quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Morte na Ravina

Todos Mortos...
Little Bighorn, Montana, 30 de junho de 1876
Entramos nas colinas próximas a Little Bighorn, no Território de Montana, em 30 de junho de 1876. Cinco dias antes a Sétima Cavalaria do General Custer havia sido destroçada por índios nessa mesma região. Estávamos chegando para conferir pela primeira vez o que teria realmente acontecido. Será que eles tinham mesmo sido mortos pelos nativos? Era necessário o envio de uma parte da cavalaria para verificar in loco o que de fato teria acontecido. Antes de qualquer coisa devo me apresentar. Esse que escreve essas linhas é o Major Paul Byron, faço parte da décima nona cavalaria e minha missão era de ir até aquela região para ver tudo com os próprios olhos. 

Antes de entrarmos na ravina já encontramos corpos de militares. Todos em avançado estado de decomposição. Muitos tinham sofrido com a tradicional ritualística dos nativos de retirar seus escalpos, a parte da frente dos cabelos nos crânios dos homens mortos. Os índios usavam os escalpos em seus cintos e nos cavalos para mostrar aos demais guerreiros da tribo a sua bravura na guerra contra o homem branco. 

Vi o corpo de um jovem soldado com a boca aberta e os olhos de terror. O rigor cadavérico preservou para a eternidade suas últimas feições em sua face praticamente juvenil. Não havia armas entre os corpos, uma prova de que elas tinham sido levadas pelos índios. Isso significava que estavam fortemente armados e municiados. Mais um sinal de que deveríamos ter muito cuidado. 

Finalmente depois de quase uma hora no lugar identificamos o corpo de Custer. Ele estava cadavérico, mas conseguimos reconhecer pelo uniforme, pelas insígnias e também pelos cabelos que sobraram, loiros, longos, ao vento. Seus dedos tinham sido cortados e seu corpo estava muito mutilado, demonstrando o ódio e a fúria de seus inimigos no calor da luta. Eles não apenas mataram Custer, eles fizeram de tudo para lhe tirar sua dignidade. O tronco havia sido separado de suas pernas, um dos pés foram arrancados e sua dentro de sua boca havia flechas de fogo. Um triste fim para um dos oficiais mais importantes da história do exército americano. 

Flechas de Sangue
Era muito cansativo ser da cavalaria dos Estados Unidos. Além do risco de levar uma flecha em qualquer lugar, havia ainda as longas cavalgadas. Isso destruía a coluna de qualquer mortal, mesmo que você fosse jovem e com boa saúde. O ser humano simplesmente não nasceu para ficar tantas horas na sela de um cavalo, no meio daquele deserto horrível, onde só viviam as cobras e os lagartos. E o calor era infernal. O suor descia em cascatas por trás do chapéu azul da cavalaria. As mãos, dentro das luvas, ficavam ensopadas com aquele clima horrível! 

Por isso quando a oitava cavalaria foi designada para um território longe demais, nenhum dos soldados comemorou. Era mais uma cavalgada infernal, mais uma viagem rumo ao deserto infame. Só que dessa vez eles tiveram uma surpresa. Foram parar em um lugar até muito bonito. A fronteira entre o território onde os apaches foram levados e o território do homem branco que a cavalaria deveria defender, não era muito distante.

Havia duas colinas separando os dois mundos. No meio das duas colinas havia um lindo rio das águas mais limpas que você possa imaginar. Essas águas vinham direto das montanhas. O rio era formado do degelo da neve do alto dessas montanhas. Era uma coisa linda de se ver. O rio era azul feito o céu. Os soldados lhe deram o nome de Blue River. 

Como estavam cansados demais, tiveram autorização de seus oficiais para tirarem suas roupas, para nadar naquelas águas maravilhosas. Só uma coisa eles não deveriam fazer: beber diretamente do rio. Só podiam fazer isso depois de ferver a água. Precaução contra doenças, estava no manual do soldado americano. 

Nadar naquelas águas era uma maravilha e todos se renderam a elas. Quer dizer, todos não. O comandante ficou firme em seu cavalo. Depois desceu e se encostou preguiçosamente em uma pedra. E ele não conseguiu esconder o prazer de estar em um lugar tão bonito! Ainda mais para um sujeito que acabara de chegar de um lugar de morte e destruição. Não fazia muito tempo estava coordenando seus homens no enterro dos militares da sétima cavalaria, mortos na emboscada às tropas do General Custer. Ele mesmo havia participado do reconhecimento do cadáver do general. 

Sair daqueles campos da morte para depois ir parar em lugar de cartão postal como aquele era mais do que bem-vindo, era uma maravilhosa consolação. Ele então se deitou e relaxou. Parecia muito relaxado. Estava em paz consigo mesmo. Tirou as luvas cheias de poeira do deserto e as colocou de lado. Ele poderia morrer ali mesmo, nunca mais sair daquele paraíso, que para o velho militar estava tudo bem. Estaria tudo justificado. 

Para um homem de 50 anos, já sentindo o peso da idade, era mais do que agradável ficar ali vendo aquelas belas águas azuis. Só que nem ele e nem seus homens prestaram a devida atenção pois no alto da colina dos índios, começavam a chegar mais e mais guerreiros Apache. A coisa estava prestes a mudar. 

O único som que se ouviu foi a da flecha cortando o ar... 
Ela saiu do alto da colina e foi direto ao alvo, nas costas de um dos soldados...

O ataque havia começado...

Capítulo 4 – A Emboscada
O silêncio foi quebrado pelo zunido das flechas. Uma após a outra, elas atravessaram o ar quente e seco, cravando-se nas costas e nos peitos dos soldados desprevenidos. Os gritos ecoaram pelo vale, confundindo-se com o barulho dos cavalos que relinchavam em desespero. O comandante, ainda deitado na pedra, levantou-se num salto, puxando o revólver. Gritou ordens que ninguém mais podia ouvir — o caos havia se instalado.

Os apaches desciam pela encosta como sombras, ágeis e certeiros. Tinham o sol a seu favor, e o reflexo das lanças parecia o brilho de lâminas sagradas. Em poucos minutos, o acampamento se transformou em um cenário de massacre. A água azul do rio começou a tingir-se de vermelho.
Byron, que observava tudo do outro lado da colina, viu o desastre se repetir. Little Bighorn não tinha terminado — apenas mudara de lugar.

Capítulo 5 – O Rio dos Mortos
Quando a poeira baixou, restavam apenas ruínas humanas e ecos distantes dos gritos. Byron aproximou-se com sua patrulha de reconhecimento, montando devagar. O cheiro de sangue e pólvora se misturava ao da terra quente. O Blue River, antes cristalino, agora era um espelho turvo onde boiavam chapéus, botas e corpos.

Um soldado de sua tropa fez o sinal da cruz.
— Deus nos abandonou, Major? — perguntou ele, a voz trêmula.

Byron permaneceu calado. Sabia que aquilo não era obra do acaso, mas o resultado direto da arrogância do Exército em insistir em terras que não lhes pertenciam.
A guerra com os nativos era, para ele, uma sentença de repetição: sempre os mesmos erros, sempre as mesmas mortes.

Capítulo 6 – O Prisioneiro Apache
Enquanto exploravam o campo, encontraram um homem ferido entre as rochas. Era um apache, jovem, mas com o olhar firme. Tinha uma flecha quebrada atravessando o ombro. 

Byron ordenou que o trouxessem ao acampamento.
Naquela noite, sob a luz das fogueiras, o apache falou em um inglês precário, aprendido com missionários. Chamava-se Tasunke. Disse que não lutavam por ódio, mas por vingança:

— Vocês enterraram Custer. Nós enterramos nossos filhos.
Byron ouviu em silêncio.

Aquelas palavras ficaram martelando em sua mente por horas. Pela primeira vez, ele começou a se perguntar quem eram, de fato, os invasores.

Capítulo 7 – Ecos da Noite
Na madrugada, o acampamento foi envolto por um vento frio vindo das montanhas. Byron acordou com o som distante de tambores — ou talvez fosse apenas o eco de sua consciência. Caminhou até o rio. As águas já estavam limpas novamente, como se o massacre nunca tivesse acontecido.

Enquanto olhava o reflexo da lua, viu algo que o fez gelar: o rosto de Custer. Não como o cadáver mutilado que vira, mas sereno, fitando-o com olhos que pareciam acusar.
Byron caiu de joelhos. O vento cessou, e o silêncio pesou como chumbo.

A partir daquela noite, ele começou a ouvir vozes — sussurros em línguas que não compreendia, vindo da ravina.

Capítulo 8 – O Julgamento dos Mortos
Dias depois, ao tentar deixar a região, a tropa começou a desaparecer misteriosamente. Um a um, os soldados sumiam durante a madrugada. Os cavalos eram encontrados vagando sem montaria.

Byron organizou buscas, mas tudo o que encontravam eram pegadas que terminavam nas margens do rio. Nenhum rastro além disso.

O velho sargento Harlow jurou ter visto figuras à beira da colina — guerreiros apaches montados, mas translúcidos, como fumaça. Byron mandou que calassem a boca, mas ele mesmo já não acreditava no que via.

O lugar estava amaldiçoado.

Capítulo 9 – A Ravina
Certa manhã, restavam apenas Byron e dois homens. Resolveram atravessar a ravina para sair dali. O caminho era estreito, ladeado por rochas altas.

De repente, ouviram um som agudo — não de flechas, mas de algo mais profundo, quase espiritual.

Uma sombra surgiu entre as pedras. Era Tasunke, o apache ferido, montado num cavalo negro.

— Eu te avisei, Major — disse ele. — Os espíritos da ravina não esquecem.

Antes que Byron pudesse responder, uma força invisível o derrubou da sela. As rochas tremiam. E então ele viu — centenas de guerreiros, brancos e índios, mortos, misturados, marchando juntos. Todos com os olhos vazios.
O vento da ravina rugia como um lamento de almas perdidas.

Capítulo 10 – O Último Relato
Dias depois, um grupo de batedores encontrou o cavalo do Major Byron vagando perto de Fort Lincoln. No alforje, havia apenas um caderno — o mesmo onde ele costumava anotar suas observações de campanha.

As últimas linhas estavam manchadas de sangue e difíceis de ler. Mas ainda se distinguia o final:

“Não há vencedores nesta guerra. Só mortos.
Custer, os apaches, os meus homens — todos descansam agora no mesmo chão.

A ravina levou tudo. E quando o rio correr azul de novo, talvez o céu nos perdoe.”

Ninguém nunca encontrou o corpo do Major Paul Byron.

Epílogo – Vozes da Ravina
Os anos passaram, e o vale de Little Bighorn tornou-se um campo de lembranças.

Dizem que, nas noites frias de verão, é possível ouvir cavalos correndo nas encostas e vozes sussurrando o nome de Byron.

Outros juram ver, sob o luar, um homem de uniforme azul olhando o rio, imóvel, com um caderno nas mãos — como se ainda procurasse entender o que a morte tentara lhe ensinar.

Pablo Aluísio. 

Clinton, o Rebelde

Clinton, o Rebelde 
O ano é 1956. Em uma cidadezinha do meio oeste dos Estados Unidos vivia o jovem Clinton. Um cara normal, mas com problemas a mais do que um jovem comum que vivesse em uma família que não fosse tão disfuncional como a dele! 

Clinton não aguentava mais seus familiares. Ele era o mais jovem de dois irmãos. Esse não era realmente o problema. O problema era a família do pai dele. O pai era um dos doze filhos de um velho fazendeiro do interior. Um sujeito tosco, que cuspia no chão. Clinton sempre desconfiou que seu avô tinha algum problema mental. e pela histórias de abusos físicos e mentais que ele ouviu durante toda a sua vida, isso era bem provável de ser verdade. A questão é que por isso seu pai cresceu com problemas emocionais também. 

O pai de Clinton era um autêntico filho da puta! Era um sujeito que vivia do ódio. Ele podia ficar dias sem falar com sua esposa e nem seus filhos. Estava sempre ameaçando sair de casa, deixando todos na miséria. Ninguém realmente gostava daquele sujeito sórdido. Ele aprendeu a ser sórdido com o próprio pai, aquele miserável que estava morto, apodrecido em algum caixão. O velho vinha de uma tradição de miseráveis bastardos. Na pequena cidade onde cresceu todos diziam odiar aquela família. Ninguém gostava deles. Eram vilões, gente ruim, sangue ruim. Ninguém realmente prestava naquela família dos infernos. 

