viu chegar. Ele a pegou pelos cabelos. Estavam na cozinha da casa. Pegou ela pelos cabelos e buum... a bateu com força na quina da pia dura de pedra da cozinha. A pancada foi forte e certeira. Ela perdeu imediatamente os sentidos. 

O Lord vampiro percebeu que ela não tinha mais consciência. Só para se assegurar que aquele ser não iria voltar a pegou novamente pela cabeça e deu uma, duas, três, fortes pancadas com sua cabeça no chão. O crânio fez barulho de ter trincado. O Lord então pegou um machado, o levantou e zumm... cortou a cabeça da velha fora! A cabeça rolou e rolou... Foi parar perto de uma poça de água...

Não iria beber seu sangue. Não queria beber o sangue daquela nobre de quinta categoria. Mulher rica de Paris, mas de baixos instintos. Ela tinha o que merecia. Era uma megera, uma insana, uma psicótica com ares de perversidade. De personalidade tóxica até o último fio de cabelo. Sua vida se esvaira. Estava morta. Constance nem perdeu tempo. Deu um chute feroz em sua cabeça decepada que estourou na parede da cozinha. O sangue cobriu tudo. Ele olhou uma última vez para aquilo. Estava satisfeito. Ela agora jazia nas profundezas do inferno. 

Acendeu um último cigarrete, olhou para o luar e saiu pela janela, para nunca mais voltar naquela casa...

O Amor Que Não Ousa Dizer Seu Nome...
Constance era um vampiro violento. Em sua vida humana ele teria sido um lord inglês, um daqueles senhores, dono de várias propriedades, entre elas uma bela mansão no bucólico interior britânico. O diferencial era que ele na realidade era um homem interessante, muito concentrado em suas pequenas e grandes obsessões. A maior delas seria a arqueologia. Constance tinha uma das melhores coleções de artefatos antigos da Inglaterra Vitoriana. E para alcançar as peças que desejava ele não media esforços. Comprava peças antigas a preços absurdos. Depois as levava para sua biblioteca particular que mais parecia um museu de história natural. 

Não se sabe ao certo como Constance se tornou um Lord Vampiro. Provavelmente caiu nas garras de algum vampiro disfarçado de homem comum. Constance era homossexual como muitos de seus conhecidos, desde os tempos em que frequentou as melhores escolas da terra de vossa Majestade. Então quando ficou adulto ele foi seduzido a ir até um covil de homossexuais. Era uma atividade clandestina, que poderia inclusive dar prisão. Por essa razão havia toda uma cultura de subterrâneo sobre o mundo homossexual e Constance viveu muito nesses redutos durante sua juventude. Numa dessas ocasiões acabou virando uma presa fácil. Caiu na armadilha. Foi mordido. Virou uma criatura da noite. 

Agora estava seguindo sua existência como ser da noite em plenos anos 1980. Parecia ser um tempo com mais tolerância e os homossexuais finalmente encontravam sua voz. Só que Constance também viu a chegada de uma nova doença, a AIDS, que vitimou muitos de seus amigos homossexuais. foi um choque sem dúvida, mas ele particularmente passou sem sofrer nada. Afinal ele sequer estava vivo. 

Depois de muitas décadas Constance decidiu se mudar para Berlim, na Alemanha. Ele havia ficado maravilhado com o clima cultural da grande cidade alemã. Havia muitas oportunidades por ali, até porque em uma cidade cheia de punks sempre haveria possibilidade de carne moída e sangue fresco grátis. Os policiais não estavam nem aí se os punks fossem encontrados mortos. Os tiras odiavam os punks, aos quais chamavam de vagabundos. Sempre que o corpo de um punk era encontrado o chefe de polícia perguntava se outro vagabundo havia morrido. 

Só que não era apenas essa a atração de Constance em Berlim. Ele havia lido um livro muito interessante de um historiador francês que trazia supostas cartas escritas por um vampiro antigo chamado Maximilian. Era por demais interessante. A crítica literária viu o livro como lorota, apesar do historiador ter dito várias vezes que eram cartas verdadeiras. Constance acreditou nas cartas do Vampiro de Versalhes. E ele estava especialmente interessado no Livro de Sangue citado nesses velhos escritos. Estava decidido a encontrar o tal artefato raro para levar para sua coleção particular na Inglaterra. 

E ele não iria medir esforços nesse sentido...

Lascívia e Sangue
O vampiro Constance chegou em Berlim em plena madrugada. Chuva fina lá fora. Ainda assim foi para o Palácio do amigo Hanz onde uma festa decadente se desenrolava. Logo na entrada foi recebido por Jessica, linda dama da noite. Pele branca, grandes seios de granito, corpo altamente proporcional. Uma verdadeira estátua grega. Os olhos fixados e as mãos trazendo uma linda taça de sangue fresco. Constance sentiu-se em casa com toda aquela decadência. 

Pelos corredores lindas virgens eram servidas aos convidados. Só havia uma regra: beba o sangue que quiserem, mas preservem a vida das donzelas. Ninguém quer problemas com os policiais da cidade. Beba a jugular e preserve as garotas para quem sabe mais uma noite de prazer. 

Para Constance aquele era um alívio que ele sentia. Nas últimas semanas sabia que o Anjo da Morte andava em seu clã. Parentes mortos e alguns na fila para visitar o Hades, o abismo sem fim, Hanz sabia de tudo e queria ser um bom anfitrião para Constance. Só não queria ser perturbado por velhas lendas medievais. Ele já vivera o suficiente para não acreditar mais nesse tipo de coisa. Estava cansado de tudo isso. 

Então convidou Constance para ir para o leito ao lado da suculenta Jessica James. E ele o fez. Queria ter relações sexuais com aquela mulher. Seria um ótimo desfecho para sua jornada, sua viagem. 

