Cap. I - O Dia Seguinte
Depois de solucionar o caso que a imprensa começou a chamar de "O Estranho caso das sombras eternas", o detetive Yves Cloquet tentava acalmar a adrenalina dos dias anteriores. Sobre sua mesa uma série de jornais do dia, revelando todos os detalhes do que havia acontecido. Algumas informações não estavam absolutamente certas, mas havia ainda muito a celebrar. Seu nome surgia em todas as reportagens. Yves sabia que isso era propaganda a favor. Provavelmente haveria novos clientes, novos contratos. Afinal ele era um profissional liberal que vivia de seu trabalho. Vivia um dia de cada vez.
Porém esse ainda era o dia seguinte, um momento para tentar relaxar e saborear os frutos do serviço prestado. E assim, após ler todos as edições diárias do jornal, Yves Cloquet finalmente conseguiu descansar. Empurrou a cadeira para trás, acendeu um fino cigarro francês que havia comprado em Paris, desde a última vez que esteve lá. E começou a pensar sobre a vida. Poderia haver novos desafios? E que protocolos de segurança deveria adotar daqui para frente? Ele havia desmascarado um grupo religioso fanático. Os líderes estavam presos, mas os seguidores ainda continuavam por aí, nas ruas. E eles poderiam tentar se vingar dele.
Yves Cloquet abriu a gaveta de cima de sua escrivaninha, para conferir se sua arma de fogo estava à mão. Claro, não poderia se baixar a guarda. Ele pensou, pensou... de vez em quando dava um pequeno sorriso, se lembrando dos detalhes do caso que havia terminado. Então seus pensamentos foram interrompidos por batidas na porta de seu escritório. Yves colocou seu cigarro no cinzero, ajeitou seu terno e foi em direção à porta. Poderia ser um novo cliente. Nossa, ele sabia que seu nome nos jornais iria melhorar sua clientela, só não sabia que havia sido tão rápido.
Ao abrir a porta se deparou com um homem elegante, na faixa dos 65 anos de idade. Muito bem trajado, com terno e gravata impecáveis. Chapéu de linha classe A. Tudo muito elegante e discreto. Yves então o convidou para se sentar. Apresentações formais foram feitas. O homem à sua frente era um médico bem renomado em Londres. John Michael Chieffo era doutor em doenças contagiosas da prestigiada Universidade de Oxford. Um nome muito respeitado e admirado na elite médica e científica da capital inglesa. Um grande nome, que Yves já havia ouvido falar, que já tinha lido em jornais londrinos. Mas o que ele estaria fazendo ali?
Queria contratar os serviços do detetive. E então o refinado senhor começou a explicar o caso que desejava que Yves deveria resolver. Ele havia perdido a esposa há mais ou menos seis meses. Ela foi enterrada no cemitério da cidade. Uma dor profunda havia atingido seu coração. Mesmo sendo um homem muito atarefado ele procurava ir todos os fins de semana ao cemitério, para colocar flores no túmulo de sua amada esposa. Era um pequeno ritual que afagava sua dor. Porém no último fim de semana ele havia sofrido um choque terrível. O corpo de sua amada esposa havia sido roubado de seu túmulo. Ele chorou e chorou na frente de Yves. Quem poderia ter cometido tamanho ato de crueldade humana? Onde estaria o corpo de sua amada esposa? Quem era o culpado de um crime tão vil? Seria algum inimigo de seu passado que ele desconhecia? Perguntas, perguntas, que Yves agora deveria responder em seu novo caso de mistério.
Cap. II - O Dr. Chieffo
O Dr. Joseph Michael Chieffo era uma figura sinistra. Para entender bem seus problemas psicológicos era necessário voltar ao passado. Ele havia sido criado por um homem rico, mas analfabeto e violento. Ele era dono de terras no deserto e espancava sistematicamente todos os seus filhos. Todos eles desenvolveram traumas ao longo de suas vidas por causa disso. A sorte de Joseph é que ele conseguiu entrar em uma universidade de medicina, mesmo que fosse privada, já que ele não tinha nível intelectual para passar nos exames de admissão de uma universidade pública, onde o que contava era a capacidade.