Clinton amava artes. Ele era tão diferente daqueles parentes nojentos dele. Ele queria ser escritor ou artista, mas vivia sendo massacrado. O pai estava morrendo de câncer. O pior é que apesar de estar no bico do corvo continuava sendo o mesmo desgraçado de sempre. A alma era podre. O corpo estava podre agora, também. Não havia salvação para aquele desgraçado filho de uma puta, neto de Lúcifer. Gente ruim, sangue ruim, nem o cemitério queria. Quando morresse era melhor jogar na caçamba de lixo. Era o adequado a fazer. Clinton sabia que seu pai e os parentes familiares eram apenas isso, lixo putrefato! 

- Malditos desgraçados, dizia rangendo os dentes...

Arte e Violência
Clint ainda estava na escola. Ele odiava a escola. Não que fosse um cara burro, mas justamente o contrário. Achava tudo maçante. Ele era inteligente, mas parecer inteligente demais na escola poderia ser perigoso. Ele poderia apanhar por isso. Por isso fingia ser um cara burrão. Um cara forte, sempre pronto a fazer piadas estúpidas com outras pessoas. E como havia sido criado numa família tóxica ele não via nada de errado em detonar os menos afortunados. Ele era um cara escroto, tenha certeza disso. 

Tirava onda com as garotas gordas, os caras magros, qualquer um que não se enquadrasse em um certo padrão. Ele era muito mais alto do que os demais. Tinha quase dois metros de altura. Seu porte chamava a atenção. Um cara brutal, mas ao mesmo tempo com traços delicados no rosto. Poderia ser chamado de um baby face com corpo de brucutu. Isso o poupou de virar alvo de piadas na escola. Quem iria se meter com um grandalhão daqueles?

E no meio da tempestade que era a adolescência, ele se apaixonou por uma garota da escola. O nome dela era Anne. Olhando para o passado não poderíamos dizer que a Anne era uma beldade. Não era. Ela tinha um nariz de suíno e não curtia muitos hábitos de higiene. Era uma falsa loira. No fundo tinha sangue de índios, mas pintava o cabelo e se passava por loira. Clint tinha queda por loiras. Mesmo com as falsas...

Quando se está apaixonado não se vê bem a realidade. Como olhos de catarata você passa a ver tudo de forma embaçada e escura. A Anne não era nenhuma beleza. Tinha pés de crocodilo e não era das minas mais inteligentes da escola. Chegou a tirar um redondo zero na prova de química. Mas é a tal coisa, quando se está sem ninguém, qualquer uma passa a ser interessante. Clint não tinha muito jeito com garotas e ela não era muito inteligente. Mal sabia conversar direito. Por isso as chances de dar certo aquele relacionamento era zero. E terminou assim mesmo, no zero a zero! 

Por um tempo Clint ficou louco por cinema. Ele iria ser louco por cinema a vida toda, mas aquela era uma época especial tanto no mundo do cinema como no mundo da música. Ele curtia arte, acima de tudo. Adorava James Dean e Marlon Brando e era especialmente aficionado pelo tal de Elvis Presley. O cara era demais, unia a imagem dos rebeldes do cinema com a força de sua música. Quem não gostava de Elvis nos anos 50 não era boa praça. 

Clint adorava e mesmo sem ter muita grana procurava comprar todos os discos que encontrava. Tinha uma loja de discos no centro de sua cidade que se chamava Eletropieces e ele estava sempre procurando discos do Elvis na sessão de discos em promoção. Comprou quase toda a sua discografia por lá. Fez uma boa base. Depois foi comprando discos que surgiam do nada. Achou uma boa coleção de discos em caras que vendiam vinil nas ruas mesmo. Ele comprava tudo, embora com uma certa vergonha de comprar discos daquele jeito. Mas não importava, o legal era ter os discos. Colecionar algo lhe trazia grande prazer pessoal. Era um hobbie dos mais agradáveis para a alma. 

Arma!
Clint resolveu comprar uma arma! Um velho revólver 38. Nada muito sofisticado, mas para ele serviria. Estava planejando fazer pequenos roubos em lojas de conveniência nas cidades vizinhas. Nada de roubar em sua própria cidade. Seria facilmente identificado e iria parar na cadeia. Então ele comprou fiado um velho carro Plymouth. Estava caindo aos pedaços, não resistiria a uma perseguição policial, mas daria para pelo menos fugir em lugares remotos. Assim Clint pegou a estrada...

Ele foi procurando nos condados vizinhos pelas lojinhas mais simples, isoladas e remotas possíveis. E que fossem à beira da estrada. A fuga era essencial! Clint não era uma má pessoa. No fundo ele era até mesmo um bom rapaz, mas estava cedendo aos anseios e pressões sociais que caíam sobre ele. Via que vindo de uma família pobre não teria muitas perspectivas em seu futuro, não iria muito longe. Na melhor da hipóteses iria arranjar um empreguinho de salário mínimo num comércio qualquer. Ele não queria essa vidinha... Era jovem, sonhava alto, queria o mundo inteiro!

A criminalidade assim pareceu ser um caminho relativamente fácil para ele. Mal sabia no que estava se metendo! Depois de dirigir muito e vendo que a gasolina estava acabando ele acabou avistando seu alvo. Era uma pequena mercearia. Parou o carro na esquina. Foi dar uma olhada. 

O sujeito do balcão era um tipo brutamontes, cara grande, forte, barbudo! O tipo homem das cavernas. Só que Clint estava armado, não haveria músculos a se impor para uma arma de fogo. 

Ele entrou na lojinha. Cigarro encostado na orelha. Ficou olhando ao redor, por cima dos ombros. O balconista não foi com sua cara. Sabia que era um potencial ladrão dentro de seu estabelecimento comercial. E ele estava certo sobre isso. 

Então Clint se aproximou e pediu uma carteira de cigarros. Quando o balconista se virou para pegar, Clint puxou o revólver. Nunca aponte uma arma de fogo para um homem se não estiver decidido a usá-la! Essa seria uma lição que ele iria aprender da pior forma possível. 

O grandalhão viu que Clint lhe apontava uma arma. Ao invés de levantar as mãos ele se abaixou e pegou um grande taco de beisebol. Clint ficou surpreso com a reação do homem!

- Ei cara, larga essa taco, estou armando, me dê o que eu quero que deixarei você em paz! - Disse Clint, sem abaixar a arma!

- Seu filho da puta, foda-se... - Foram as últimas palavras que Clint ouviu antes de sentir a dor daquele grande pedaço de madeira batendo em sua cabeça...

Clint vacilou, não quis puxar o gatilho, saiu correndo pela porta com o barbudo brutamontes vindo em sua direção...

- Eu vou te matar ladrão filho da puta! - gritou a todo pulmão...

Clint correu e conseguiu abrir a porta. Estava correndo sangue pela sua cabeça. Virou a chave e deu partida...

O comerciante ainda acertou seu para brisas traseiro que ficou estralhaçado em mil pedacinhos...

- Santo Deus! - Pensou consigo mesmo Clint, suado e tentando limpar o sangue que agora escorria pelos seus olhos...

Sua inexperiência como criminoso havia falado mais alto. Ele não tinha como prever uma reação. Pensou e pensou no que havia acontecido. Depois suspirou e não se arrependeu de não ter matado aquele homem furioso. Teria sido muito pior para ele...

Delírio a Dois
Pois é, Clint percebeu que sozinho não iria muito longe. Precisava de um comparsa! Lembrou de Gus, um cara que ele conhecia desde os tempos da juventude, desde o colégio. Gus definitivamente não era uma pessoa normal. Quem o encontrava pela primeira vez logo percebia que ele tinha alguns problemas. Não parecia ser um jovem normal. No fundo, provavelmente, tinha algum grau de autismo ou qualquer coisa, mas naquela situação serviria para Clint. 

Clint foi se encontrar com Gus. Ele estava trabalhando em um posto de gasolina. Péssima era a sua situação desde que o colégio havia chegado ao final. Sem grana, sem perspectiva de ir para uma universidade, tudo o que havia lhe estado era um emprego ruim qualquer. Uma porcaria. Em sua maneira de pensar, Gus estava perdendo grande parte de sua vida ali. Que merda de vida!

Encontrar Clint para ele foi muito legal. Aquele provavelmente foi seu único amigo na escola. Mesmo quando conhecia alguém era por causa do Clint. Sozinho, era um ser nada social, feioso, mal arrumado, com papo estranho. Ninguém queria ser amigo de verdade dele. E tinha a esquisitice. Gus era esquisito. Disso Clint sabia bem, tanto que sempre o deixava longe de sua família. 

Só que Clint sabia que Gus iria servir por um simples motivo: o cara era demente! Ele gostava de dizer que era um cara barbarizante, ou seja, que topava de tudo, até mesmo de fazer atos bárbaros por aí. Se  havia um bom parceiro de crime, Gus seria o cara. Ok, era estranho, diríamos até mesmo bizarro, mas Gus topava qualquer coisa. Era só chamar que ele estava dentro. 

Clint abriu o jogo e contou a Gus o que havia acontecido...

- Porra, porque você não meteu uma bala naquele cara? - perguntou Gus, perplexo com a história que ouvira! 

- Bateu um sentimento de consciência... - Explicou Clint...

- Que consciência, filha da puta, era para apertar o gatilho, mandado o grandalhão para o inferno, sem dó e nem piedade, porra que merda! - Gus estava indignado!

_ Eu sei, eu sei...

- Você poderia ter morrido, se o cara lhe acertasse com um bastão de beisebol, você já era, bicho! Vamos voltar lá, quero matar esse filho da puta! - Gus, realmente não queria nem saber das consequências...

- Calma aí... Não quero voltar lá! Temos que ter outro plano de roubo, de assalto, mas em outro lugar... tem que ser algo mais planejado sabe, nada de sair na base da sorte, da cara ou coroa... tem que encontrar o lugar certo, encontrar a ocasião perfeita para isso e correr o menor risco possível...

- Ok, cara. Se você pensa assim, estou dentro! Vamos dar uma olhada por aí qualquer dia, eu estou dentro! - Gus realmente não dava para trás. 

- Certo, vamos planejar, mas tem que ser em outra cidade. 

Um delírio a Dois estava para começar!

Delírio a Dois (continuação)
Clinton e Gus passaram as semanas seguintes varando estradas e pequenos motéis, planejando roubos mais “profissionais”. Roubos de conveniência davam pouco; queriam algo maior, um caixa eletrônico isolado, ou um carro-forte que passasse por uma rodovia secundária. Eles discutiam rotas, horários, a melhor forma de desaparecer depois do golpe. Clint, por baixo de toda a bravata, ainda sonhava com cinemas escuros e roteiros que nunca escrevera. Era esse sonho — uma chama pequena — que, vez por outra, vinha à tona quando a adrenalina baixava.

Gus, por sua vez, empolgava-se com cenas de violência antecipada, com a idéia de domínio e poder. Não havia método nas obsessões dele, apenas fervor. Numa madrugada, junto a uma janela empoeirada, ele confessou que gostava de assistir a filmes de assalto de novo e de novo, memorizando cada detalhe. “A vida real é melhor”, disse, e sorriu como quem não mediu as consequências.

O plano que escolheram foi simples e arriscado: um carro-forte que abastecia um banco num pequeno vilarejo a trinta milhas de onde haviam nascido. Choque e fuga, emprego de máscaras, um carro abandonado num celeiro vazio à margem da estrada como ponto de reunião. Tudo parecia bem traçado. Só que, como em todos os filmes que Clint tanto admirava, o real nunca segue o roteiro. Havia algo que eles não haviam previsto: a coragem enfurecida do balconista e o mundo pequeno onde todo boato vira notícia.

A notícia de tentativas de assalto circulou rápido. O homem do mercearia contou tudo — as feições do ladrão, o carro — e em pouco tempo a polícia regional montou barreiras nas estradas. Um desses policiais, veterano de turnos longos, reconheceu a descrição de Clinton a partir de um cartaz informal que circulava entre as delegacias: um grandalhão de quase dois metros, expressão dura. Quando Gus e Clint chegaram ao ponto combinado, foi a vez da sorte virar o rosto.

Eles foram observados primeiro por luzes distantes, então por sirenes. Um bloqueio improvisado fechou o caminho. Clinton pisou no acelerador e sentiu o motor do Plymouth roncar como um animal encurralado. Gus, em pânico, bateu no painel, olhos arregalados. Havia mil coisas a dizer e nenhuma delas adiantaria. Eles tentaram contornar por um atalho de terra, rasgando o mato, o carro tossindo, a poeira subindo em nuvens.