Ela se despiu em sua frente. Um belo corpo de mulher. Aquele tipo que ele tanto adorava. Havia fartura de carnes suculentas ali. Ele iria se fartar. Uma bela vagina, bem torneada, convidativa. E Constance ficou um bom tempo apenas mamando suas tetas rosadas. Depois a penetração. Já não era tão bom como antigamente. 

Embora também curtisse homens na cama, de vez em quando Constance gostava de entrar no meio das pernas de belas mulheres. Sentir-se um homem de tempos em tempos. E nesse papel também era um homem bem viril, satisfazendo a lascívia delas com doses de prazer infinitos. Elas gemiam alto no orgasmo. Constance socava sem dó e nem piedade. 

Depois do coito satisfatório, uma dose de sangue humano. Pensou em morder Jessica, mas olhando para ela dormindo tranquilamente ao seu lado não quis acordar a doce estátua de mármore. Ao invés disso vestiu sua longa capa vitoriana e decidiu andar pelos salões escuros do Palácio até o amanhecer. Queria ficar sozinho e pensar um pouco sobre sua busca...

Sangue e Areia
Constance agora estava em uma escavação arqueológica nos arredores de Berlim. Em um passado distante ali havia uma grande floresta onde lutaram romanos contra os bárbaros germanos. Grandes histórias de lutas e batalhas épicas se desenvolveram naquele solo. Só que a floresta há muito deixou de existir. A madeira foi colocada ao chão, usada para produzir carvão. Sobrou um vale estéril, com muita poeira e pó que entravam nas narinas dos homens que participavam daquela escavação. 

Constance tinha interesses ali. Ele havia comprado alguns artefatos antigos daquela escavação. Chegou a levar para sua coleção um precioso Elmo romano que havia sobrevivido no tempo. Aquilo era uma raridade absoluta, uma peça de um tempo que não existe mais, quando o Império Romano dominou praticamente toda a civilização ocidental. Constance tinha verdadeira adoração pela história da Roma Antiga. tinha pensado certamente em ampliar sempre e sempre sua coleção particular. 

Só que a históriia do Livro de Sangue não lhe saía da cabeça. Ele queria entender o que era verdade e o que era mera lenda naquele conto que lhe chegou em mãos. Poderia ser tudo, inclusive nada. Só que para aprofundar naquela questão ele entendeu que teria que ir até Paris, investigar se Maximilian de fato existiu ou se era apenas um personagem de literatura. Afinal desde os anos 80 livros sobre vampiros era uma moda no mundo editorial. Poderia muito bem ser que tudo aquilo não passava de uma fantasia. 

Queria ir na Biblioteca de Paris atrás das cartas de Maximilian. Será que elas ainda existiam? E Pierre, o tal historiador, era de fato uma pessoa real? Só havia mesmo uma possibilidade de seguir todos os passos, indo em direção à velha cidade de Paris, andar por suas ruelas medievais e antigas. Ir em busca da história desse homem que supostamente teria vivido no auge do Palácio de Versalhes. 

Certamente isso iria durar um tempo. Iria exigir um certo esforço de sua parte. Teria que ter paciência e organização em sua busca pessoal. Não adiantava se apressar. Nesse mundo de investigar histórias tudo poderia ser muito lento, complicado, obscurecido pelas areias do tempo. Como dizia o ditado popular, o tempo torna todos os homens sábios. Pena que também os mata. Como ele era um vampiro não tinha pressa nenhuma pois tinha todo o tempo do mundo. Claro, se ninguém o estivesse caçando. Em breve ele iria entender que alguém também seguia seus rastros no meio da escuridão. 

Pierre
Pierre era um homem destruído pelo tempo. Estava com 80 anos de idade e sofria de Mal de Parkinson. Quando Constance o encontrou pela primeira vez teve uma verdadeira compaixão pelo estado daquele homem. Ele estava curvado, sua coluna estava desviada e ele tremia as mãos o tempo todo. Por um breve momento Constance pensou serialmente em cancelar aquele encontro. Só que o velho homem estava em sua frente e ele decidiu seguir com a conversação. 

- Boa Noite Pierre. Deixe-me apresentar. Sou Constance. Estou em busca de informações sobre Maximilian! - Disse o cortês em seu perfeito sotaque britânico. 

- O Vampiro de Versalhes? Puxa, essa história me trouxe muitos problemas... muitos problemas mesmo... - Confessou Pierre sentando-se em sua cadeira, com uma bengala em mãos. 

- O que aconteceu? - Sondou o inglês. 

- Bom, eu estava em ascensão, numa carreira acadêmica. De repente me dei mal com aquele livro sobre vampiros. Obviamente ninguém acreditou em mim. Virei piada. Vampiros não existem!

- Calma, essa é uma conclusão precipitada... - Disse Constance fitando os olhos do homem à sua frente. Ele fez um efeito especial em seus olhos que o tornaram muito brilhantes, tal como um lobo na escuridão. Só uma maneira sutil para deixar claro a Pierre que ele estava na frente de uma criatura da noite...

- Meu Deus! O que é isso? - Tentou se levantar rapidamente, mas sem conseguir por causa de sua grave doença...

- Acalme-se. Eu jamais iria lhe fazer mal, velho homem. Sente-se, fique calmo. Estou apenas em busca de informações mesmo. Me diga com sinceridade. Maximilian realmente existiu?

- As cartas certamente existem. Estiveram em minhas mãos por muitas vezes. Já o seu conteúdo.... é outra coisa... Fiz breves pesquisas, mas não pude ir em frente. Tinha que ganhar o pão do dia a dia. Não podia ficar viajando em busca de uma sombra...

- E hoje onde se encontram as cartas originais?

- Na biblioteca de Paris. 

- Era o que desejava saber. Então me vou, velho homem. Quero lhe desejar muita saúde e paz. Quero que você tenha um final de existência feliz como ser humano. Eu falo isso do fundo de meu coração combalido. 