No íntimo o Dr. Chieffo sabia que era uma figura medíocre e ele tinha vários ressentimentos por isso. Dono de uma dicção problemática, era complicado para ele se comunicar. Isso obviamente aumentava seu nível de inferioridade. Com o tempo isso tudo foi virando puro ódio. Ele tinha se dado bem por causa de alguns momentos de sorte em sua existência, mas fora disso não era uma pessoa para se sentar e conversar sobre grandes temas da vida. Intelectualmente era medíocre e tacanho, se agarrando em velhos valores como machismo, opressão e violência. No fundo não gostava de ninguém, nem da esposa, que havia morrido. Era tudo jogo de cena para os outros.
Há alguns anos tinha ficado impotente por causa de problemas de saúde. Isso o destruiu ainda mais psicologicamente. Acostumado a praticamente estuprar a esposa por longos anos, ele foi perdendo a macheza que pensava possuir. Entrou em um grupo político radical que pregava racismo, machismo e homofobia por onde passava. Ele se considerava superior a todos, pois era rico, branco e hétero. Era mau caráter e materialista, possessivo, caluniador, difamador e ofensivo com todos, mas principalmente com seu parentes que não se enquadrassem em seu modo de pensar o mundo. Como havia sido dito, era um medíocre.
Embora tivesse formação católica (sua mãe havia sido uma católica fervorosa), o Dr. Joseph Michael Chieffo passou a flertar com o ocultismo, isso por si só já era algo espantoso, pois na maior parte da vida ele havia sido um ateu. Vendo a velhice (e a morte) chegar ele então decidiu que iria crer. Era um covarde existencial. O ocultismo sinistro lhe pareceu uma boa opção. Ele não gostava do cristianismo, achava que Jesus Cristo se comportava como um vagabundo, sem trabalhar, cercado por outros vagabundos. Sua alma, como se pôde perceber, já pertencia ao inimigo, ao ser das trevas eternas.
Dentro de seu grupo ocultista ele adotou o pseudônimo de Morpheus "deum placamentis decedebat". Essa última expressão latina poderia se traduzida como ser humano sinistro, macabro, amante das trevas e do mal. Sua comunidade sombria era secreta, ninguém poderia saber o que se passava por trás de suas portas. Eles compraram um antigo sobrado no centro de Londres e faziam reuniões para discutir e debater. A maioria dos membros era formada por pessoas ricas, mas em essência todos eles eram péssimas pessoas. Só lhes interessavam o ódio, só lhes interessavam o mal. Era um grupo que reunia as piores pessoas do mundo, com as piores intenções.
Cap. III - O Túmulo da Condessa
O detetive Yves Cloquet estava pronto para trabalhar em seu novo caso quando recebeu um telegrama do Dr. John Michael Chieffo. Ele dizia: "Lamento pelo lapso. Ontem esqueci de lhe informar sobre a localização da tumba de minha esposa. Ela não foi sepultada em Londres, mas sim em Paris, no Cemitério do Père-Lachaise. Seu lugar de repouso está localizado ao lado do famoso túmulo da condessa russa Elizabeth Alexandrovna Strogonoff-Demidoff. Desejo boa viagem. Inclua as despesas em seus honorários". Uau, aquilo era uma surpresa e tanto! O detetive iria retornar para seu país de origem, onde iria começar suas investigações.
Atravessar o canal da mancha era sempre algo que Yves Cloquet nunca se acostumara. Ele tinha enjôos na travessia. Era sempre algo que ele odiava fazer, mas trabalho é trabalho e aquele tinha que ser feito. Só que uma coisa era certa, se Yves Cloquet odiava a travessia do canal da mancha, ele também amava Paris. Estar de volta foi algo revigorante. Voltar a falar seu idioma natal, respirar o ar de pura arte da cidade, bom ele estava precisando disso. O detetive nunca gostou da língua inglesa. Ele a considerava muito primitiva e sem poesia nenhuma. Já o belo francês era um idioma clássico, romântico, com inúmeras possibilidades de expressão. Ele amava falar a beleza do idioma francês.