Não houve tempo para grandes decisões. Homens armados emergiram da sombra: agentes da lei de duas delegacias, alguns estaduais, claramente preparados para algo mais grave do que um simples confronto com ladrões de beira de estrada. Havia ordem, havia nervos de aço, e havia armas automáticas apoiadas por braços que não tremeram. Clinton viu a formação ao longe e percebeu, em um frio fulminante, que aquilo não terminaria com algemas.

O primeiro clarão foi seco e alto. Metralhadoras, apontadas por profissionais, abriram fogo — rajadas curtas, precisas, arpoadas pelo ar que cheirava a pólvora. Não houve cena de heroísmo cinematográfico, nem troca de olhares dramática. Houve apenas a máquina de chumbo e o corpo no volante tentando, por instantes, entender a velocidade da queda. Bullets ricochetearam na lataria, estilhaços voaram, o Plymouth derrapou, bateu em uma vala e parou. Quando a guarnição avançou, o calor da batalha já havia esfriado o campo; havia apenas a respiração curta dos que ali ficaram de pé.

Clinton não teve discurso final. Não olhou para o céu em busca de redenção nem reconheceu seus erros em palavras. Caiu numa espécie de silêncio bruto, interrompido pela rotina profissional dos que chegaram depois: combates terminados, perímetro isolado, papéis a preencher. Gus, atordoado e gritando coisas desconexas, foi imobilizado. De algum jeito, no meio do fogo e do pânico, todas as pequenas vontades de Clint — escrever, fazer arte, escapar da família — pareceram tão banais quanto notas amassadas ao vento.

Quando a notícia chegou à cidade, os moradores sussurraram as versões num café e numa igreja: o grandalhão que quis ser bandido, a traição do destino, a violência que retorna sempre à mesma mesa. Alguns celebraram a ordem restabelecida; outros, mais calados, lembraram-se de um rapaz que uma vez fora visto na vitrine da loja de discos, olhando um álbum do Elvis como quem vê um mapa para outro mundo.

No fim, Clint morreu como entrou no crime: sem grandeza, sem glórias. A máquina do Estado fez o que achou necessário para encerrar a ameaça naquele dia — um desfecho seco, mecânico, prático. Para quem sonhava cinema, resta apenas a tela escura. E para os que ficaram, restou o vazio: a pergunta de sempre sobre quando a ferida da violência irá parar de gerar mais violência.

Gus acabou na cadeia. A família de Clinton, com suas feridas antigas, fechou-se sobre si mesma, como quem recolhe uma casa após um incêndio. E a pequena cidade voltou à sua rotina, com o zumbido baixo do calendário e as portas que se fecham às seis da tarde, como sempre fizeram. Ninguém esqueceu totalmente — esquecer é privilégio de quem não conhece o peso de uma bala —, mas, com o tempo, as conversas mudaram de assunto.

No fim das contas, ficou a lembrança amarga de um jovem que queria arte e encontrou violência; um menino de quase dois metros que, por erro de cálculo e por um coração remendado, terminou por ser consumido por uma sequência de decisões que ele, sob outras circunstâncias, talvez tivesse evitado. E assim termina a história de Clinton: não com um épico, mas com a fragile e definitiva questão de que alguns sonhos, quando atropelados pela raiva e pela pressa, terminam antes de começar.

Pablo Aluísio. 

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O Lobo da Escócia

Prólogo - Nos Tempos Romanos
Sempre existiram lendas e mitos nas terras altas escocesas. O clima frio e hostil e aquelas terras onde ninguém morava dava mesmo margem para o aparecimento desse tipo de história. Já nos tempos em que as ilhas britânicas estavam sob dominação romana, se dizia que nenhum legionário do império deveria subir muito ao Norte pois a morte o encontraria de forma certeira. Isso impressionou os comandantes romanos que apesar de formar uma casta de homens bravos, não se encorajavam a ponto de enfrentar forças sobrenaturais que eles não conheciam. 

Nessa época remota surgiu a história de Lupus, um monstro, meio homem, meio lobo. Dizia-se entre os romanos que certa vez uma patrulha foi muito ao Norte e acabou se perdendo naquelas terras sem fim. Com a chegada da noite, eles precisaram levantar acampamento para no dia seguinte tentar voltar para sua legião. Entretanto isso não iria acontecer. 

Não se trataria de um lobo selvagem comum, nada disso. Estava mais para um ser sobrenatural. Os romanos já tinham se deparado com esse tipo de lenda quando entraram nas florestas geladas da Germânia. Os povos bárbaros que lá habitavam diziam que existia uma entidade meio homem e meio lobo que vivia dentro das florestas mais escuras e que nenhum ser humano deveria adentrar seu território pois isso iria contra a vontade dos deuses. 

A velha lenda era interessante. Quatro soldados romanos acabaram em uma região aberta, perto de um lago de águas cristalinas. O lugar era bonito, afastado e selvagem. Não havia alma viva por perto, em quilômetros de distância. As altas montanhas ao redor deixavam claro que aquele era um penhasco de muitos ventos. Vento frio, de gelar a alma de qualque mortal. E os romanos não estavam definitivamente prontos e nem vestidos adequadamente para aquele tipo de clima feroz. Sem dúvida era necessária uma roupa melhor, com muitas peles, para agüentar aquele frio intenso. 

Apesar da situação nada calorosa, os romanos finalmente escolheram um lugar que acharam o mais adequado. Grupo pequeno, que precisava ficar atento. Um deles ficou de guarda pela madrugada. Não adiantou muito. Lá pelas três da manhã se ouviram os primeiros uivos. Aqueles soldados sabiam muito bem como soava um lobo na noite. Só que aquilo parecia diferente, uma mistura do som natural do lobo, com crianças chorando e nítidas sonoridades de um grito humano. Era de arrepiar. 

Não tardou muito para o pior. Eles foram violentamente atacados durante a madrugada. Uma besta caiu sobre eles de forma avassaladora. Muito se comentou sobre as forças que atuaram naquele ataque formidável. Dois legionários tiveram suas cabeças arrancadas, seus elmos destruídos. Um outro ainda tentou fugir em disparada, mas parou ao sentir que longas garras entravam em suas costas, arrancando seu coração. Um barbarismo como nunca se viu!

Nem o fato de estarem portando armas mortais, como espadas, lanças e escudos, ,serviu para que pudessem se defender. O ataque foi tão violento e rápido que mal conseguiram perceber o que estava acontecendo com eles! Parecia uma força vinda diretamente das entranhas do inferno. Aquele monstro não era natural, da natureza. Era algo pior, mais sujo, mais violento. De seus grandes dentes escorria uma baba pegajosa, muito mal cheirosa. Os romanos conheciam a Raiva, uma doença que atingia cães e lobos, mas aquilo era diferente. Era algo mais nocivo, mais putrefato, era o bafo da morte, o cheiro das profundezas do Hades. 

O ataque durou poucos minutos. Em questão de momentos, todos os legionários estavam mortos. Os corpos caídos ao chão foram dilacerados. Suas entranhas foram comidas com ferocidade. Aquele animal certamente estava com muita fome e não distinguia entre uma ovelha ou um ser humano. Tudo era comida e a fome era enorme. Havia também elementos de crueldade extrema, como amputações de pernas e braços dos militares. As armas ficaram para trás, no chão, sem serventia. Certamente aquele monstro era irracional. Se fosse o ataque de inimigos certamente as armas teriam sido levadas. E os romanos sabiam que havia tribos bárbaras naquela região, mas não era esse o caso.

Os romanos que chegaram no acampamento duas semanas depois ficaram chocados com o que encontraram. Restos de braços, pernas e equipamento militar espalhados por todas as áreas. A fera que os atacou não apenas tirou suas vidas, mas comeu parte de suas carnes. Canibais! Os romanos já tinham enfrentado todos os tipos de bárbaros ao longo de sua história, mas nunca tinham se deparado com nada parecido com aquilo. O comandante do grupo de resgate ficou chocado e amaldiçou o homem ou o animal que fez aquilo! Por Júpiter, nunca se vira algo assim antes!

Relatórios militares logo foram escritos e levados para a cidade eterna. Em Roma não se falava em outra coisa. Pelos becos da capital do império todos estavam comentando sobre monstros vivendo na ilha da Bretanha. Aquele lugar escuro, onde sempre parecia chover, realmente não era uma terra das mais amistosas. As lendas envolvendo monstros sempre fizeram parte da cultura romana. Dizia-se que os mares eram infestados de monstros marinhos. Só não se sabia até aquele momento que em terra também havia esse tipo de fera feroz!

Depois disso os romanos resolveram parar os avanços para o Norte. O imperador Adriano ficou particularmente chocado e mandou trazer os sábios do império para discutir sobre o assunto com ele. Estava intrigado com o que ouvira. Os sábios lhe disseram que essa história já havia sido contada antes quando legiões foram para a Germânia. Provavelmente seria o mesmo tipo de besta. 

O imperador Adriano ainda ouviu os sacerdotes dos templos de Júpiter. Eles relembraram de antigos mitos gregos como o Minotauro. O imperador tinha uma grande curiosidade sobre tudo o que dizia respeito à cultura grega. Por isso ouviu tudo de forma muito atenta. Certamente poderia ser um caminho a seguir. Provavelmente como o Minotauro aquela besta seria um castigo dos deuses contra alguma subversão dos homens que ali viviam, Os romanos apenas não tinham tido o conhecimnto de tudo o que havia acontecido. 

Finalmente depois de dias debatendo o tema com sábios e religiosos, Adriano finalmente se dirigiu ao Senado romano. Uma decisão política deveria ser tomada sobre o tema. E para isso ele precisava ouvir seus senadores. Deveria enviar mais tropas para o Norte ou recuar, decidindo que nenhum romano deveria mais colocar os pés naquelas terras amaldiçoadas, essa era uma dúvida válida naquele momento .

Adriano então sentou no centro do senado e ouviu seus senadores. Ouviu e ouviu de novo tudo o que cada um deles tinha a dizer. E levou em consideração todas as opiniões. Então ele tomou sua decisão e mandou erguer um muro para o qual nenhum romano deveria passar além. As muralhas de Adriano ainda se erguem em grande parte do Norte da Bretanha, no local basicamente onde está a fronteira entre a Inglaterra e a Escócia de nossos tempos. 

Foi uma forma de proteger seus soldados, seus exércitos. A Roma imperial estava pronta para enfrentar qualquer inimigo, de qualquer lugar remoto do mundo, mas o imperador não estava disposto a perder seus homens para feras desconhecidas, que pareciam ter uma grossa pele que resistia até mesmo a ataques de espadas e lanças. Ele não queria ir tão longe. Em se tratando da ilha da Bretanha, os romanos estavam satisfeitos com o que tinham tomado. Não era necessário ir tão ao longe daquele lugar frio, escuro e assustador. Então Adriano tomou sua decisão e editou seu decreto. Dois novos generais foram enviados até lá para a construção do muro. E ele ficou satisfeito com a decisão que havia tomado. 

E a lenda sobreviveu, pois antigos textos romanos foram encontrados contando justamente essa história. Relatórios militares que foram enviados para o Imperador em Roma. A lenda de um homem lobo que atacava e matava todos os que ousavam ultrapassar seu território. Ninguém poderia sobreviver após aqueles terríveis acontecimentos...

E o monstro seria conhecido nos séculos que viriam. Toda uma mitologia então foi criada pela literatura de terror, algumas dessas baseadas em ataques reais que aconteceram ao longo dos séculos. Ao lado de outros monstros clássicos, como vampiros e criaturas dos mais diferentes tipos, a lenda dessa fera atravessou séculos, entrou para a cultura e folclore de povos tão diversos como os do leste europeu ou da América Latina. Até mesmo povos orientais cultuaram seus monstros híbridos de lobos e homens. Pelo visto algo aconteceu no passado, sedimentando todas essas histórias que se contavam. E a seguir passaremos a contar uma delas, das mais assustadoras que se tem notícia pois foi bem documentada pelos cronistas da época vitoriana. 