Pierre viu sinceridade em suas palavras. Não demorou logo e o alto e elegante Constance se levantou. Colocou seu bonito chapéu e saiu do encontro com Pierre. Estava satisfeito com o que ouvira dele. 

Só que Pierre tinha uma última pergunta a lhe fazer...

- Espere... Uma última pergunta. Existe mesmo vida após a morte?

Constance virou-se, olhou sobre seus ombros, abriu um sorriso e respondeu...

- Como eu vou saber? Eu nunca morri! Não no sentido tradicional do termo. 

Dito isso tirou uma moeda do bolso e jogou para o alto. Depois a deu de presente para Pierre. 

- Eis aqui um presente. É uma velha moeda romana dos tempos do imperador Tibério... 

Deu a moeda para o velho historiador...

- Muito obrigado... Eu dei minha vida pela história...

Não havia tempo para mais nada. Com sua grande capa preta Constance andou rápido, com passos firmes. Abriu a porta e se foi, desaparecendo no meio da noite. 

As Cartas de Versalhes
A Biblioteca Nacional de Paris dormia sob a névoa da madrugada. Dentro, corredores silenciosos guardavam séculos de segredos. Constance entrou como um sopro invisível — ninguém o viu. Caminhou com o mesmo porte de sempre: elegante, frio, nobre.
Sabia exatamente para onde ir. No subsolo, havia uma sala restrita onde estavam guardadas as correspondências antigas de nobres franceses do século XVIII. Entre elas, as famosas “Cartas de Maximilian”.

Retirou uma delas do cofre e leu sob a luz amarelada da lamparina. O papel estava amarelado, com tinta desbotada, mas as palavras ainda gritavam vida:

“Aquele que possuir o Liber Sanguinis — o Livro de Sangue — dominará o tempo e as almas. Mas pagará um preço que nem mesmo a eternidade poderá apagar.”

Constance sentiu algo dentro de si estremecer.
O Livro não era apenas uma relíquia: era uma chave.
Uma chave que talvez pudesse libertá-lo de sua condição amaldiçoada.

O Livro de Sangue
Na noite seguinte, Constance seguiu as pistas deixadas nas cartas. O último registro falava de uma cripta sob o antigo Mosteiro de Saint-Denis, demolido após a Revolução Francesa, mas ainda guardando ruínas subterrâneas.

Ele desceu pelas escadarias cobertas de limo, acompanhado apenas de seu faro sobrenatural. Lá embaixo, um cheiro de ferro oxidado e cadáver antigo o envolveu. No centro da cripta, um altar quebrado — e sobre ele, o que parecia um grande volume encadernado em couro escuro, pulsando suavemente, como se tivesse um coração próprio.

O Livro de Sangue.

Constance se aproximou. Ao tocar a capa, uma sensação o invadiu — como se o sangue de todos os mortos gritasse dentro de sua mente. Vozes, memórias, guerras, pestes, amores perdidos… tudo em uma torrente única.

O vampiro quase caiu. A energia do livro parecia viva, consciente.

“Quem lê estas palavras sela seu destino”, sussurrou uma voz feminina, antiga, ecoando pela cripta.

Era como se o espírito de Maximilian ainda o observasse.

O Espelho de Sangue
As páginas começaram a se mover sozinhas. Constance viu reflexos — não de seu rosto, mas de todas as suas vidas passadas. Aquele Lord arqueólogo. O jovem inglês. O vampiro recém-nascido. E então... o assassino da velha em Paris.

O livro o fazia reviver tudo. Cada pecado. Cada vício.

Uma lágrima de sangue escorreu por seu rosto. Pela primeira vez em séculos, ele sentiu vergonha.

— Então é isso… — murmurou. — O Livro é um espelho da alma.

De repente, um vulto emergiu da escuridão. Era Jessica James. A vampira alemã o havia seguido, movida por uma curiosidade obsessiva.

— Você achou o livro, Constance... mas ele não pertence a você — disse, revelando suas presas. — Pertence a quem tiver coragem de ler até o fim.

E num salto felino, ela se lançou sobre ele. Os dois caíram, o livro aberto entre seus corpos.

O sangue de ambos respingou sobre as páginas — e o Liber Sanguinis brilhou como se fosse feito de fogo líquido.

A Maldição
Jessica foi engolida por uma luz vermelha e desapareceu, dissolvida no ar. Constance ficou sozinho, ajoelhado, com o livro fechado em suas mãos.
Agora ele entendia. O Livro de Sangue escolhia um portador e destruía o outro.

Ele sentiu a força do artefato fluir dentro de seu corpo. O poder era imenso. Mas junto com ele veio a dor — uma dor antiga, arrastada, que parecia abrir suas veias de dentro para fora.

Os rostos das vítimas começaram a surgir diante de seus olhos: a velha decapitada, os punks mortos em Berlim, os amantes esquecidos...

O Livro o forçava a encarar cada vida que ele havia tomado.

— Chega! — gritou, sua voz ecoando nas catacumbas. — Eu não quero mais viver na noite!

O Livro respondeu com silêncio.

Então ele percebeu: a única forma de quebrar a maldição era devolver ao sangue o que o sangue lhe dera.

O Último Crepúsculo
No alto da colina de Montmartre, pouco antes do amanhecer, Constance abriu o Livro pela última vez. As primeiras luzes do sol nasciam sobre Paris. Ele sorriu — um sorriso cansado, humano.

— Que seja o fim.

Com uma adaga antiga, cortou o próprio peito e deixou o sangue escorrer sobre as páginas. O Livro o absorveu avidamente. Uma chama azulada o envolveu, queimando a capa, o papel, e o próprio Constance.

Em poucos segundos, o Lord Vampiro se dissolveu em cinzas.
O vento levou sua essência para longe, espalhando-a sobre os telhados da cidade.

