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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O Caso da Alma Sombria

Cap. I - O Dia Seguinte
Depois de solucionar o caso que a imprensa começou a chamar de "O Estranho caso das sombras eternas", o detetive Yves Cloquet tentava acalmar a adrenalina dos dias anteriores. Sobre sua mesa uma série de jornais do dia, revelando todos os detalhes do que havia acontecido. Algumas informações não estavam absolutamente certas, mas havia ainda muito a celebrar. Seu nome surgia em todas as reportagens. Yves sabia que isso era propaganda a favor. Provavelmente haveria novos clientes, novos contratos. Afinal ele era um profissional liberal que vivia de seu trabalho. Vivia um dia de cada vez.

Porém esse ainda era o dia seguinte, um momento para tentar relaxar e saborear os frutos do serviço prestado. E assim, após ler todos as edições diárias do jornal, Yves Cloquet finalmente conseguiu descansar. Empurrou a cadeira para trás, acendeu um fino cigarro francês que havia comprado em Paris, desde a última vez que esteve lá. E começou a pensar sobre a vida. Poderia haver novos desafios? E que protocolos de segurança deveria adotar daqui para frente? Ele havia desmascarado um grupo religioso fanático. Os líderes estavam presos, mas os seguidores ainda continuavam por aí, nas ruas. E eles poderiam tentar se vingar dele.

Yves Cloquet abriu a gaveta de cima de sua escrivaninha, para conferir se sua arma de fogo estava à mão. Claro, não poderia se baixar a guarda. Ele pensou, pensou... de vez em quando dava um pequeno sorriso, se lembrando dos detalhes do caso que havia terminado. Então seus pensamentos foram interrompidos por batidas na porta de seu escritório. Yves colocou seu cigarro no cinzero, ajeitou seu terno e foi em direção à porta. Poderia ser um novo cliente. Nossa, ele sabia que seu nome nos jornais iria melhorar sua clientela, só não sabia que havia sido tão rápido.

Ao abrir a porta se deparou com um homem elegante, na faixa dos 65 anos de idade. Muito bem trajado, com terno e gravata impecáveis. Chapéu de linha classe A. Tudo muito elegante e discreto. Yves então o convidou para se sentar. Apresentações formais foram feitas. O homem à sua frente era um médico bem renomado em Londres. John Michael Chieffo era doutor em doenças contagiosas da prestigiada Universidade de Oxford. Um nome muito respeitado e admirado na elite médica e científica da capital inglesa. Um grande nome, que Yves já havia ouvido falar, que já tinha lido em jornais londrinos. Mas o que ele estaria fazendo ali?

Queria contratar os serviços do detetive. E então o refinado senhor começou a explicar o caso que desejava que Yves deveria resolver. Ele havia perdido a esposa há mais ou menos seis meses. Ela foi enterrada no cemitério da cidade. Uma dor profunda havia atingido seu coração. Mesmo sendo um homem muito atarefado ele procurava ir todos os fins de semana ao cemitério, para colocar flores no túmulo de sua amada esposa. Era um pequeno ritual que afagava sua dor. Porém no último fim de semana ele havia sofrido um choque terrível. O corpo de sua amada esposa havia sido roubado de seu túmulo. Ele chorou e chorou na frente de Yves. Quem poderia ter cometido tamanho ato de crueldade humana? Onde estaria o corpo de sua amada esposa? Quem era o culpado de um crime tão vil? Seria algum inimigo de seu passado que ele desconhecia? Perguntas, perguntas, que Yves agora deveria responder em seu novo caso de mistério. 

Cap. II - O Dr. Chieffo
O Dr. Joseph Michael Chieffo era uma figura sinistra. Para entender bem seus problemas psicológicos era necessário voltar ao passado. Ele havia sido criado por um homem rico, mas analfabeto e violento. Ele era dono de terras no deserto e espancava sistematicamente todos os seus filhos. Todos eles desenvolveram traumas ao longo de suas vidas por causa disso. A sorte de Joseph é que ele conseguiu entrar em uma universidade de medicina, mesmo que fosse privada, já que ele não tinha nível intelectual para passar nos exames de admissão de uma universidade pública, onde o que contava era a capacidade.

No íntimo o Dr. Chieffo sabia que era uma figura medíocre e ele tinha vários ressentimentos por isso. Dono de uma dicção problemática, era complicado para ele se comunicar. Isso obviamente aumentava seu nível de inferioridade. Com o tempo isso tudo foi virando puro ódio. Ele tinha se dado bem por causa de alguns momentos de sorte em sua existência, mas fora disso não era uma pessoa para se sentar e conversar sobre grandes temas da vida. Intelectualmente era medíocre e tacanho, se agarrando em velhos valores como machismo, opressão e violência. No fundo não gostava de ninguém, nem da esposa, que havia morrido. Era tudo jogo de cena para os outros.

Há alguns anos tinha ficado impotente por causa de problemas de saúde. Isso o destruiu ainda mais psicologicamente. Acostumado a praticamente estuprar a esposa por longos anos, ele foi perdendo a macheza que pensava possuir. Entrou em um grupo político radical que pregava racismo, machismo e homofobia por onde passava. Ele se considerava superior a todos, pois era rico, branco e hétero. Era mau caráter e materialista, possessivo, caluniador, difamador e ofensivo com todos, mas principalmente com seu parentes que não se enquadrassem em seu modo de pensar o mundo. Como havia sido dito, era um medíocre.