O Coveiro
Estamos no século XIX. Para ser mais exato em 1873. Jack Boyd é um homem que para muitas pessoas não passa de um sujeito asqueroso. Ele trabalha como coveiro na cidade de Newtown. Lugarejo que parece nunca ter saído da estagnação, embora fosse relativamente perto da capital. Ali muitos estudantes de medicina, da classe alta, iam em busca de passar algumas noites nos bares e prostíbulos do lugar. As mulheres tinham fama de serem bonitas. Afinal mulheres bonitas que serviam nas tavernas se tornavam alvo fácil para gaviões endinheirados da capital escocesa.

Entre eles estava Mark MacAlister III, filho de uma família tradicional. Jovem de apenas 20 anos, fazendo o primeiro ano do curso de medicina. Ele não sabia, mas seu destino iria cruzar, pelas vias tortas do acaso, com o coveiro Jack. Para completar o trio de pessoas importantes naquela noite havia Katja Boyd, a jovem de aparência russa que trabalhava na taverna Devil In The Heart. Mark era louco por ela, já a tinha levado para a cama algumas vezes, mas sempre com um tipo de impessoalidade que o incomodava.

Ele sabia que aquela garçonete de corpo maravilhoso era também disponível, pronta para fazer companhia noite adentro a quem pagasse bem. Um relacionamento do jovem futuro médico com uma mulher considerada de classe inferior era algo impensável para a tradicional família MacAlister. Nem em sonho isso iria acontecer. porém Mark estava literalmente caído por Katja. Algumas vezes viajava toda a noite de carruagem apenas para vê-la. E aqui temos o primeiro elo de ligação entre o promissor estudante de medicina e o coveiro asqueroso da cidade. Katja era sobrinha de Jack.

No começo Jack passava pela madrugada para pegar a sobrinha e levá-la em segurança pelas ruas escuras da cidade. Numa dessas ocasiões conheceu o acadêmico em medicina que estava apaixonado por ela. 

- "Bem rapaz, você então vai ser médico?" - Jack perguntou acendendo seu cigarro de palha, enquanto olhava Mark com os olhos semicerrados - "Eu conheço alguns médicos da faculdade de Edimburgo" -o sorriso irônico não escondia a acidez de seu comentário. Era como se ele dissesse "Eu conheço aquela gente, aqueles porcos de jalecos brancos!". No passado Jack havia vendido corpos humanos para professores e médicos da universidade. Claro, era um crime abominável, ele vendia cadaveres frescos de pessoas pobres e indigentes para os doutores. Era uma forma de estudarem a anatomia humana com mais precisão.

A revelação obviamente chocou em um primeiro momento o jovem Mark. Era algo sinistro, porém isso numa visão das pessoas comuns, do homem médio. Ele iria ser um homem da ciência, um médico, por isso embaixo do rosto espantado havia também um pensamento racional do tipo "Eu entendo esse tipo de coisa, eu posso aceitar essa situação que para muita gente é sinistra e nebulosa". Ora, ora, Mark e Jack então decidiram tomar uma bebida. Tudo pago pelo jovem. Afinal ele queria conquistar também o tio, pensando em levar mais uma vez para cama sua sobrinha, Katja, mulher de seus sonhos mais inconfessáveis. Então ele olhou diretamente nos olhos do velho coveiro e lhe disse com convicção: 

- "Eu posso conviver com isso! Eu entendo meus colegas! Eles fizeram tal coisa pela ciência". – Sim, o jovem estudante parecia firme em seu ponto de vista. 

A noite de bebedeiras continuou até o dia seguinte. Lado a lado a fina flor da sociedade escocesa, um estudante de medicina jovem, o melhor que se poderia esperar de um rapaz. Do outro lado um coveiro, considerado um dos tipos de trabalho mais brutais e rudes que se poderiam imaginar, isso claro, sob um ponto de vista da elite burguesa e intelectual. Porém por mais diferentes que fossem acabaram se aproximando, se tornando, pelo menos naquela noite, bons amigos.

Mark gostava de beber. Embora tivesse que estar na universidade pela segunda de manhã, ele passava os fins de semana nas tavernas mais obscuras daquele lugar. Entre uma poesia e outra ele enchia copos e mais copos de whisky. Entre devaneios puxava conversas envolvendo lutas, sexo e até sobre o sobrenatural. Tudo o que ele não falava entre as elegantes e elitistas salas de aula da universidade. Afinal o ambiente universitário não abria margens para esse tipo de conversação, considerada de baixo nível, de péssimo gosto.

O coveiro Jack lhe contou algo curioso. O cemitério tinha sua própria "fauna" noturna, pessoas envolvidas com religiões e rituais pagãos de magia negra. Com a igreja pressionando os adeptos desses cultos de ocultismo só sobravam mesmo as ruelas entre os túmulos onde eles podiam fazer seus rituais macabros, durante as madrugadas escuras. Mark ficou surpreso em saber da existência desse submundo. Ele pensava até aquele momento que o cristianismo havia varrido da Europa esse tipo de ocultismo. Porém havia muito mais sobre as sombras que ele nem poderia imaginar. O velho paganismo de um passado remoto ainda existia entre a população daquela região.

Jack se referia a todos eles como "as criaturas da noite" ou "as crianças da noite", um pequeno feudo de pessoas que flertavam perigosamente com as forças do outro lado. Não as forças das luz, mas sim as forças das sombras. Jack, ás vezes, assistia tudo de longe, escondido em alguma penumbra. Havia muitas invocações, bebidas estranhas eram tomadas pelos participantes e de vez em quando alguma presença maligna chegava a ser sentida. Seus superiores tinham dado ordem para ele expulsar todos que encontrassem para fora do cemitério, mas Jack era um homem prático. Enquanto não houvesse aberturas de túmulos ou violações de corpos, ele tolerava aquela presença. Afinal, se havia alguém culpado em profanar túmulos naquele lugar era o próprio Jack, como ele já havia confessado.

A Universidade de Medicina
Mark retornou para a universidade pela segunda de manhã. Era a volta à velha rotina estudantil. De fato o curso de medicina era extremamente puxado, um choque de realidades envolvendo a esbórnia dos fins de semana e as aulas intermináveis da semana. Para aliviar um pouco o stress de passar o dia correndo pelos corredores, indo de uma sala de aula a outra ele se reunia com seus amigos na parte da noite na área externa do campus. Ali eles bebiam um pouco, conversavam sobre o mundo, recitavam poesias. Gostavam de se ver como um clube de literatura. Membros da fina flor intelectual escocesa, era natural que levassem aquele estilo de vida dândi. Todos adoravam Lord Byton e conversavam sobre sua história pessoal fora dos padrões. Era o ídolo dos jovens da época. 

Ao lado de Mark estavam sempre seus bons amigos, John Robinson e William Clark. Todos jovens como ele, ali na faixa dos vinte e poucos anos. Tinham a vida toda pela frente. Robbie e Bill (seus apelidos dentro do grupo de amigos) sempre ficavam intrigados e interessados nos relatos de Mark. O que ele teria aprontado no fim de semana? Nesse dia em particular Mark tinha mesmo muito o que contar. Ele havia conhecido o velho tio da garçonete pela qual ele era apaixonado. Um senhor que trabalhava como... o coveiro da cidade! Estranho, muito estranho.

Porém a ideia ali era mesmo relaxar, contar algumas piadas, ouvir histórias bizarras, tudo para passar o tempo. Mark lhes contou que o velho havia flagrado pessoas andando pelo cemitério na madrugada, fazendo rituais de velhas seitas pagãs. Robbie, assim como havia ficado Mark, simplesmente não acreditou que ainda havia paganismo na Escócia! Era surreal. Aliás, eles como estudantes de medicina, estavam obviamente mergulhados em pura ciência. Sentimentos religiosos eram encarados como crendices populares, uma herança distante de um tempo que para esses jovens que se sentiam imortais não trazia mais nenhum sentido. Talvez apenas uma curiosidade sociológica. Nada mais do que isso.

Robbie provocou. Quem sabe eles não poderiam por pura farra ir para o cemitério à noite para ver com os próprios olhos esses "medievais". Seria divertido, engraçado, bizarro, tudo ao mesmo tempo. Além disso, ia trazer uma anedota para que eles pudessem contar pelo resto de suas vidas. A ideia empolgou os dois amigos, mas Mark ficou com um pé atrás. Afinal o velho coveiro era o tio da garota pelo qual ele estava caidinho. Valia a pena se queimar assim? Só pela farra de seus colegas de universidade? Era muito arriscado, mas nessa idade quem pensa com seriedade? É um jogo divertido de cartas meu caro.

A semana transcorreu sem maiores problemas. Havia muitas aulas e naquele semestre em particular Mark estava prestando praticamente todas as matérias sobre anatomia. O corpo humano o fascinava. Ele tinha aquela máquina da natureza como um conjunto perfeito o que em sua opinião exigia a presença de um criador. Anos antes do advento da inteligência de design, Mark já ficava pensativo sobre tudo o que aprendia. Desde a menor célula, até o mais bem organizado e complexo membro ou órgão, tudo tinha sua função. Não havia espaço para o inútil dentro do nosso corpo. Era fabuloso. Para Mark havia uma inteligência por trás de tudo aquilo. Não poderia ser mero acaso, definitivamente não haveria como!

Durante a semana Mark se comportava como um estudante de medicina exemplar. Ele tinha boas notas, era considerado um aluno inteligente pelos professores e se revelava uma pessoa bem sociável entre os colegas de universidade. E freqüentar uma universidade naquela época era mais do que um privilégio. Era um verdadeiro sinal de que assim que formado haveria empregos, bons salários e um futuro promissor pela frente. E para isso não era necessário ser o mais inteligente dos homens. Se o jovem médico optasse por morar no interior, em pequenas cidades, ele também teria uma vida de privilégios, pois os médicos eram ao mais bem pagos por onde passavam. Era uma vida cheia de promessas no futuro, um sensação de sucesso enchia a todos de orgulho.

Claro, naquele meio também existiam os patifes, os pequenos canalhas e os assumidamente escroques. Todos eram, em maior ou menor grau, filhos da elite escocesa, pois o curso exigia vários anos de estudo e era necessário para isso uma família abastada e rica por trás. Os livros custavam pequenas fortunas e manter um estudante de medicina naquele tempo custava caro. Só as famílias mais ricas podiam dispor desse privilégio.

E no plano de futuro brilhante também havia a expectativa que o jovem médico escolhesse uma bela dama para se casar. Uma moça de família de sobrenome, a mulher que seria a ideal para um jovem médico em começo de carreira.

Era justamente isso que Mark mais temia. Ele era apaixonado por Katja, a garçonete sobrinha de um coveiro. Impensável para sua mãe ter uma nora assim. Ele podia inclusive ouvir a voz de sua mãe berrando em sua mente numa hipotética situação dela um dia vir a descobrir tudo. Era enervante. A mãe dominadora provavelmente teria um colapso nervoso caso viesse a saber que Mark, seu filho motivo de orgulho, era apaixonado por uma mulher como aquela. E o que dizer de seus excessos na bebida?

Conforme a semana ia chegando ao fim Mark começava a salivar, a sentir um enorme desejo de tomar uma bebedeira. Ele sabia que isso era sintoma de que provavelmente ele iria desenvolver nos próximos anos um alcoolismo crônico. Porém é a tal coisa, quando se é jovem e se tem o futuro pela frente, tudo é possível, nada parece ser trágico, cinza ou negro em seu futuro. Tudo parece brilhar, é claro. Só que contra fatos não há argumentos. Mark sentia a abstinência. Assim quando mal acabavam as aulas na sexta-feira pela tarde, ele corria, subia em uma carruagem e ia para o interior, freqüentar as piores e mais esfumaçadas tabernas. Ele queria se esbaldar, com muito álcool, sexo pago e aquele clima de vida boêmia decadente e depravada que ele tanto amava.

E sim, havia ainda Katja, seu amor proibido. Mark não via a hora de se deitar com ela, ficar enrolado em seus braços, sentir aquele cheiro de perfume barato que tanto o excitava. Era um paradoxo. Quanto mais Katja parecia vulgar e dissoluta, mais ele parecia se apaixonar por ela. Quanto mais ela quebrava convenções, mais ele se derretia. Psicologicamente era um portão de liberdade. Liberdade de se ver preso a semana inteira na imagem de jovem impecável, de jovem promissor. Ele queria a esbórnia, queria a embriaguez. Viver uma vida como Lord Byron, seu maior exemplo!