Após tomar um breve café em uma das centenas de cafeterias de Paris ele então se dirigiu ao Père-Lachaise. Esse cemitério era na verdade uma grande necrópole, com ruas, vielas e até avenidas entre as milhares de tumbas que se localizavam no local. Achar um túmulo aqui seria algo complicado, mas a localização que seu cliente havia dito era até bem fácil de encontrar. O túmulo da Condessa Strogonoff era muito conhecido por turistas por causa das lendas que o envolviam.
Quando morreu a rica Condessa deixou um estranho desafio em seu testamento. O texto dizia que se uma pessoa conseguisse passar um ano inteiro dormindo em seu túmulo, ela seria digna de receber sua enorme herança! Só havia um detalhe em tudo isso. A nobre russa tinha fama de vampira quando era viva (ou morta, dependendo do ponto de vista). Por essa razão, mesmo passados tantos anos de sua morte, ninguém ainda havia cumprido o desejo dela. Nenhum homem conseguiu passar mais de 300 dias dormindo em seu majestoso túmulo.
Era realmente uma verdadeira obra da arquitetura, com suas colunas romanas ao alto, detalhes e afrescos em suas paredes, incluindo um lobo selvagem e símbolos diversos, que muitos associavam ao ocultismo, ao sobrenatural. Porém o túmulo da condessa era apenas um detelha para ajudar na localização do mausoléu que realmente interessava ao detetive. E de fato esse estava exatamente ao lado da Condessa Strogonoff-Demidoff. Era bem mais modesto, claro, mas tinha seu charme macabro. Havia duas colunas e uma inscrição ao alto onde se lia a palavra Chieffo, o nome de sua família, ou melhor dizendo, o nome da família do marido.
Yves Cloquet acendeu seu charuto e ficou parado em frente ao mausoléu, olhando cada detalhe, pensando em cada possibilidade. Como alguém poderia roubar um corpo desse túmulo e não ser descoberto? Para entrar dentro era necessário quebrar a fechadura da porta principal e não havia entradas laterais e nem de fundo. O ladrão de corpos teria tido algum trabalho e esse iria fatalmente fazer barulho. Não havia guardas noturnos no mais conhecido cemitério de Paris? O que estava havendo ali? Algo não se encaixava.
O mais sinistro de tudo é que o corpo havia sido levado nos braços do raptor necrófilo, uma vez que seu caixão estava no mesmo lugar de antes, só que aberto, com a tampa levantada. A esposa de seu cliente já estava com sete dias de estado de decomposição, era algo insuportável de se colocar nos braços para se levar embora. Isso sem contar que diante de seu estado de putrefação certamente alguns membros iriam cair do corpo, como dedos, o nariz e quem sabe até mesmo um dos braços ou as pernas. Uma visão terrível. Que criminoso teria tanto sangue frio?
Cap. IV - A Necromancia, a necrofilia
O que o detetive Yves Cloquet não poderia desconfiar é que estava na verdade desempenhando o papel de um mero peão em um jogo de xadrez bastante macabro e sombrio. Ele estava sendo enganado, sendo tapeado. Era o bobo da corte das trevas. O corpo da esposa do Dr. John Michael Chieffo não havia sido roubado. Na verdade o próprio médico nefasto havia retirado o corpo dela de seu túmulo. Há tempos que não apresentava um comportamento normal, há tempos que tinha delírios dignos de um homem enlouquecido. Ele havia desenvolvido um gosto sórdido pelo oculto. Mandava pessoas para os países mais distantes apenas para comprar livros obscuros de ocultismo. Acreditava que Jesus tinha chegado ao conhecimento de antigas práticas que podiam até mesmo ressuscitar homens e mulheres mortas. Assim ele poderia ressuscitar uma mulher morta. Era apenas uma questão de tempo!