No chão, restou apenas uma moeda romana — a mesma que ele dera a Pierre.
O velho historiador, em seu quarto, acordou naquele exato instante e viu a moeda brilhando em sua mesa. Sorriu e murmurou:

— Enfim, ele encontrou o que buscava…

E assim, a eternidade de Lord Constance chegou ao fim —
entre o sangue e o perdão, entre o amor e a noite.

Pablo Aluísio. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Morte na Ravina

Todos Mortos...
Little Bighorn, Montana, 30 de junho de 1876
Entramos nas colinas próximas a Little Bighorn, no Território de Montana, em 30 de junho de 1876. Cinco dias antes a Sétima Cavalaria do General Custer havia sido destroçada por índios nessa mesma região. Estávamos chegando para conferir pela primeira vez o que teria realmente acontecido. Será que eles tinham mesmo sido mortos pelos nativos? Era necessário o envio de uma parte da cavalaria para verificar in loco o que de fato teria acontecido. Antes de qualquer coisa devo me apresentar. Esse que escreve essas linhas é o Major Paul Byron, faço parte da décima nona cavalaria e minha missão era de ir até aquela região para ver tudo com os próprios olhos. 

Antes de entrarmos na ravina já encontramos corpos de militares. Todos em avançado estado de decomposição. Muitos tinham sofrido com a tradicional ritualística dos nativos de retirar seus escalpos, a parte da frente dos cabelos nos crânios dos homens mortos. Os índios usavam os escalpos em seus cintos e nos cavalos para mostrar aos demais guerreiros da tribo a sua bravura na guerra contra o homem branco. 

Vi o corpo de um jovem soldado com a boca aberta e os olhos de terror. O rigor cadavérico preservou para a eternidade suas últimas feições em sua face praticamente juvenil. Não havia armas entre os corpos, uma prova de que elas tinham sido levadas pelos índios. Isso significava que estavam fortemente armados e municiados. Mais um sinal de que deveríamos ter muito cuidado. 

Finalmente depois de quase uma hora no lugar identificamos o corpo de Custer. Ele estava cadavérico, mas conseguimos reconhecer pelo uniforme, pelas insígnias e também pelos cabelos que sobraram, loiros, longos, ao vento. Seus dedos tinham sido cortados e seu corpo estava muito mutilado, demonstrando o ódio e a fúria de seus inimigos no calor da luta. Eles não apenas mataram Custer, eles fizeram de tudo para lhe tirar sua dignidade. O tronco havia sido separado de suas pernas, um dos pés foram arrancados e sua dentro de sua boca havia flechas de fogo. Um triste fim para um dos oficiais mais importantes da história do exército americano. 

Flechas de Sangue
Era muito cansativo ser da cavalaria dos Estados Unidos. Além do risco de levar uma flecha em qualquer lugar, havia ainda as longas cavalgadas. Isso destruía a coluna de qualquer mortal, mesmo que você fosse jovem e com boa saúde. O ser humano simplesmente não nasceu para ficar tantas horas na sela de um cavalo, no meio daquele deserto horrível, onde só viviam as cobras e os lagartos. E o calor era infernal. O suor descia em cascatas por trás do chapéu azul da cavalaria. As mãos, dentro das luvas, ficavam ensopadas com aquele clima horrível! 

Por isso quando a oitava cavalaria foi designada para um território longe demais, nenhum dos soldados comemorou. Era mais uma cavalgada infernal, mais uma viagem rumo ao deserto infame. Só que dessa vez eles tiveram uma surpresa. Foram parar em um lugar até muito bonito. A fronteira entre o território onde os apaches foram levados e o território do homem branco que a cavalaria deveria defender, não era muito distante.

Havia duas colinas separando os dois mundos. No meio das duas colinas havia um lindo rio das águas mais limpas que você possa imaginar. Essas águas vinham direto das montanhas. O rio era formado do degelo da neve do alto dessas montanhas. Era uma coisa linda de se ver. O rio era azul feito o céu. Os soldados lhe deram o nome de Blue River. 

Como estavam cansados demais, tiveram autorização de seus oficiais para tirarem suas roupas, para nadar naquelas águas maravilhosas. Só uma coisa eles não deveriam fazer: beber diretamente do rio. Só podiam fazer isso depois de ferver a água. Precaução contra doenças, estava no manual do soldado americano. 

Nadar naquelas águas era uma maravilha e todos se renderam a elas. Quer dizer, todos não. O comandante ficou firme em seu cavalo. Depois desceu e se encostou preguiçosamente em uma pedra. E ele não conseguiu esconder o prazer de estar em um lugar tão bonito! Ainda mais para um sujeito que acabara de chegar de um lugar de morte e destruição. Não fazia muito tempo estava coordenando seus homens no enterro dos militares da sétima cavalaria, mortos na emboscada às tropas do General Custer. Ele mesmo havia participado do reconhecimento do cadáver do general. 

Sair daqueles campos da morte para depois ir parar em lugar de cartão postal como aquele era mais do que bem-vindo, era uma maravilhosa consolação. Ele então se deitou e relaxou. Parecia muito relaxado. Estava em paz consigo mesmo. Tirou as luvas cheias de poeira do deserto e as colocou de lado. Ele poderia morrer ali mesmo, nunca mais sair daquele paraíso, que para o velho militar estava tudo bem. Estaria tudo justificado. 

Para um homem de 50 anos, já sentindo o peso da idade, era mais do que agradável ficar ali vendo aquelas belas águas azuis. Só que nem ele e nem seus homens prestaram a devida atenção pois no alto da colina dos índios, começavam a chegar mais e mais guerreiros Apache. A coisa estava prestes a mudar. 

O único som que se ouviu foi a da flecha cortando o ar... 
Ela saiu do alto da colina e foi direto ao alvo, nas costas de um dos soldados...