O Cenário do Crime
 Naquela manhã o pequeno diário da cidade estampava em sua página principal uma notícia bem perturbadora.  O corpo de uma jovem havia sido encontrada nos bosques, bem ao lado da propriedade rural do velho senhor McBride. O inspetor Robertson estava intrigado. Em mais de 40 anos de serviço policial ele não havia visto nada igual. Ela estava virada de bruços, havia sido atacada de forma avassaladora. Suas roupas estavam rasgadas e o cenário não era bonito de se ver. 
 
Sua mandíbula estava arrancada. O rosto ainda traia expressões de dor, de desespero. O velho policial chegou até perto do corpo, acendeu seu charuto e olhou ao redor. O ataque havia sido premeditado, feito de surpresa. O agressor ou o animal pulou em cima da vítima em questão de segundos. Não havia como se defender. O velho policial viu o lugar de onde o assassino surgiu pois as folhas estavam quebradas no meio da mata. E ali havia uma pequena trilha, pequena demais para um homem robusto, ideal para um lobo. 

Não demorou muito e reconheceu as pegadas da fera. Eram bem maiores dos que os camponeses estavam acostumados a ver. Se era mesmo um lobo então era de uma nova espécie desconhecida, ou então era de algum animal exótico que havia sido trazido ilegalmente para aquela região e havia fugido de seu cativeiro. Então a situação se colocou em seu ponto de vista. Era, pelo menos naquele momento, o ataque de um lobo selvagem, desconhecido da fauna comum que existia naqueles bosques. 

Ao perceber que um jornalista havia chegado ao lugar, o velho inspetor determinou que seus policiais agissem rápido, que levassem o corpo da mulher morta para o departamento de polícia. Mesmo com a pressa, não escapou de ser interrogado pelo repórter que queria novidades. 

- Inspetor o que aconteceu aqui, alguma informação para os leitores de nosso jornal? – Foi logo indagando o velho policial cansado da vida. 

O policial parou, acendeu o fogo de seu charuto e respondeu ao jornalista

- Eu vejo aqui um cenário de crime, talvez, de uma jovem mulher assassinada. Penso, em uma visão preliminar, que se trata de um ataque de um animal selvagem. Um animal com porte físico bem maior do que o normal. Não temos maiores informações do que isso. Só o tempo e as investigações vão revelar mais sobre esse caso – Finalizou o veterano, agora envolto nas nuvens de seu charuto. Então deu as costas e voltou para sua delegacia. Era um caso novo e muito complicado de se resolver, disso ele tinha plena consciência. 

Fúria
Naquele mesmo fim de semana, Mark finalmente resolveu que iria até o cemitério, tarde da noite. Queria ver o que se passava. Já meio embriagado, ele partiu ao lado de Katja pelas ruas escuras da cidade.

- Vamos encontrar seu tio – vamos lá! – gritava Mark enquanto caminhava. Ele via as pedras das calçadas brilhando ao luar.

- Fale baixo, cala a boca, vão nos prender por arruaça – devolvia Katja com os braços de Mark em seus ombros.

Ele tinha uma garrafa de whisky numa das mãos e na outra segurava Katja com força. Imaginem o escândalo caso sua nobre família o visse daquele jeito. O tio de Katja estava de plantão naquela madrugada. Era a velha história dos adeptos de ocultismo e paganismo invadindo o cemitério de noite para fazer seus rituais. Havia até mesmo adeptos de uma nova linha religiosa francesa, que havia sido compilado em um livro de sucesso chamado “O Livro dos Espíritos”. O autor? Um professor desconhecido que havia adotado o nome de Allan Kardec.. O velho professor acreditava em toda aquela nova doutrina baseada na existência de espíritos de pessoas falecidas. A consciência que sobreviveria até mesmo à morte física. Era uma nova idéia que intrigava as pessoas daqueles tempos. 

A entrada no cemitério foi tranquila. Os velhos portões enferrujados estavam entreabertos.  Era um velho cemitério decrépito, com suas antigas lápides, encobertas por vegetação rasteira. Aquelas pessoas tinham morrido há muitos anos. Provavelmente seus familiares também estavam mortos. Assim não havia mais quem se importasse com os túmulos. Com o abandono a natureza voltava a tomar conta. Após a morte, o esquecimento é um fato que virá, mais cedo ou mais tarde. É o trágico destino de cada pessoa que viver nesse mundo.

Era aquele clima de abandono e solidão. Aqueles nomes nas pedras já não significavam nada para ninguém. O tempo, senhor de tudo, já havia de certo modo apagado da memória dos vivos a história daquela gente que jazia sete palmos abaixo da terra. Quem foram? Quem eram? Quais eram suas personalidades? O que faziam quando eram vivos? O que pensavam? Tudo havia se perdido nas areias do tempo. Dizem que nenhuma alma se apaga. É uma visão romântica. A maioria das pessoas terá suas memórias apagadas para todo o sempre. As ditas pessoas comuns serão esquecidas. Suas pegadas serão apagadas. Nem seus descendentes vão se lembrar delas após alguns anos. A morte é a morte também da lembrança, da memória.

E no meio desses pensamentos melancólicos Mark e Katja foram adentrando pelas ruelas do velho cemitério decrépito. Ela olhava acima dos ombros em busca de seu tio. Ele, meio bêbado, não estava preocupado. Tinha o calor do corpo de Katja ao seu lado. Era tudo o que ele queria na vida, no final das contas. Foram andando, andando, de vez em quando se lia algum nome de algum morto até que...

Eles ouviram barulhos. Pareciam tambores. Parecia gente cantando uma música estranha. Eram os pagãos, com certeza. Mark colocou o dedo sob a boca, fazendo aquele gesto de “silêncio” que todos conhecemos. Havia uma fogueira, se via pela claridade do fogo no meio da escuridão da noite. Mark e Katja foram em sua direção, se agachando um pouco para que ninguém os visse. Era um misto de aventura, mistério, tudo junto. Embiaguez de sentidos.

Ao subirem o pequeno morro viram então a cena. Eram de cinco a seis mulheres. Elas dançavam ao redor do fogo. Gritavam e cantavam numa língua estranha. Parecia um velho idioma dos druidas. Era obviamente uma cerimônia antiga, uma coisa de invocação de espíritos da natureza. Era o que os antigos costumavam chamar de bruxaria. Se fosse ainda os tempos da santa inquisição aquelas mulheres seriam queimadas na fogueira com toda a certeza.

Elas pareciam invocar o nome de deuses ancestrais. Nomes que Mark desconhecia, mas que soavam um pouco familiares. Eram nomes de deuses caídos, ditas por seguidoras de divindades antigas que a igreja tentou apagar por séculos. O que aquelas mulheres queriam com aquele ritual? Era exótico, estranho, tudo ao mesmo tempo. Claro, havia ali também um prato servido para sociólogos e teólogos em geral. Afinal ver um bando de mulheres nuas dançando em volta de uma fogueira, com instrumentos desconhecidos nas mãos, invocando antigos nomes de deuses, definitivamente não era algo que se via todo dia.

Na realidade aquelas mulheres pagãs cultuavam as forças da natureza. A força das árvores antigas da floresta, do espírito dos animais selvagens, inclusive daqueles que já não existiam mais. O homem, um ser frágil, na realidade, mal conseguia compreender a força que provinha da natureza. Fazia todo o sentido. Tudo era natureza, desde o mais simples organismo, até os grandes astros do universo. Não havia na existência forças maiores do que essas. 

E entre o conhecido e o desconhecido pela ciência, realmente existia uma grande esfera de criaturas ainda não estudadas pelos cientistas. E essas criaturas estranhas pareciam reagir bem àqueles rituais, talvez algo inerente ao seu próprio organismo. Algo herdado de seus ancesttrais mais remotos na história. Antes mesmo do surgimento do homem no continente europeu. 

Até que Mark ouviu um barulho vindo do meio da escuridão das árvores. Parecia uma fera grunhindo de fúria perto de atacar. Era um rosnado aterrorizador, é verdade. Mark colocou as mãos sobre o paletó e percebeu que estava totalmente desarmado. Se aquele bicho resolvesse atacar, ele não teria nem ao menos como se defender... Se havia momento para ter medo, bom, aquele era a hora certa para isso...

O Lobo Cinzento
 Chorem crianças da noite, chorem! - Mark conseguiu ouvir essa ladainha bem no meio da tensão. Uma criatura estranha o enxergava por entre as árvores. Árvores de cemitério. Velhas, longas, sinistras... Um velho lobo cinzento com as marcas de luta por todo o seu corpo! O animal foi se aproximando, mas ainda sem se revelar. Era algo não natural. Parecia um lobo, mas de porte extremamente avantajado. E aqueles olhos vermelhos, bem, aquilo não lhe parecia familiar? Era a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. A fúria e a violência. Nada de paz provinha daquele bicho.

Então ele se colocou por fora das sombras. A luz do luar iluminou a cabeça daquela insana visão. Mark ficou em alerta. Ele não queria fazer um gesto brusco porque isso poderia assustar aquela criatua da noite! E então o animal começou a rosnar, a rosnar, era o prelúdio de um ataque iminente. Mark percebeu que tinha apenas alguns segundos e então... o pulo fatal!

Ele se esquivou, mas não escapou de ser machucado pelas garras da fera. O sangue escorria em seu ombro. Mark então se abaixou e pegou uma pedra enorme, provavelmente pedaços de uma lápide secular. Ele ficou jogando a imensa pedra de mão em mão, olhando a besta nos olhos. Era uma dança corporal que passava a mensagem que haveria reação, que caso fosse atacado ele iria revidar. Besta dos infernos ou não, cão de Satã ou não, haveria luta. Mark, cerebral, agiu como se tivesse pronto para a guerra com seu opositor.

O animal deu uma segunda investida e cravou os dentes no ombro de Mark. Ele caiu ao chão, viu de perto os dentes da fera pingando com seu sangue. Com adrenalina a mil, nem pensou duas vezes e bateu a pedra na cabeça do bicho. Deu certo. A pancada surtiu efeito e o monstro saiu em retirada. A violência e a força do ataque acabaram chamando a atenção de todas as pessoas que estavam no cemitério, até mesmo das garotas pagãs que se vestiram e saíram correndo em direção a Mark para prestar socorro.

Ele caído no chão, com a roupa rasgada e o sangue escorrendo pela camisa.  

- O que aconteceu? O que aconteceu? - gritavam as aprendizes de bruxas pagãs. 

- Fui atacado por um lobo! - Respondeu Mark, ainda desnorteado pelos acontecimentos. Apoiado nas meninas, ele se levantou. Sacudiu para tirar a areia. Areia de cemitério. A mesma que era jogada em cima dos caixões putrefatos dos corpos sem vida. Então as garotas o levaram até o portão. Só que havia um problema;. Mark parou, olhou para trás e gritou: 

- Katja, onde você está? – E não houve qualquer resposta...

Depois disso a perda de sangue cobrou seu preço. Mark se apoiou em uma velha lápide do cemitério. Não parecia ter mais forças nas pernas e nas mãos. O sangue escorria por seu corpo. Aos poucos foi perdendo a consciência... O mundo ia ficando escuro... a visão embaçada... Por fim a escuridão completa... o vazio, o vão sem fundo...

Mark acordou no hospital. Ele estava mal. O animal que o atacou gravou os dentes em seu ombro. O ferimento foi feio. Rasgou a pele e danificou várias veias e músculos. O quadro não era bom. Ele ardia em febre. Seu pai ficou espantado ao saber das circunstâncias do ataque. O que diabos Mark estava fazendo em um cemitério? Que bicho o atacou? Por que ele não avisou sua família? Eram questões que todos se perguntavam.

Mark ficou doente e febril por três dias seguidos. Coisa grave. Só que para espanto dos médicos, após o terceiro dia ele teve uma melhora espantosa. O ferimento deixou de inchar e um risco de infecção foi descartado. No quarto dia ele parecia muito bem. Sentou na cama, andou pelo quarto, falou alegremente com os familiares. Parecia ter se recuperado bravamente! Até o corpo médico que o atendeu ficou surpreso! Era caso de entrar nos estudos da medicina.

No sexto dia Mark pegou sua camisa, seu casaco e saiu do hospital. Os médicos não lhe deram alta. Ele se deu alta. Acordou, lavou o cabelo, escovou os dentes e se foi. Sua primeira parada não foi na casa dos pais, mas na de Katja. Ele estava preocupado com ela. O que aconteceu com a garota pela qual ele tinha tantos sentimentos? Ele estava muito preocupado, porque em suas lembranças difusas, ele a viu sendo brutalmente atacada pelo bicho. Aquilo havia acontecido mesmo ou era fruto de uma mente em delírios, após a grande febre que teve no hospital?