Ele até mesmo havia adotado um nome oculto, para ser usado em rituais macabros. Quando vestia o capuz negro e segurava uma bíblia negra, que segundo a lenda havia sido escrita pelo próprio Satanás, ele assumia a identidade de Morpheus, o filho querido dos sete príncipes do inferno profundo. E o corpo de sua amada esposa fazia parte desse esquema misterioso. Após trazer o corpo putrefado dela do cemitério, ele o teria mergulhado em uma banheira com formol e outras substâncias químicas que impediam o avanço da decomposição do corpo. Com a mente deteriorada, ele achava lindo os sinais da putrefação humana. Tão excitado teria ficado quando trouxe ela para casa que naquela mesmo noite a levaria para a cama, para uma horrenda noite de necrofilia desenfreada.
Clinicamente louco, Morpheus conseguia enganar a tudo e a todos, mas não conseguia se enganar quando tinha pequenos lapsos de racionalismo e lucidez. Em um momento de volta ao estado normal de sua mente, quando finalmente se deu conta do tamanho de sua loucura, ele teria se encarado no espelho. Desesperado e sem saber o que fazer, simplesmente deu um murro violento no vidro que refletia sua imagem. A violência do ato teria sido tão forte que ele veria o chão de sua sala de estar se tornar completamente vermelha com seu sangue. E no meio desse show de horrores ele gritava: "Perdão, meu Deus... perdão! Salve minha alma podre, salve a minha alma podre". E com as mãos levantadas para os céus, joelhos dobrados, chorava e chorava, sem cessar...
Porém seus momentos de lucidez eram breves. Tão logo passava alguns minutos e ele mergulhava de volta para a pura insanidade, gritando nomes de demônios pelas salas de sua bela casa. Ele os invocava e dizia para que tomasse conta de seu corpo, que o levasse a fazer sexo com o corpo meio decomposto de sua esposa. E lá ia ele, completamente nu, se entrelaçando ao lado da mulher morta em sua cama. Claro, o cheiro era simplesmente horrível, uma mistura insuportável de carne em decomposição com formol de necrotério. Só que Morpheus em seus delírios achava aquilo ainda mais excitante, fazendo sexo desesperado com uma mulher falecida. Ao beijar a boca dela percebia que a pele de seu rosto desprendia, caindo, como se fosse uma pasta agourenta e cheia de pus, com cheio de cemitério velho. Ah, como aquilo tudo o excitava em alto grau! A loucura... a loucura... quem poderia deter tanta abominação?
Cap. V - Maldade na Alma
Havia muita maldade no coração daquele homem. Diz o ditado que a boca transborda o que no coração está cheio. Bom, se isso é uma verdade, então no coração do Dr. John Michael Chieffo só havia ódio. Ele tinha um complexo de inferioridade desde a juventude. Costumava dizer a si mesmo que não era uma pessoa normal. No que ele tinha uma certa razão. Era um homem cheio de complexos e traumas não resolvidos. Sua aparência pessoal não era das melhores. Pode-se dizer tranquilamente que era um homem feio, destituído de beleza. Durante anos ele procurou por uma companheira, que surgiu naquela mulher que iria se tornar sua esposa.
Foi a única que realmente quis um relacionamento amoroso com ele em toda a sua vida. Na boca pequena, na fofoca dos salões, havia muitas suspeitas sobre ela. Provavelmente se relacionou com ele por causa de dinheiro e status, nada mais. Se isso era uma verdade o solitário médico não deu ouvidos. No fundo ele desconfiava disso, mas pense bem, aquela era provavelmente a única oportunidade dele de se casar e ter uma vida feliz, ou melhor dizendo, uma vida mais normal, fora das pequenas e grandes loucuras que de vez em quando voltavam para assombrá-lo.