O ataque havia começado...

Capítulo 4 – A Emboscada
O silêncio foi quebrado pelo zunido das flechas. Uma após a outra, elas atravessaram o ar quente e seco, cravando-se nas costas e nos peitos dos soldados desprevenidos. Os gritos ecoaram pelo vale, confundindo-se com o barulho dos cavalos que relinchavam em desespero. O comandante, ainda deitado na pedra, levantou-se num salto, puxando o revólver. Gritou ordens que ninguém mais podia ouvir — o caos havia se instalado.

Os apaches desciam pela encosta como sombras, ágeis e certeiros. Tinham o sol a seu favor, e o reflexo das lanças parecia o brilho de lâminas sagradas. Em poucos minutos, o acampamento se transformou em um cenário de massacre. A água azul do rio começou a tingir-se de vermelho.
Byron, que observava tudo do outro lado da colina, viu o desastre se repetir. Little Bighorn não tinha terminado — apenas mudara de lugar.

Capítulo 5 – O Rio dos Mortos
Quando a poeira baixou, restavam apenas ruínas humanas e ecos distantes dos gritos. Byron aproximou-se com sua patrulha de reconhecimento, montando devagar. O cheiro de sangue e pólvora se misturava ao da terra quente. O Blue River, antes cristalino, agora era um espelho turvo onde boiavam chapéus, botas e corpos.

Um soldado de sua tropa fez o sinal da cruz.
— Deus nos abandonou, Major? — perguntou ele, a voz trêmula.

Byron permaneceu calado. Sabia que aquilo não era obra do acaso, mas o resultado direto da arrogância do Exército em insistir em terras que não lhes pertenciam.
A guerra com os nativos era, para ele, uma sentença de repetição: sempre os mesmos erros, sempre as mesmas mortes.

Capítulo 6 – O Prisioneiro Apache
Enquanto exploravam o campo, encontraram um homem ferido entre as rochas. Era um apache, jovem, mas com o olhar firme. Tinha uma flecha quebrada atravessando o ombro. 

Byron ordenou que o trouxessem ao acampamento.
Naquela noite, sob a luz das fogueiras, o apache falou em um inglês precário, aprendido com missionários. Chamava-se Tasunke. Disse que não lutavam por ódio, mas por vingança:

— Vocês enterraram Custer. Nós enterramos nossos filhos.
Byron ouviu em silêncio.

Aquelas palavras ficaram martelando em sua mente por horas. Pela primeira vez, ele começou a se perguntar quem eram, de fato, os invasores.

Capítulo 7 – Ecos da Noite
Na madrugada, o acampamento foi envolto por um vento frio vindo das montanhas. Byron acordou com o som distante de tambores — ou talvez fosse apenas o eco de sua consciência. Caminhou até o rio. As águas já estavam limpas novamente, como se o massacre nunca tivesse acontecido.

Enquanto olhava o reflexo da lua, viu algo que o fez gelar: o rosto de Custer. Não como o cadáver mutilado que vira, mas sereno, fitando-o com olhos que pareciam acusar.
Byron caiu de joelhos. O vento cessou, e o silêncio pesou como chumbo.

A partir daquela noite, ele começou a ouvir vozes — sussurros em línguas que não compreendia, vindo da ravina.

Capítulo 8 – O Julgamento dos Mortos
Dias depois, ao tentar deixar a região, a tropa começou a desaparecer misteriosamente. Um a um, os soldados sumiam durante a madrugada. Os cavalos eram encontrados vagando sem montaria.

Byron organizou buscas, mas tudo o que encontravam eram pegadas que terminavam nas margens do rio. Nenhum rastro além disso.

O velho sargento Harlow jurou ter visto figuras à beira da colina — guerreiros apaches montados, mas translúcidos, como fumaça. Byron mandou que calassem a boca, mas ele mesmo já não acreditava no que via.

O lugar estava amaldiçoado.

Capítulo 9 – A Ravina
Certa manhã, restavam apenas Byron e dois homens. Resolveram atravessar a ravina para sair dali. O caminho era estreito, ladeado por rochas altas.

De repente, ouviram um som agudo — não de flechas, mas de algo mais profundo, quase espiritual.

Uma sombra surgiu entre as pedras. Era Tasunke, o apache ferido, montado num cavalo negro.

— Eu te avisei, Major — disse ele. — Os espíritos da ravina não esquecem.

Antes que Byron pudesse responder, uma força invisível o derrubou da sela. As rochas tremiam. E então ele viu — centenas de guerreiros, brancos e índios, mortos, misturados, marchando juntos. Todos com os olhos vazios.
O vento da ravina rugia como um lamento de almas perdidas.

Capítulo 10 – O Último Relato
Dias depois, um grupo de batedores encontrou o cavalo do Major Byron vagando perto de Fort Lincoln. No alforje, havia apenas um caderno — o mesmo onde ele costumava anotar suas observações de campanha.

As últimas linhas estavam manchadas de sangue e difíceis de ler. Mas ainda se distinguia o final:

“Não há vencedores nesta guerra. Só mortos.
Custer, os apaches, os meus homens — todos descansam agora no mesmo chão.

A ravina levou tudo. E quando o rio correr azul de novo, talvez o céu nos perdoe.”

Ninguém nunca encontrou o corpo do Major Paul Byron.

Epílogo – Vozes da Ravina
Os anos passaram, e o vale de Little Bighorn tornou-se um campo de lembranças.

Dizem que, nas noites frias de verão, é possível ouvir cavalos correndo nas encostas e vozes sussurrando o nome de Byron.

Outros juram ver, sob o luar, um homem de uniforme azul olhando o rio, imóvel, com um caderno nas mãos — como se ainda procurasse entender o que a morte tentara lhe ensinar.

Pablo Aluísio. 