 A notícia não foi nada boa. Jack, o velho coveiro, tio de Katja, lhe deu a terrível verdade.

- Katja está morta! - O velho era duro, sua profissão lidava com a morte, mas agora ele estava realmente entristecido.

- Meu Deus! Eu não acredito! - Mark, com lágrimas nos olhos, não conseguia acreditar. Ele se abaixou e ficou ema posição que mostrava sua vulnerabilidade emocional.

- O lobo a matou. Ele não resistiu aos ferimentos... Filho, lamento... lamento... - O tom do velho Jack era estarrecedor.

- Não, não... não... - Mark não conseguia acreditar no que estava ouvindo...

O  velho coveiro então percebeu que Mark tinha pedaços de curativos saindo por seu casaco. Ele percebeu que Mark tinha sido ferido também pela criatura. Isso não era um bom sinal, pelo contrário, era um péssimo indicativo. O velho acreditava em velhas lendas... como a de homens que viravam feras em noites de lua cheia. Para ele o ataque do "lobo" nada mais era do que o ataque de um "lobisomem" e como tal isso condenaria a vida de Mark para sempre. Se em algum momento, durante o ataque, seu sangue teve contato com o sangue do monstro feroz, então ele também estava condenado.

O Monstro
Mark virou-se e saiu, meio tonto pelas ruas molhadas pela chuva. Foi uma imersão traumática para ele, do ponto de vista psicológico. Isso porque ele amava Katja, mas ela agora não passava de um cadáver. Ele queria saber o que tinha acontecido, o velho até estava disposto a lhe dizer, porém não naquele momento. O coveiro iria se inteirar dos acontecimentos. Saber o que havia mesmo acontecido. Caso Mark começasse a apresentar um comportamento estranho, o velho estava disposto a usar seu rifle para dar um tiro em sua cabeça. Mais uma criatura metade lobo, metade homem, seria demais para aquela pequena cidade.

Mark foi se recuperando aos poucos. A cada dia ele ganhava uma dose de normalidade. Começou a beber muito, na maioria das vezes para superar o trauma da morte de Katja. Era algo que ele não conseguia entender. O que havia acontecido naquela noite? Uma fera saindo das sombras, atacando as pessoas em um cemitério, durante uma noite de luar? Não fazia muito sentido. Era algo complicado de entender. Muitas perguntas ficaram sem respostas. Tudo havia ficado pelo caminho.

Numa tarde recebeu a visita do inspetor da cidade. Ele estava investigando a morte de Katja. Queria saber como ela havia morrido. Mark não tinha muito o que esclarecer. Ele mesmo tinha muitas dúvidas sobre tudo. Se alguém estava em busca de respostas era ele mesmo. O velho policial não gostou da atitude de Mark. Achou ele evasivo e fraco em seu depoimento. Desconfiado, colocou Mark na lista de suspeitos. Ele era um jovem rico, estudante de medicina, de uma ótima família tradicional, mas nada disso impedia de quem sabe ser indiciado pelo crime.

Durante a primeira semana após o ataque Mark foi notando algumas diferenças. Ele não conseguia mais se concentrar nas aulas e tinha tonturas e crises de vômitos, todos os dias isso acontecia. Ele estava tão deprimido que ignorou os sinais que seu corpo estava lhe passando. Outro fato também o deixou perplexo. Sua fome aumentou consideravelmente. E não era uma fome como outra qualquer. Era algo voraz. Ele não se satisfazia com o que estava acostumado a comer todos os dias. Agora Mark queria grandes fatias de carne, e se essas fossem sangrentas, muito melhor!

Ele passou a frequentar o restaurante especializado em assados e caças. Ele nunca havia ido muito por lá, mas agora era uma necessidade vital que sentia. Mal as aulas caminhavam para o final e ele já estava nos corredores, correndo em direção à comida. Queria comer, comer, comer, muito carne, sempre, sem intervalos. Virou algo obsessivo e doentio. Seus colegas de faculdade logo notaram isso. E mais de uma vez surgiu na classe com a roupa suja de sangue da carne que havia comido. Logo ele, um verdadeiro dândi no modo de vestir. Agora parecia o porco de um açougueiro... o que estava acontecendo?

Ele também passou a desenvolver uma sexualidade fora do controle, lasciva, absolutamente lasciva. Seu ideal de mulher do ponto de vista sexual era Katja. Ela era uma mulher baixinha, mal chegando aos 1.60 de altura, porém como muitas mulheres desse tipo ela tinha um corpo maravilhoso, muito bem torneado, bem distribuído. Tinha pernas maravilhosas e um bumbum que faria qualquer padre deixar a batina. Mark só penava nela nua em sua cama. Mesmo quando tentava asistir ás aulas sua imagem vinha sempre em sua mente. Por isso passou a se masturbar com uma freqüência absurda!

Também começou a literalmente feder pois sua higiene pessoal começou a desaparecer. Estava sempre mal arrumado, barba por fazer, cabelos despenteados. O rapaz que em um passado muito recente despertava o interesse de suas colegas universitárias agora gerava comentários e fofoquinhas pelo fato de cheirar mal. Definitivamente algo estava acontecendo com ele. 

Na primeira noite de lua cheia após o ataque veio a revelação! Ele começou a passar muito mal no pequeno quarto da faculdade onde residia. Parecia que sua pele queimava por dentro. Mark pensou que estava passando por algum tipo de crise alérgica que desconhecia. Não, era algo bem pior. Ele estava se transformando. Passou a ver pessoas mortas de seu passado como sua avó, há muito falecida! Era atroz, além de estar sentindo problemas físicos poderia perceber que seu psicológico também estava se comprometendo. Ele tinha consciência do que vinha acontecendo, mas uma força poderosa em sua mente também o impedia de procurar por algum tipo de ajuda...

O estudante de medicina Mark estava se transformado em um monstro. Nas noites de lua cheia, ele perdia a consciência humana e se transformava em um lobo feroz, uma fera em busca de carne! A fome era insuportável, assim qualquer coisa que se mexia era atacada ferozmente. O lobo causou pânico e terror por onde passava. A polícia já sabia que algo estava acontecendo. Era raro não aparecer o corpo de algum animal de pequeno ou médio porte ao amanhecer. Algo estava fora de controle e sedento por sangue.

O velho Jack, o coveiro, sabia muito bem o que ocorria. Ele entendia a lenda. Os eruditos se recusavam a acreditar em lobisomens. Isso era coisa de gente ignorante do interior. Mas Jack, um velho experiente, que não se surpreendia com nada, bem sabia o que se escondia por trás das sombras. Ele então decidiu que iria matar o monstro. Lamentava que com isso também iria eliminar Mark, mas isso era algo que não poderia mudar. O ser humano teria que ser sacrificado com a morte da fera. A bestialidade não poderia mais andar à solta nos bosques.

O que ninguém sabia é que Jack já havia tratado com esse tipo de coisa antes. Ele era muito interessado em ocultismo e sabia que forças sobrenaturais agiam no mundo material que conhecemos. Para lobisomens apenas balas de prata eram eficientes. Ele então foi até o amigo que trabalhava com forjamento de metais e pediu que ele fizesse um conjunto de seis balas de prata. Uma vez armada com o tipo ideal de munição se colocou à moita, esperando Jack passar na madrugada. Ele conhecia a rotina do jovem.

Estava pronto para fazer o que tinha que ser feito. Aquele velho já havia sido um jovem em um passado muito distante. Um jovem com muitos sonhos de vida, muitos deles que nunca se realizariam. Esse tipo de frustração pessoal forjou um homem que sabia que havia momentos cruciais na vida. Era momento de ser pragmático, de agir, custe o que custasse. 

Numa noite avistou, muito ao longe, o lobo se alimentando de uma pobre ovelha. A noite era iluminada pela lua cheia e ele conseguiu enxergar naquela silhueta ao luar a figura transformada de Mark. Não havia mais dúvida. Aquele ser bestial tinha que ser eliminado e ele faria isso – estava completamente decidido sobre isso. Nada de policiais, nada de caçadores profissionais. Ele iria resolver aquela questão. 

A Noite
Na noite ideal ele começou a seguir os passos de Mark. Ele parecia meio desorientado quando adentrou o bosque da região. Com as mãos no rosto mal conseguia ficar em pé, então caiu. A transformação iria começar. Em poucos minutos sua feição começou a mudar. Era uma transformação dolorosa e insana. 

O velho Jack se agachou e foi andando devagar em direção a gruta onde Mark eestava se transformando. Ele foi se transformar em um lugar bem próximo do velho cemitério onde Jack trabalhava e isso o deixou completamente surpreso. O que diabos estava acontecendo... Isso lembrou velhas histórias que tinha ouvido no passado, uma delas dizia que os lobos monstros sempre procuravam pelos lugares onde tinham sido atacados, quando eram seres humanos. Pelo visto não era lenda e a história parecia se confirmar...

Para surpresa do velho não havia apenas um Lobo, mas dois! O segundo, o velho lobo cinzento, o original, entrou na gruta e passou a andar lentamente em volta de Mark que se contorcendo no chão, ia aos poucos perdendo suas características humanas. Primeiras mudanças surgiam nas pupilas, agora com tonalidades indo ao amarelo forte. Depois o crescimento voraz de pelos por todo o corpo. 

O velho lobo cinzento apenas observava a transformação, com dentes cerrados, a saliva descendo por sua boca em direção à areia quente... Se não fosse um animal irracional o velho Jack poderia até mesmo afirmar que aquela fera estava sentindo um certo orgulho de sua criação. 

A transformação ocorria em uma velocidade extremamente rápida. Em pouco mais de dez minutos o ser humano Mark já tinha se transformado em algo diferente, em um bicho real, que se levantava do chão e começava a perceber a presença do outro lobo ao redor. Jack poderia pensar que haveria uma briga feroz entre os dois monstros, mas para sua surpresa Mark se abaixou, em sentido de clara subordinação ao lobo que o havia atacado no passado. Agora ele fazia parte da alcateia, tinha que mostrar total submissão ao macho alfa, caso contrário seria atacado e muito provavelmente morto pelo seu agora mestre selvagem.

 Jack entendeu que havia chegado o momento de agir. Não havia mais como esperar, ou então ele seria atacado por aquelas duas bestas ferozes. Ele então se posicionou, colocou as balas no rifle e fez mira.

- Morram, enviados do diabo... morram! - Foram suas únicas palavras.

O estampido do tiro espantou os corvos. O tiro não foi certeiro, atingindo apenas o ombro da fera alfa. Essa deu um pulo de sobressalto, procurando pelo atirador. Os olhos vermelhos de ira denunciavam que o ser humano não existia mais, apenas a besta.

Então o velho Jack mirou com capricho no coração daquela besta cinzenta. Houve um uivo forte que atravessou a madrugada . Jack não esperou pelo pior, apertou o gatilho. A bala acertou em cheio...

Um ruído assustador cortou a madrugada. A fera, sentindo a ferocidade do ataque... se voltou e correu em direção ao bosque. Estava sem dúvida, ferida. E não tinha forças naquele momento para atacar Jack. O lobo cinzento saia em retirada rápida, não queria ficar para ver o que lhe aconteceria. 

Mais um tiro, nas costas. Três balas de prata já cravavam o corpo do monstro.

O animal então desapareceu na escuridão da noite. Estaria abatido ou mortalmente ferido? Naquele momento de tensão, não havia como raciocinar direito, apenas se lutava pela sobrevivência...

O velho Jack então mirou suas atenções para Mark, totalmente transformado, pronto para atacá-lo. Jack deu um tiro e errou... O lobo jovem era muito rápido... puxou o gatilho e deu um novo tiro... outro erro.... finalmente no terceiro conseguiu atingir Mark. 

Foi um tiro forte, dado a curta distância, que abriu um verdadeiro buraco no corpo do lobo. Agora era torcer para que a morte viesse para o monstro, pois não tinha mais balas...  Vendo o perigo, Jack recuou, o lobo parou e olhou em seus olhos. 

O velho sentiu a presença de Mark ali. Pensou que o pior estava por vir, que Mark o atacaria, mas para sua surpresa, isso não aconteceu. Assim como acontecera com o lobo cinzento, Mark também virou as costas e correu em direção ao mato, sangrando, mas não parecendo ter sido atingido de forma fatal. Ainda estava rápido e feroz, com boa disposição. Não demorou e desapareceu pela noite adentro. 