O Dr. Chieffo sempre teve uma adoração pelo oculto, pelas trevas. Ele nem mais escondia isso. Não era ateu, mas acreditava nas forças do mal, nas forças do "anjo caído" como ele gostava de dizer ao se referir ao Diabo. Ele que tinha uma personalidade que poderia ser definida tranquilamente como "escrota", se identificou totalmente com Lúcifer e seus asseclas que foram expulsos por Deus do paraíso. Ele odiava as ladainhas dos crentes, dos cristãos. Ele queria estar ao lado mesmo de demônios... e como os tinha em sua mente, corroendo seu modo de ver o mundo ao seu redor.
Certa vez lendo um tratado de psiquiatria sobre características das mentes dos psicopatas ele foi se identificando prontamente com tudo aquilo que lia. Ele não tinha empatia por ninguém. Gostava de ouvir histórias de pessoas que tinham se dado mal, que tinham sido assassinadas, estupradas, etc. Ele ficava com alegria vendo a tristeza do próximo. Ele ficava satisfeito ao saber que outros pessoas sofriam. Sintomas claros de uma mente psicopata.
E também não tinha remorsos nenhum pelo que fazia. Certa vez ele estuprou uma de suas pacientes em seu próprio escritório. Deu gás para dormir para ela perder a consciência. Depois disso rapidamente baixou suas calças e começou a fazer coito não consentido com ela. Um horror. A paciente sem consciência na cama e ele em cima dela fazendo as maiores barbaridades. Tudo transcorreu sem maiores incidentes e ele, pra dizer a verdade, gostou da tal "experiência". Remorso pessoal? Não sentiu nenhum. Até cobrou mais do pobre marido de sua paciente como se estivesse que ainda ser pago por estuprá-la. Era um médico perverso, psicopata. Um psicopata de jaleco, se fazendo por doutor respeitável, é uma das maiores atrocidades que uma sociedade pode sofrer.
O pior aconteceu quando ele se convenceu que era um vampiro, sim um vampiro - não disse que ele tinha problemas psicológicos? Pois bem, aí está mais uma prova. Em determinado momento ele pensou que era um Lord vampiro. Então começou a usar roupas pretas e até pensou em matar algumas mulheres que andavam em ruas escuras e perigosas pela noite adentro em Londres. Desistiu na última hora. Já havia planejado tudo, inclusive alugando as carruagens adequadas para uma fuga rápida no meio da noite.
Ao invés disso passou a beber sangue, não sangue humano como ele havia planejado, mas sangue de boi, o verdadeiro, não aquele vinho barato que era vendido para marinheiros sem dentes na boca. Então ele colocava o sangue de boi em belas taças de cristal que havia comprado na Turquia. Usando suas roupas pretas, ele se sentia o próprio Conde Drácula. Só que logo o sangue de boi começou a lhe fazer mal, lhe dando fortes crises de diarreia. Sua fantasia, ora demente, ora infantil, de se tornar um verdadeiro vampiro, geralmente acabava no banheiro, gemendo de dor, no meio de um mar de fezes podres.
Cap. VI - Eu Errei...
- Meu Deus... Eu Errei!, Eu errei! - Pensava consigo mesmo o detetive, enquanto andava pelas ruas molhadas pela chuva. Era noite, as trevas dominavam.
Yves Cloquet acabava de sair de um encontro com um homem vital nas suas investigações. Era o tio da esposa do médico. Sim, o tio da mulher pela qual Yves procurava, ou melhor dizendo, pelo paradeiro de seu corpo. O velho homem ficou realmente horrorizado quando soube que o corpo de sua sobrinha havia desaparecido da tumba! Quem poderia ser capaz de tamanha crueldade, desrespeito e insanidade?
Era um homem de estilo aquele. O tio da finada era um homem elegante, já passado dos 50 anos de idade. Cabelos brancos, porém rosto preservado, sem rugas. Provavelmente não era homem de muitas expressões faciais como Yves acabaria descobrindo. Ele usava uma roupa elegante e tinha um estilo de barba que ficava muito bem em um homem do século XVIII. Ofereceu um bom copo de vinho para o detetive e sentou-se para dar sua opinião sobre o caso.