Clinton, o Rebelde

Clinton, o Rebelde 
O ano é 1956. Em uma cidadezinha do meio oeste dos Estados Unidos vivia o jovem Clinton. Um cara normal, mas com problemas a mais do que um jovem comum que vivesse em uma família que não fosse tão disfuncional como a dele! 

Clinton não aguentava mais seus familiares. Ele era o mais jovem de dois irmãos. Esse não era realmente o problema. O problema era a família do pai dele. O pai era um dos doze filhos de um velho fazendeiro do interior. Um sujeito tosco, que cuspia no chão. Clinton sempre desconfiou que seu avô tinha algum problema mental. e pela histórias de abusos físicos e mentais que ele ouviu durante toda a sua vida, isso era bem provável de ser verdade. A questão é que por isso seu pai cresceu com problemas emocionais também. 

O pai de Clinton era um autêntico filho da puta! Era um sujeito que vivia do ódio. Ele podia ficar dias sem falar com sua esposa e nem seus filhos. Estava sempre ameaçando sair de casa, deixando todos na miséria. Ninguém realmente gostava daquele sujeito sórdido. Ele aprendeu a ser sórdido com o próprio pai, aquele miserável que estava morto, apodrecido em algum caixão. O velho vinha de uma tradição de miseráveis bastardos. Na pequena cidade onde cresceu todos diziam odiar aquela família. Ninguém gostava deles. Eram vilões, gente ruim, sangue ruim. Ninguém realmente prestava naquela família dos infernos. 

Clinton amava artes. Ele era tão diferente daqueles parentes nojentos dele. Ele queria ser escritor ou artista, mas vivia sendo massacrado. O pai estava morrendo de câncer. O pior é que apesar de estar no bico do corvo continuava sendo o mesmo desgraçado de sempre. A alma era podre. O corpo estava podre agora, também. Não havia salvação para aquele desgraçado filho de uma puta, neto de Lúcifer. Gente ruim, sangue ruim, nem o cemitério queria. Quando morresse era melhor jogar na caçamba de lixo. Era o adequado a fazer. Clinton sabia que seu pai e os parentes familiares eram apenas isso, lixo putrefato! 

- Malditos desgraçados, dizia rangendo os dentes...

Arte e Violência
Clint ainda estava na escola. Ele odiava a escola. Não que fosse um cara burro, mas justamente o contrário. Achava tudo maçante. Ele era inteligente, mas parecer inteligente demais na escola poderia ser perigoso. Ele poderia apanhar por isso. Por isso fingia ser um cara burrão. Um cara forte, sempre pronto a fazer piadas estúpidas com outras pessoas. E como havia sido criado numa família tóxica ele não via nada de errado em detonar os menos afortunados. Ele era um cara escroto, tenha certeza disso. 

Tirava onda com as garotas gordas, os caras magros, qualquer um que não se enquadrasse em um certo padrão. Ele era muito mais alto do que os demais. Tinha quase dois metros de altura. Seu porte chamava a atenção. Um cara brutal, mas ao mesmo tempo com traços delicados no rosto. Poderia ser chamado de um baby face com corpo de brucutu. Isso o poupou de virar alvo de piadas na escola. Quem iria se meter com um grandalhão daqueles?

E no meio da tempestade que era a adolescência, ele se apaixonou por uma garota da escola. O nome dela era Anne. Olhando para o passado não poderíamos dizer que a Anne era uma beldade. Não era. Ela tinha um nariz de suíno e não curtia muitos hábitos de higiene. Era uma falsa loira. No fundo tinha sangue de índios, mas pintava o cabelo e se passava por loira. Clint tinha queda por loiras. Mesmo com as falsas...

Quando se está apaixonado não se vê bem a realidade. Como olhos de catarata você passa a ver tudo de forma embaçada e escura. A Anne não era nenhuma beleza. Tinha pés de crocodilo e não era das minas mais inteligentes da escola. Chegou a tirar um redondo zero na prova de química. Mas é a tal coisa, quando se está sem ninguém, qualquer uma passa a ser interessante. Clint não tinha muito jeito com garotas e ela não era muito inteligente. Mal sabia conversar direito. Por isso as chances de dar certo aquele relacionamento era zero. E terminou assim mesmo, no zero a zero! 

Por um tempo Clint ficou louco por cinema. Ele iria ser louco por cinema a vida toda, mas aquela era uma época especial tanto no mundo do cinema como no mundo da música. Ele curtia arte, acima de tudo. Adorava James Dean e Marlon Brando e era especialmente aficionado pelo tal de Elvis Presley. O cara era demais, unia a imagem dos rebeldes do cinema com a força de sua música. Quem não gostava de Elvis nos anos 50 não era boa praça. 

Clint adorava e mesmo sem ter muita grana procurava comprar todos os discos que encontrava. Tinha uma loja de discos no centro de sua cidade que se chamava Eletropieces e ele estava sempre procurando discos do Elvis na sessão de discos em promoção. Comprou quase toda a sua discografia por lá. Fez uma boa base. Depois foi comprando discos que surgiam do nada. Achou uma boa coleção de discos em caras que vendiam vinil nas ruas mesmo. Ele comprava tudo, embora com uma certa vergonha de comprar discos daquele jeito. Mas não importava, o legal era ter os discos. Colecionar algo lhe trazia grande prazer pessoal. Era um hobbie dos mais agradáveis para a alma. 

Arma!
Clint resolveu comprar uma arma! Um velho revólver 38. Nada muito sofisticado, mas para ele serviria. Estava planejando fazer pequenos roubos em lojas de conveniência nas cidades vizinhas. Nada de roubar em sua própria cidade. Seria facilmente identificado e iria parar na cadeia. Então ele comprou fiado um velho carro Plymouth. Estava caindo aos pedaços, não resistiria a uma perseguição policial, mas daria para pelo menos fugir em lugares remotos. Assim Clint pegou a estrada...