Jack não perdeu tempo e foi embora do lugar. Alguém poderia ter ouvido os tiros. Ele não queria ser acusado de assassinato.

E ali naquela lareira abandonada, iluminada apelas pela luz opaca da Lua, o jovem Mark começou a ressurgir. Ele estava muito ferifo, com as roupas rasgadas, o ombro nu, sangrando... Mas estava vivo... era o que importava...

A Revelação
Jack abriu os olhos. Estava exausto da noite anterior. Cada músculo de seu corpo doía. Não era algo de se admirar. A tensão de enfrentar dois monstros ao mesmo tempo cobrara seu preço. Jack quase não conseguiu se levantar. Ele, após certo esforço, finalmente ficu de pé. Colocou um pouco de água para ferver e tomou seu café da manhã. E saiu da cabana onde morava para fumar um pouco. Ele tinha que fumar pela manhã para começar bem o seu dia. 

Ele estava ansioso. Queria comprar o jornal daquela manhã. Se tudo desse certo, ele leria em primeira mão a notícia da morte do jovem Mark. A polícia teria encontrado seu corpo no meio da floresta. Estaria nu e alvejado por balas. O lobo cinzento também estaria morto nas previsões do velho Jack. Essa pelo menos era a sua esperança. Provavelmente o lobo cinzento era algum vagabundo que rondava aquela região, por isso sua identidade nunca seria descoberta com certeza.

Assim ele esperava acontecer, mas...

Ao abrir o jornal levou um susto e tanto. Um corpo havia sido encontrado na floresta, como ele previra. Só que não era de Mark e nem de um vagabundo.. Nervoso, começou a ler a notícia... era inacreditável... O texto dizia:

Urgente: Corpo do Inspetor Robertson é encontrado no meio da floresta!
A polícia do condado ainda busca provas da morte do inspetor Robertson da chefatura de polícia. Segundo informações preliminares ele foi assassinado com vários tiros. O que intrigou os policiais de sua própria delegacia é que as balas encontradas em seu corpo são todas de um tipo de fabricação diferente! São balas folheadas com prata! Quem teria matado o veterano policial?... são muitos os suspeitos, mas nenhuma prova concreta ainda foi encontrada!"

Jack não podia acreditar naquilo. O Lobo Cinzento era na verdade o inspetor Robertson!!! 

Era chocante, algo que o impressinou muito!

De dia ele defendia a lei, para nas noites de lua cheia se tornar um monstro, uma fera irascível e assassina. 

Só que essa informação era de conhecimento apenas de Jack. Ninguém, nunca, iria saber a verdade. As investigações seriam feitas, mas ninguém iria saber que o antigo inspetor era na realidade um ser amaldiçoado das noites escuras. 

Mas e Mark?... Nada havia sobre um segundo corpo. Jack levantou várias hipóteses em sua mente. Será que ele teria ido para o condado vizinho e lá morrido em alguma ravina inacessível? Será que foi embora para nunca mais voltar?...

O que de fato teria acontecido?

O Uivo do Lobo
Mark não morrera. As balas usadas pelo coveiro não tinham o teor necessário de prata pura para matar o lobo, apenas para suspender por um curto período de tempo sua transformação. O velho coveiro não teria dinheiro mesmo para comprar prata de alto nível de pureza. Mark estava vivo. Ele recobrou sua consciência levando as mãos em seu rosto. Sentiu como se 1 tonelada estivesse pressionando sua cabeça. Era uma dor terrível, mas ele havia retomado a consciência de si mesmo, de onde estava. As roupas rasgadas, sujas, cheias de lama... sangue coagulado em seus braços e mãos. Aquela noite que passou havia sido mesmo uma noite infernal, sob todos os aspectos.

Mark então se levantou. Ele ainda cambaleava, procurando por uma direção. Por sua sorte foi visto por uma jovem colega da universidade de medicina. Ela ficou horrorizada com o que estava vendo. Mark estava em frangalhos, ou melhor dizendo, suas roupas estavam esfarrapadas. Naquele momento parecia o mais imundo escocês do mundo - mais sujo do que os mendingos que andavam pelas ruas da cidade. Sua conhecida (veja bem, não era sua amiga, mas eles se conheciam), correu e usou o grande lençol que estava usando para seu pic-nic para cobrir Mark.

- Meu Deus! O que lhe aconteceu? - Isabel estava em choque. Mark não respondeu. Ele tinha problemas de se manter em pé. Imediatamente entrou na carruagem da amiga que o levou até um pequeno hotel nas vizinhanças. Mark mandou comprar roupas novas e depois de um longo banho estava novamente apresentável. Parecia finalmente um ser humano.

Ele se deitou na cama e ficou pensativo. O que havia acontecido mesmo? Ele tinha lapsos de memórias, apenas momentos breves surgiam em sua mente. Suas lembranças tinham cheiro e gosto. Cheiro e gosto de sangue humano. Lembrava de lutas, suor, fedores, adrenalina destroçando sua mente. Eram lembranças do momento em que se transformava em um monstro, em um lobo.

Como todo rapaz de sua geração ele também conhecia a lenda dos lobisomens. Era algo bem explorado por livros de bolso, publicações sensacionalistas. Era pulp fiction por excelência. Só que Mark também sabia que algo havia lhe acontecido. Verdade ou mentira, lenda ou realidade, ele sabia que algo havia lhe atingido. Sua mente de médico (ou de quase médico, já que ele ainda não havia se formado) se colocou a pensar. 

Ele poderia estar contaminado por algum vírus nunca estudado pela ciência médica. Ele poderia estar passando por alguma doença desconhecida. Virar simplesmente um monstro não era algo que lhe parecia crível. Era algo insano, fora de realidade, coisa de gente ignorante das pequenas vilas de interior. Mark tinha que achar a resposta, antes que fosse tarde demais...

Sexo, fúria e selvageria
Mark se tornou um lobo naquela mesma noite. Era sexta-feira de lua cheia. Impossível resistir ao chamado do lobo. Logo ele começava a suar em profusão, sentindo sua pele se revirar completamente. Era uma dor insana, uma dor da morte. Seus dentes caninos cresciam e forjavam sua caixa craniana. 

Geralmente nesses momentos ele desmaiava da dor insuportável que sentia. Perdia os sentidos. O homem era deixado de lado. A basta fera tomava o controle. E uma vez dominado, não havia mais nenhum pensamento racional em sua mente. Tudo que pensava em satisfazer seus desejos mais primitivos, como fome e sexo.

A fome logo foi saciada no bosque. Um cervo passeava tranquilamente na floresta, pensando estar seguro, coberto das sombras, quando o lobo o atacou. Era Mark transformado. Ele imediatamente atacou a jugular da pobre criatura. o sangue jorrou e lhe trouxe um prazer indescritível. Era insano, era selvagem, era maravilhosamente delicioso. Enquanto o animal morria, vendo sua vida escorrer por suas artérias, Mark se saciava, dando grandes mordidas em seu couro forte e resistente. Quando a pele finalmente rompia ele gritava para a luz do luar. Estava em êxtase completo.

Foi quando ouviu galhos se quebrando. Era uma pessoa. Melhor, era uma mulher. Andando no meio da floresta, no meio da noite, completamente indefesa. Tudo o que o lado bestial de Mark mais queria. Após saciar sua fome era hora de saciar sua lascívia. Não houve tempo de reação. A pobre garota gritou, mas não havia ninguém para ouvir. Mark pulou em cima dela, arrancando suas roupas com os dentes. Logo dois lindos seios rosados foram iluminados pela luz da lua da meia noite. Mark a possuiu com ferocidade, ali mesmo, no meio do mato, na areia do solo da floresta. Seu membro absurdamente aumentado por sua transformação praticamente rasgou a pobre garota em duas! Foi uma cena que o próprio Satã assistiu, tomando doses de vinho milenar e dando gargalhadas no meio da noite.

- Veja, seu desgraçado... Seu bastardo... veja... no que sua "genial criação" se transformou! - Era o anjo caído debochando e desafiando Deus. 

Era óbvio que ele, mais uma vez, queria demonstrar que o ser humano, dito como a maior criação de Deus, era uma piada infame. O seu ser humano, agora transformado em besta, devorava viva uma bela jovem loira de olhos azuis - Tome seu bastardo, tome seu canalha - Gritava Satã entre gritos e risadas diabolicamente ensandecidas.

Mark, ou melhor, a besta, continuou a possuir com ferocidade a jovem garota. Depois em um momento de pura fúria teve um orgasmo absoluto, feroz, incomparável. Ele estava fora de si, transformado em lobo. Lembrou de Katja, sua jovem amada, agora dentro de um caixão. Pensou em ir ao cemitério para tirar ela da sepultura, para fazer amor com seus restos mortais.

Satã, com seu poder de entrar na mente de Mark, deu risadas histéricas daqueles pensamentos. Imagine, depois de um ato de bestialismo, teríamos agora um ato de necrofilia. Esse Mark era realmente um de seus filhos malditos, um de seus ungidos nas escuras cavernas do inferno profundo. Satã dançava entre as árvores da floresta, ria de forma sarcástica, bebia o vinho derramando em seu corpo. Era a personificação do deboche, da blasfêmia, da sagacidade. Poucas vezes ele havia se divertido tanto como naquela noite escura.

Mark, ou melhor dizendo, o Lobo, continuou a correr pela floresta. A percepção de liberdade era absoluta em sua mente. Transformado em fera, Mark corria pelos bosques escuros na noite, se desviando das árvores, atacando qualquer animal e ser vivo que cruzasse em seu caminho...

Seu nível de consciência humana ainda existia, ainda apresentava resquícios, mas esses eram fugazes. Ele via o Diabo correndo ao seu lado. Tinha a figura clássica, chifres, pele vermelha, mas o corpo era de um equino, forte e saudável. Na forma de animal o ser das trevas não fala como Mark diretamente, apenas entrava em sua mente. Ele o sentia e ele o ouvia... 

Provavelmente a mente humana transformada em lobo modificava sua percepção do mundo, causando alucinações ou então revelava o mundo ao redor como ele realmente era de fato! Abria as portas da percepção sobre o mundo espiritual que existe ao nosso redor...

Sua caçada noturna continuou e nada iria parar a besta. Ele queria sangue e carne, carne e sangue. Encontrou algumas ovelhas no pasto, sinal de que havia habitações ali por perto. Com instinto em alta, atacou todos os animais. Foi uma orgia de sangue... Mark, sem ter consciência completa no que havia se transformado, uivava para a Lua com imenso prazer...

Nunca havia sentido tanto prazer da carne... Então, ainda na forma de lobo, avistou uma cabana ao longe. A fumaça saindo da chaminé mostrava que havia moradores por lá. E isso significava carne humana para se devorar... Não tardou e o lobo correu em direção àquela habitação rústica no meio da floresta... o pior estava por vir...
N
aquela cabana morava uma família de imigrantes alemães. Pai, mãe e uma filhinha de pouco mais de cinco anos. Foi ela quem primeiro sentiu a presença do lobo. A fera havia subido no telhado, fazendo barulho, quebrando coisas, telhas, rosnando de fúria. A menininha percebeu tudo e correu em direção á cama do casal...

- Mamãe, papai, tem um bicho mau em cima da casa! - A garotinha havia acertado em cheio sobre o que estava acontecendo. 

Hans, seu pai, um homem vigoroso, com quase dois metros de altura, forte, com músculos criados na dura rotina do campo, logo percebeu que algo estava acontecendo. Em um piscar de olhos foi atrás de sua espingarda, pegou as balas e disse que iria espantar o animal. Ele se virou para a esposa e disse: 

- Proteja nossa filha! Vou matar esse bicho...

Abriu a porta e viu o grande lobo em cima do telhado. Era Mark. Os dois olhos se cruzaram. O alemão não se intimidou em nenhum momento. Colocou as balas e fez mira. Atirou e acertou o lobo...

Só que aquelas não eram balas de prata. Não tinham efeito nenhum sobre o corpo bestial daquela fera. Não demorou nada, Mark pulou em cima do homem. A filhinha gritou... o caos era completo...

O lobo foi direto na jugular. O homem ainda tentou se defender usando sua própria arma como defesa, mas o ataque era forte e preciso. Ele não tinha forças suficientes para enfrentar aquele ser de puro ódio, pura ferocidade no mano a mano...
Em poucos minutos estava rendido e sem forças para continuar lutando... A mãe e a filhinha ficaram desesperadas dentro da cabana. A porta estava aberta, o lobo poderia pular para dentro para terminar sua carnificina, mas...