Fumando um fino charuto, das marcas mais caras do mercado, ele foi fazendo observações, enquanto soltava brumas e nuvens suaves do tabaco no ar. Era curioso e observador. Frisou em cada detalhe da roupa do detetive à sua frente. Também estudou meticulosamente suas expressões, seus maneirismos. Nada parecia passar despercebido.
Então começou a falar...
- Ela era uma pessoa muito graciosa, digo observando seu aspecto físico obviamente. Poderia dizer que tinha talvez uma testa um pouco fora dos padrões, mas o conjunto geral de seu rosto era agradável.
Parou, bebeu um gole de vinho e continuou...
- Porém tinha personalidade de um cão de caça furioso. Não se dava bem com seus pais e logo cedo, já aos 17 anos de idade, tornou a vida com eles tão insuportável que caiu na vida. Foi ser dançarina de um clube no quarteirão boêmio de Paris. Engraçou-se com um jovem, que não tinha nada a oferecer a ela, a não ser uma gravidez inesperada e indesejada.
- O que aconteceu com esse namorado? - Quis saber o detetive enquanto fazia anotações.
- Não sei. Era um desses trabalhadores avulsos, de porto. Nunca parava em lugar algum e tenho sérias dúvidas se algum dia foi letrado. Penso... - parou, deu uma tragada em seu charuto e concluiu - seguramete era um jovem analfabeto, de poucas letras ou nenhum estudo.
- E o que aconteceu a partir daí, ela teve o filho? - Yves achou tudo muito interessante.
- Sim, teve o filho e deu para adoção. Era uma jovem sem eira e nem beira. Não quis estudar, não quis melhorar na vida. A baixinha era um poço sem fundo. Ignorante, irascível, nada boa de conversar. Uma vez veio até mim para pedir dinheiro. Neguei. Neguei...
- E depois de ter o filho e ter dado para adoção, o que ocorreu?
- Voltou para a dança. Começou a se prostituir. Não tinha mais nada a oferecer. Os encantos da juventude se vão rapidamente para quem se deita com muitos homens. A alma perece. A alma dessas mulheres apodrece. Se tornam mulheres da vida, mulheres de ninguém.... Mas ela teve sua dose de sorte do destino...
- O que significa? - Perguntou o detetive.
- Ela arranjou um homem que gostou de seus encantos femininos. Ele o tirou da prostituição. Lhe deu um nome e sobrenome, Um status social. Era médico. Homem mais velho, obviamente. Um tanto estranho. Estive com ele pelo menos em três ocasiões. Em todas elas me pareceu um sujeito esquisito, de alma sombria.
- Está falando de John Michael Chieffo? - Indagou o investigador Yves.
- Sim, certamente, ele mesmo. Aliás meu caro, me permita o devaneio. Se eu fosse você pensaria seriamente em investigar seu próprio cliente. Essa bizarrice que me contou parece bem coisa desse ser soturno e obscuro. Esse médico nunca me pareceu alguém com o juízo certo, com a cabeça no lugar. Sei não... sei não... Não compraria nada dele na confiança. Parece ser uma figura satânica...
Essa observação atingiu Yves como um raio... Será que aquele homem à sua frente teria razão? O corpo teria sido roubado justamente pelo próprio marido? Se sim, qual era o objetivo de se contratar um detetive particular para localizá-la? Onde os peças não encaixavam direito nesse grande quebra-cabeças?
Capítulo Final - Sombras do túmulo
Yves Cloquet bateu palmas na frente da grande mansão e ninguém respondeu. Tentou de novo. Nada! Parecia um lugar abandonado, sem nenhuma alma viva por perto. Era a grande mansão do Dr. Chieffo. O detetive queria tirar algumas dúvidas, colocar alguns pontos para seu cliente (agora suspeito) responder. Como ninguém apareceu para lhe atender ele decidiu ver se o grande portão de ferro à sua frente estava aberto. Para sua surpresa sim, estava aberto! Algo inesperado. Adentrou o grande jardim. As janelas da velha casa estavam fechadas.