Ele foi procurando nos condados vizinhos pelas lojinhas mais simples, isoladas e remotas possíveis. E que fossem à beira da estrada. A fuga era essencial! Clint não era uma má pessoa. No fundo ele era até mesmo um bom rapaz, mas estava cedendo aos anseios e pressões sociais que caíam sobre ele. Via que vindo de uma família pobre não teria muitas perspectivas em seu futuro, não iria muito longe. Na melhor da hipóteses iria arranjar um empreguinho de salário mínimo num comércio qualquer. Ele não queria essa vidinha... Era jovem, sonhava alto, queria o mundo inteiro!

A criminalidade assim pareceu ser um caminho relativamente fácil para ele. Mal sabia no que estava se metendo! Depois de dirigir muito e vendo que a gasolina estava acabando ele acabou avistando seu alvo. Era uma pequena mercearia. Parou o carro na esquina. Foi dar uma olhada. 

O sujeito do balcão era um tipo brutamontes, cara grande, forte, barbudo! O tipo homem das cavernas. Só que Clint estava armado, não haveria músculos a se impor para uma arma de fogo. 

Ele entrou na lojinha. Cigarro encostado na orelha. Ficou olhando ao redor, por cima dos ombros. O balconista não foi com sua cara. Sabia que era um potencial ladrão dentro de seu estabelecimento comercial. E ele estava certo sobre isso. 

Então Clint se aproximou e pediu uma carteira de cigarros. Quando o balconista se virou para pegar, Clint puxou o revólver. Nunca aponte uma arma de fogo para um homem se não estiver decidido a usá-la! Essa seria uma lição que ele iria aprender da pior forma possível. 

O grandalhão viu que Clint lhe apontava uma arma. Ao invés de levantar as mãos ele se abaixou e pegou um grande taco de beisebol. Clint ficou surpreso com a reação do homem!

- Ei cara, larga essa taco, estou armando, me dê o que eu quero que deixarei você em paz! - Disse Clint, sem abaixar a arma!

- Seu filho da puta, foda-se... - Foram as últimas palavras que Clint ouviu antes de sentir a dor daquele grande pedaço de madeira batendo em sua cabeça...

Clint vacilou, não quis puxar o gatilho, saiu correndo pela porta com o barbudo brutamontes vindo em sua direção...

- Eu vou te matar ladrão filho da puta! - gritou a todo pulmão...

Clint correu e conseguiu abrir a porta. Estava correndo sangue pela sua cabeça. Virou a chave e deu partida...

O comerciante ainda acertou seu para brisas traseiro que ficou estralhaçado em mil pedacinhos...

- Santo Deus! - Pensou consigo mesmo Clint, suado e tentando limpar o sangue que agora escorria pelos seus olhos...

Sua inexperiência como criminoso havia falado mais alto. Ele não tinha como prever uma reação. Pensou e pensou no que havia acontecido. Depois suspirou e não se arrependeu de não ter matado aquele homem furioso. Teria sido muito pior para ele...

Delírio a Dois
Pois é, Clint percebeu que sozinho não iria muito longe. Precisava de um comparsa! Lembrou de Gus, um cara que ele conhecia desde os tempos da juventude, desde o colégio. Gus definitivamente não era uma pessoa normal. Quem o encontrava pela primeira vez logo percebia que ele tinha alguns problemas. Não parecia ser um jovem normal. No fundo, provavelmente, tinha algum grau de autismo ou qualquer coisa, mas naquela situação serviria para Clint. 

Clint foi se encontrar com Gus. Ele estava trabalhando em um posto de gasolina. Péssima era a sua situação desde que o colégio havia chegado ao final. Sem grana, sem perspectiva de ir para uma universidade, tudo o que havia lhe estado era um emprego ruim qualquer. Uma porcaria. Em sua maneira de pensar, Gus estava perdendo grande parte de sua vida ali. Que merda de vida!

Encontrar Clint para ele foi muito legal. Aquele provavelmente foi seu único amigo na escola. Mesmo quando conhecia alguém era por causa do Clint. Sozinho, era um ser nada social, feioso, mal arrumado, com papo estranho. Ninguém queria ser amigo de verdade dele. E tinha a esquisitice. Gus era esquisito. Disso Clint sabia bem, tanto que sempre o deixava longe de sua família. 

Só que Clint sabia que Gus iria servir por um simples motivo: o cara era demente! Ele gostava de dizer que era um cara barbarizante, ou seja, que topava de tudo, até mesmo de fazer atos bárbaros por aí. Se  havia um bom parceiro de crime, Gus seria o cara. Ok, era estranho, diríamos até mesmo bizarro, mas Gus topava qualquer coisa. Era só chamar que ele estava dentro. 

Clint abriu o jogo e contou a Gus o que havia acontecido...

- Porra, porque você não meteu uma bala naquele cara? - perguntou Gus, perplexo com a história que ouvira! 

- Bateu um sentimento de consciência... - Explicou Clint...

- Que consciência, filha da puta, era para apertar o gatilho, mandado o grandalhão para o inferno, sem dó e nem piedade, porra que merda! - Gus estava indignado!

_ Eu sei, eu sei...

- Você poderia ter morrido, se o cara lhe acertasse com um bastão de beisebol, você já era, bicho! Vamos voltar lá, quero matar esse filho da puta! - Gus, realmente não queria nem saber das consequências...

- Calma aí... Não quero voltar lá! Temos que ter outro plano de roubo, de assalto, mas em outro lugar... tem que ser algo mais planejado sabe, nada de sair na base da sorte, da cara ou coroa... tem que encontrar o lugar certo, encontrar a ocasião perfeita para isso e correr o menor risco possível...

- Ok, cara. Se você pensa assim, estou dentro! Vamos dar uma olhada por aí qualquer dia, eu estou dentro! - Gus realmente não dava para trás. 