O lobo ficou parado diante das duas pessoas indefesas, a mãe e sua filhinha. Um mínimo de consciência humana parecia agir ali sobre a sua mente, o instinto feroz daquele monstro. Algo o fez parar, talvez a visão de uma criança indefesa tenha de alguma forma alertado sua mente humana adormecida de que aquela era uma linha que ele não poderia ultrapassar...

Mesmo rosnando, com a boca aberta, dentes à mostra, boca cheia de sangue de sua última vítima, o lobo não atacou! Após dois minutos parados diante da mãe e sua vítima, o feroz animal pareceu se acalmar, olhou para o lado uma vez, depois para o outro lado e... correu em direção à floresta...

A mãe, debruçou-se de joelhos, agradecendo a Deus, pois realmente não teria como se defender caso aquele lobo caso ele resolvesse atacar, era um sinal de que anjos do Senhor tinham descido naquele lugar... E a felicidade se intensificou quando ela descobriu que seu marido estava vivo... estava muito mal, sangrando pela garganta, muito mal, mas estava vivo...

Ela saiu e gritou o mais alto possível....

- Socorro! Socorro! Me Ajudem!

A filha pequena apenas chorava, soluçava de tanto chorar...

Carta a um Amigo...
Quando os inspetores entraram no quarto onde Mark vivia encontraram uma grande bagunça. Roupas rasgadas (e cheias de sangue) pelo chão, mau cheiro, podridão, moscas. Nada parecia lembrar o asseado estudante universitário do passado. A polícia já estava atrás de Mark há alguns dias. 

Ele foi visto saindo, praticamente nu, de uma das cenas de crime. Ali perto, a poucos metros, jazia o corpo de uma jovem que havia sido literalmente estraçalhada por uma selvageria poucas vezes vista. Assim o novo inspetor já sabia por quem procurar. 

Ele começou uma série de investigações e descobriu alguns fatos interessantes. Mark há muito já não frequentava as aulas na universidade. Estava sempre apresentando um comportamento estranho, esquisito. Não falava mais com os velhos amigos, parecia perturbado da mente e do corpo. 

Seu cheiro ruim passou a ser comentado por colegas de classe. Ele não conseguia mais prestar atenção às aulas e fugia das provas. Numa dessas ocasiões chegou a quebrar um lápis bem no silêncio do teste. Aquilo chamou a atenção de todos. Ele apenas se levantou, jogou a prova no chão e se foi, grunhindo algumas palavras que ninguém entendeu.

Parecia estar sempre suado, enervado, colérico. O menor sinal de aborrecimento levava à ira. O menor comentário que ele considerasse ofensivo... partia para cima de quem dissesse tais palavras. De jovem calmo, sereno, amigo, culto, passou a ser visto como um sujeito rude, grosso, ignorante. Estava sempre vermelho, prestes a explodir. Era irascível, brigão... parecia estar sempre em busca de briga. Virou um valentão nos corredores da universidade. Destruiu sua imagem, virou uma paródia de si mesmo. Esse foi o quadro que surgiu de diversas entrevistas com outros estudantes.

Na carta que foi encontrada dentro de seu quarto, o inspetor descobriu mais sinais de que ele poderia ser o assassino selvagem e mordaz que estava há tempos procurando. A carta estava amassada, quase rasgada. Foi encontrada dentro de um balde onde o estudante jogava fora suas anotações. Era algo bem bizarro ter encontrado aquele manuscrito no meio de um monte de outras folhas de estudo. Ele estava com a mente alterada, por isso não devia se esperar por algo lúcido.

A carta tinha o seguinte teor: "Carta a um amigo. Estou muito mal nos últimos dias. Tenho passado por sintomas estranhos. Tenho momentos de delírio e loucura. Alucinações passam pela minha mente. Eu me vejo como um lobo no meio da floresta, correndo entre as árvores, caçamdo pequenos e grandes animais. Sinto uma vontade imensa de consumir carne... humana! Quero matar, quero dilacerar... não sei o que está acontecendo comigo. Acima de tudo quero registrar no papel o que se passa em minha mente nesse momento tormentoso de minha vida!” 

Em um raro momento de lucidez nos últimos dias foi até a biblioteca da universidade em busca de respostas. Nos livros de medicina encontrou algo que poderia ser a resposta para suas muitas perguntas. A palavra que poderia lhe salvar era: licantropia! É isso, decidiu ir atrás de um especialista, atrás de cura... precisava se curar! 

Tochas, tochas ao vento!
Naquela noite muitas tochas foram acessas! Um grupo de mais ou menos 50 homens se reuniu na praça central do vilarejo. Estavam determinados a caçar o lobo, custe o que custasse! Cada um trouxe sua própria arma de fogo. A maior parte dos caçadores era formada por homens experientes. Todos imigrantes alemães, homens que vieram para a Escócia com o firme propósito de recomeçar suas vidas, lutar por dias melhores. Eles conheciam bem aquela floresta escura. Muitos deles tiravam o sustento de suas família justamente daquele lugar. Ninguém estava receoso ou com medo. Ao contrário disso estavam muito motivados!

Uma exceção naquele grupo era justamente Jack. Era o único homem naquele bando que sabia o que estava acontecendo. Ele havia vendido alguns bens e conseguido forjar mais 3 balas de prata. Era agora ou nunca. Ele tinha que encontrar Mark e colocar um fim em sua vida, caso contrário tudo iria recomeçar, as mortes, a transformção de uma nova vítima, os ataques nas noites de lua cheia. Era o momento de colocar um fim em tudo aquilo. 

O grupo decidiu que os homens iriam entrar na floresta em pares. Dois homens, lado a lado, um apoiando o outro. E as duplas não poderiam ficar muito longe de si. Tinham que estar em uma distância em que um grito ou um tiro poderia ser ouvido pelos demais. Uma tática e uma estratégia de proteção. 

Quem ficou ao lado de Jack foi Ernest, um imigrante alemão na casa dos 40 anos. Homem forte, rude, bom de tiro. Eles entraram na floresta com a firme convicção de que iriam encontrar o lobo selvagem.

E para surpresa deles realmente encontraram pistas ao lado de uma carruagem com dois cavalos negros. O único ocupante, revelava as pegadas no chão, havia deixado aquele lugar há pouco tempo. O mais estranho de tudo é que as pegadas humanas eram substituídas por pegadas de um animal, de um lobo grande! Jack sabia o que isso significava. Mark estava transformado. 

Por um instante se distraiu, mas ao olhar para cima de uma pequena colina avistou o lobo!

- Ali, no alto, vamos! - Gritou Jack para seu companheiro de caçada. 

Eles correram o mais rápido que podiam. O lobo ficou parado, esperando a chegada dos homens. Os dentes rangiam, a baba branca descia por sua boca. Ele fez posição de ataque e correu em direção aos homens...

Ernst parou, fez posição de disparo e atirou... 1, 2, 3 vezes... Ele devia estar vendo coisas pois acreditava que havia acertado o lobo, mas esse não se deteve, continuou a correr em sua direção... de forma rápida e feroz... pura selvageria...

Ao chegar perto o grande lobo ficou de pé na frente de Ernst e só aí ele entendeu que não estava lidando com um animal normal...

O bicho, em pé, tinha mais de dois metros de altura. Braços muito fortes, Olhar de puro ódio insano... Então o monstro fez um gesto rápido, puxou seu braço para trás, para então desferir um golpe certeiro na cabeça de Ernst...

Ela saiu rolando pelo chão... Jack assistiu a tudo e ficou estarrecido com a visão da cabeça do homem sendo arrancada por um golpe do lobo...

Então Mark, em forma de besta, virou-se para Jack. Olhos nos olhos. Um clima de tensão no ar. Jack levantou sua arma, mirou e conseguiu perceber, mesmo nesse momento de grande tensão, que Mark mesmo transformado em fera, conseguia lhe reconhecer... talvez por essa razão não tenha pulado em seu pescoço...

Mas não havia tempo de especular... Jack imediatamente mirou e atirou... a bala prateada saiu com extrema força indo se alojar no braço da besta!

Um uivo assustador foi ouvido ao longe...

Os demais caçadores ouviram os tiros e os barulhos da luta e correram em direção àquele lugar...

Mas chegaram tarde.. pois o grande lobo havia conseguido fugir entre as árvores da floresta...

A noite o ajudou a fugir... Sombras, queridas sombras, salvando as criaturas da noite...

Mausoleum
O corpo de Mark foi encontrado alguns dias depois em um caminho para a cidade de Glasgow. Ele estava no chão, caído ao lado de sua carruagem de dois cavalos negros. O inspetor daquele lugarejo empoeirado e lamaçento havia seguido os passos de Mark nos últimos dias ao lado de dois investigadores. Trazia em mãos seu mandado de prisão. Não houve tempo de cumpri-los. As investigações revelaram que no último dia de sua vida Mark sangrou bastante em seu braço, mas conseguiu se recuperar.  

Comprou uma espingarda de caça a raposa. Depois comprou dois pacotes de munição especial. Eram balas de prata, tiradas das minas de Montana, nos Estados Unidos. Algo caro, que apenas um jovem de família rica como ele conseguiria comprar tão facilmente.

Quem o encontrou foi um senhor, um velho camponês que morava perto. E ele tinha mais a dizer. Disse aos policiais que ouviu o tiro que matou Mark, mas que não foi até o local por puro receio de também sofrer alguma violência. Havia ladrões e bandidos atuando naquela área, principalmente pelas madrugadas. No dia seguinte, ao amanhecer, foi até o caminho e encontrou Mark morto no chão. O inspetor descobriu que Mark havia se matado com um tiro na cabeça. O mais estranho em seu corpo é que um de seus braços estava absurdamente peludo para um ser humano.

A conclusão que o inspetor chegou foi algo que ele guardou apenas para si mesmo. Seria absurdo colocar isso em um relatório policial. Apenas em sua mente ele decifrou os acontecimentos. Era óbvio que Mark havia se matado durante sua jornada. Mas o que aconteceu? Para o inspetor ele começou a sofrer uma transformação. Era sexta-feira, noite de lua cheia. Sim, o inspetor, mesmo que não dissesse isso a ninguém, estava convencido que Mark estava se transformando em um lobisomem naquele momento. Desesperado, já com o braço direito em transformação, ele desceu da carruagem, pegou seu rifle, armou com duas balas de prata e atirou contra sua cabeça. Esse foi o seu fim.

Dentro da carruagem do suicida, o inspetor encontrou um livro chamado "Lendas e maldições do Lobisomem". Estava claro que Mark o estava lendo, pois havia muitas marcações em suas páginas. O inspetor pegou o exemplar e o tirou da cena do crime. Ele iria defender a tese de que Mark sim havia se matado, mas o havia feito em um surto psicótico. Ele estava sofrendo de algum distúrbio mental não diagnosticado. No auge da loucura havia decidido acabar com tudo. Esse seria o teor de seu relatório. Para poupar ainda mais a família e evitar problemas para ele, como servidor público, omitiu do relatório qualquer ligação de Mark com as mortes de mulheres. A família poderia ficar ofendida e destruir sua carreira, caso isso viesse a parar nos jornais.

Mark foi enterrado no cemitério local. Não muito longe dali, na chamada "viela dos pobres", onde pessoas mais humildes eram enterradas, havia sido enterrada sua amada Katja. Eram tão jovens... morreram tão jovens... era algo a se lamentar. A família de Mark ficou arrasada e muito consternada com sua morte. Ele foi sepultado no bonito mausoléu de seu clã. Seu caixão foi depositado ao lado do lugar onde seu avô, um dos homens mais ricos da história da Escócia, há alguns anos jazia.

Curiosamente, com o passar dos séculos, aquele mausoléu ganhou fama de amaldiçoado pelas pessoas que moravam na cidade. Dizia-se que em noites escuras de lua cheia um lobo solitário, todo branco, ai até lá e uivava para a luz do luar. A fera tinha olhos vermelhos de sangue e não parecia ser desse mundo. 

A lenda urbana iria inspirar um jovem escritor a colocar no papel toda a história que era contada nas tavernas da região. Era a história de um jovem rico, estudante de uma das principais universidades escocesas, que nas noites escuras se transformava em uma besta assassina. Quem poderia discordar de algo assim? Absolutamente ninguém... O uivo do lobo nas noites tem seus próprios segredos seculares...

Pablo Aluísio.