Na porta da frente, a mesma coisa. Estava aberta! Incrível a falta de segurança daquele lugar. Entrou na casa, viu um vulto passando pelo corredor à direita. A casa estava toda fechada, a escuridão era completa. Uma pequena luz vinha do mesmo corredor onde o detetive pensou ter visto alguém passando. Resolveu ir por ali, para tentar localizar alguém. Entrou no grande corredor que ia em direção à biblioteca. Ali havia uma luz... Provavelmente alguém ocupava aquele lugar. Talvez o Doutor estivesse imerso em seus estudos, em suas leituras. Chieffo estaria ali?
Yves Cloquet entrou na biblioteca e encontrou o médico em uma das mesas, lendo um velho livro que parecia ter séculos de existência. O frio era intenso, o que o deixou meio cismado. Não era para estar naquelas baixas temperaturas. O Dr. Chieffo percebeu a presença do detetive. Sem tirar os olhos de sua leitura convidou o detetive para sentar-se à sua frente. O clima era pouco amistoso.
- Sente-se, por favor! - Convidou o médico - A que devo a honra de sua visita? - Plenamente incisivo completou a frase.
- Queria lhe fazer algumas perguntas.
- Pois não, pergunte, faça as perguntas, se tiver as respostas, as darei...
- O senhor teria algo a ver com o desaparecimento do corpo de sua própria esposa? - Foi duro, um choque para o médico ouvir aquele questionamento, assim de forma tão surpreendente.
O médico colocou o livro em cima da mesa. Olhou fixamente os olhos do investigador. Estava pálido. Não era uma imagem bonita de se ver. Parecia estar em outro plano, em outra dimensão de existência.
- Sabe, meu caro, hoje pela manhã decidi que iria terminar com a dor da existência. Viver, após a morte de minha esposa, se tornou o maior dos tormentos. Viver na infelicidade não é viver. É apenas exisitr. A mera existência é para os medíocres, não para homens intelectualmente superiores como eu! - Terminou sua explicação com o dedo em riste.
Yves ficou completamente surpreso com as declarações, mas aquilo não lhe respondia. A questão ficava em aberto.
- Hoje pela manhã peguei minha arma de fogo. Coloquei ao lado da cama, enchi a máquina da morte de balas, pensei um pouco, ponderei... Olhei uma velha foto da minha querida esposa, única razão de viver e...
- Ainda bem que não seguiu em frente com esse ato de tirar a própria vida - Disse yves.
- Não segui? Vá ao quarto ao lado... - Desafiou o médico.
Yves não entendeu. Levantou-se e dirigiu ao quarto. O que viu jamais esqueceria. Na cama jazia o corpo do Dr.Chieffo. Ele havia dado um tiro na cabeça. Nas suas mãos ainda estava a arma fumegante. Os miolos caíam no travesseiro ao lado. Estava morto... morto.. mas como era possível? Ele acabara de falar com o De Cujos!!!
Yves voltou para a Biblioteca e nada... não havia ninguém... O detetive não pensou duas vezes. Pegou seu chapéu e correu para fora da mansão. Ela havia tido uma experiência sobrenatural, algo que jamais pensava existir. Nunca havia sido um espiritualista, absolutamente não! Quando finalmente conseguiu sair da mansão entendeu plenamente o que que havia presenciado. Um arrepio vindo dos infernos percorreu todo o seu corpo. Era o horror, o horror, não havia salvação.
A polícia foi chamada. Os peritos comprovaram o suicídio. O corpo da esposa foi encontrada em outro quarto da mansão. Estava em uma espécie de altar. O ladrão do corpo havia sido o próprio médico que jamais aceitara a morte da esposa. Ambos foram enterrados lado a lado no cemitério da cidade. Agora poderiam passar a eternidade juntos...
Pablo Aluísio.