- Certo, vamos planejar, mas tem que ser em outra cidade. 

Um delírio a Dois estava para começar!

Delírio a Dois (continuação)
Clinton e Gus passaram as semanas seguintes varando estradas e pequenos motéis, planejando roubos mais “profissionais”. Roubos de conveniência davam pouco; queriam algo maior, um caixa eletrônico isolado, ou um carro-forte que passasse por uma rodovia secundária. Eles discutiam rotas, horários, a melhor forma de desaparecer depois do golpe. Clint, por baixo de toda a bravata, ainda sonhava com cinemas escuros e roteiros que nunca escrevera. Era esse sonho — uma chama pequena — que, vez por outra, vinha à tona quando a adrenalina baixava.

Gus, por sua vez, empolgava-se com cenas de violência antecipada, com a idéia de domínio e poder. Não havia método nas obsessões dele, apenas fervor. Numa madrugada, junto a uma janela empoeirada, ele confessou que gostava de assistir a filmes de assalto de novo e de novo, memorizando cada detalhe. “A vida real é melhor”, disse, e sorriu como quem não mediu as consequências.

O plano que escolheram foi simples e arriscado: um carro-forte que abastecia um banco num pequeno vilarejo a trinta milhas de onde haviam nascido. Choque e fuga, emprego de máscaras, um carro abandonado num celeiro vazio à margem da estrada como ponto de reunião. Tudo parecia bem traçado. Só que, como em todos os filmes que Clint tanto admirava, o real nunca segue o roteiro. Havia algo que eles não haviam previsto: a coragem enfurecida do balconista e o mundo pequeno onde todo boato vira notícia.

A notícia de tentativas de assalto circulou rápido. O homem do mercearia contou tudo — as feições do ladrão, o carro — e em pouco tempo a polícia regional montou barreiras nas estradas. Um desses policiais, veterano de turnos longos, reconheceu a descrição de Clinton a partir de um cartaz informal que circulava entre as delegacias: um grandalhão de quase dois metros, expressão dura. Quando Gus e Clint chegaram ao ponto combinado, foi a vez da sorte virar o rosto.

Eles foram observados primeiro por luzes distantes, então por sirenes. Um bloqueio improvisado fechou o caminho. Clinton pisou no acelerador e sentiu o motor do Plymouth roncar como um animal encurralado. Gus, em pânico, bateu no painel, olhos arregalados. Havia mil coisas a dizer e nenhuma delas adiantaria. Eles tentaram contornar por um atalho de terra, rasgando o mato, o carro tossindo, a poeira subindo em nuvens.

Não houve tempo para grandes decisões. Homens armados emergiram da sombra: agentes da lei de duas delegacias, alguns estaduais, claramente preparados para algo mais grave do que um simples confronto com ladrões de beira de estrada. Havia ordem, havia nervos de aço, e havia armas automáticas apoiadas por braços que não tremeram. Clinton viu a formação ao longe e percebeu, em um frio fulminante, que aquilo não terminaria com algemas.

O primeiro clarão foi seco e alto. Metralhadoras, apontadas por profissionais, abriram fogo — rajadas curtas, precisas, arpoadas pelo ar que cheirava a pólvora. Não houve cena de heroísmo cinematográfico, nem troca de olhares dramática. Houve apenas a máquina de chumbo e o corpo no volante tentando, por instantes, entender a velocidade da queda. Bullets ricochetearam na lataria, estilhaços voaram, o Plymouth derrapou, bateu em uma vala e parou. Quando a guarnição avançou, o calor da batalha já havia esfriado o campo; havia apenas a respiração curta dos que ali ficaram de pé.

Clinton não teve discurso final. Não olhou para o céu em busca de redenção nem reconheceu seus erros em palavras. Caiu numa espécie de silêncio bruto, interrompido pela rotina profissional dos que chegaram depois: combates terminados, perímetro isolado, papéis a preencher. Gus, atordoado e gritando coisas desconexas, foi imobilizado. De algum jeito, no meio do fogo e do pânico, todas as pequenas vontades de Clint — escrever, fazer arte, escapar da família — pareceram tão banais quanto notas amassadas ao vento.

Quando a notícia chegou à cidade, os moradores sussurraram as versões num café e numa igreja: o grandalhão que quis ser bandido, a traição do destino, a violência que retorna sempre à mesma mesa. Alguns celebraram a ordem restabelecida; outros, mais calados, lembraram-se de um rapaz que uma vez fora visto na vitrine da loja de discos, olhando um álbum do Elvis como quem vê um mapa para outro mundo.

No fim, Clint morreu como entrou no crime: sem grandeza, sem glórias. A máquina do Estado fez o que achou necessário para encerrar a ameaça naquele dia — um desfecho seco, mecânico, prático. Para quem sonhava cinema, resta apenas a tela escura. E para os que ficaram, restou o vazio: a pergunta de sempre sobre quando a ferida da violência irá parar de gerar mais violência.

Gus acabou na cadeia. A família de Clinton, com suas feridas antigas, fechou-se sobre si mesma, como quem recolhe uma casa após um incêndio. E a pequena cidade voltou à sua rotina, com o zumbido baixo do calendário e as portas que se fecham às seis da tarde, como sempre fizeram. Ninguém esqueceu totalmente — esquecer é privilégio de quem não conhece o peso de uma bala —, mas, com o tempo, as conversas mudaram de assunto.

No fim das contas, ficou a lembrança amarga de um jovem que queria arte e encontrou violência; um menino de quase dois metros que, por erro de cálculo e por um coração remendado, terminou por ser consumido por uma sequência de decisões que ele, sob outras circunstâncias, talvez tivesse evitado. E assim termina a história de Clinton: não com um épico, mas com a fragile e definitiva questão de que alguns sonhos, quando atropelados pela raiva e pela pressa, terminam antes de começar.

Pablo Aluísio.