Embora tivesse formação católica (sua mãe havia sido uma católica fervorosa), o Dr. Joseph Michael Chieffo passou a flertar com o ocultismo, isso por si só já era algo espantoso, pois na maior parte da vida ele havia sido um ateu. Vendo a velhice (e a morte) chegar ele então decidiu que iria crer. Era um covarde existencial. O ocultismo sinistro lhe pareceu uma boa opção. Ele não gostava do cristianismo, achava que Jesus Cristo se comportava como um vagabundo, sem trabalhar, cercado por outros vagabundos. Sua alma, como se pôde perceber, já pertencia ao inimigo, ao ser das trevas eternas.

Dentro de seu grupo ocultista ele adotou o pseudônimo de Morpheus "deum placamentis decedebat". Essa última expressão latina poderia se traduzida como ser humano sinistro, macabro, amante das trevas e do mal. Sua comunidade sombria era secreta, ninguém poderia saber o que se passava por trás de suas portas. Eles compraram um antigo sobrado no centro de Londres e faziam reuniões para discutir e debater. A maioria dos membros era formada por pessoas ricas, mas em essência todos eles eram péssimas pessoas. Só lhes interessavam o ódio, só lhes interessavam o mal. Era um grupo que reunia as piores pessoas do mundo, com as piores intenções. 

Cap. III - O Túmulo da Condessa
O detetive Yves Cloquet estava pronto para trabalhar em seu novo caso quando recebeu um telegrama do Dr. John Michael Chieffo. Ele dizia: "Lamento pelo lapso. Ontem esqueci de lhe informar sobre a localização da tumba de minha esposa. Ela não foi sepultada em Londres, mas sim em Paris, no Cemitério do Père-Lachaise. Seu lugar de repouso está localizado ao lado do famoso túmulo da condessa russa Elizabeth Alexandrovna Strogonoff-Demidoff. Desejo boa viagem. Inclua as despesas em seus honorários". Uau, aquilo era uma surpresa e tanto! O detetive iria retornar para seu país de origem, onde iria começar suas investigações.

Atravessar o canal da mancha era sempre algo que Yves Cloquet nunca se acostumara. Ele tinha enjôos na travessia. Era sempre algo que ele odiava fazer, mas trabalho é trabalho e aquele tinha que ser feito. Só que uma coisa era certa, se Yves Cloquet odiava a travessia do canal da mancha, ele também amava Paris. Estar de volta foi algo revigorante. Voltar a falar seu idioma natal, respirar o ar de pura arte da cidade, bom ele estava precisando disso. O detetive nunca gostou da língua inglesa. Ele a considerava muito primitiva e sem poesia nenhuma. Já o belo francês era um idioma clássico, romântico, com inúmeras possibilidades de expressão. Ele amava falar a beleza do idioma francês.

Após tomar um breve café em uma das centenas de cafeterias de Paris ele então se dirigiu ao Père-Lachaise. Esse cemitério era na verdade uma grande necrópole, com ruas, vielas e até avenidas entre as milhares de tumbas que se localizavam no local. Achar um túmulo aqui seria algo complicado, mas a localização que seu cliente havia dito era até bem fácil de encontrar. O túmulo da Condessa Strogonoff era muito conhecido por turistas por causa das lendas que o envolviam.

Quando morreu a rica Condessa deixou um estranho desafio em seu testamento. O texto dizia que se uma pessoa conseguisse passar um ano inteiro dormindo em seu túmulo, ela seria digna de receber sua enorme herança! Só havia um detalhe em tudo isso. A nobre russa tinha fama de vampira quando era viva (ou morta, dependendo do ponto de vista). Por essa razão, mesmo passados tantos anos de sua morte, ninguém ainda havia cumprido o desejo dela. Nenhum homem conseguiu passar mais de 300 dias dormindo em seu majestoso túmulo.

Era realmente uma verdadeira obra da arquitetura, com suas colunas romanas ao alto, detalhes e afrescos em suas paredes, incluindo um lobo selvagem e símbolos diversos, que muitos associavam ao ocultismo, ao sobrenatural. Porém o túmulo da condessa era apenas um detelha para ajudar na localização do mausoléu que realmente interessava ao detetive. E de fato esse estava exatamente ao lado da Condessa Strogonoff-Demidoff. Era bem mais modesto, claro, mas tinha seu charme macabro. Havia duas colunas e uma inscrição ao alto onde se lia a palavra Chieffo, o nome de sua família, ou melhor dizendo, o nome da família do marido.

Yves Cloquet acendeu seu charuto e ficou parado em frente ao mausoléu, olhando cada detalhe, pensando em cada possibilidade. Como alguém poderia roubar um corpo desse túmulo e não ser descoberto? Para entrar dentro era necessário quebrar a fechadura da porta principal e não havia entradas laterais e nem de fundo. O ladrão de corpos teria tido algum trabalho e esse iria fatalmente fazer barulho. Não havia guardas noturnos no mais conhecido cemitério de Paris? O que estava havendo ali? Algo não se encaixava.

O mais sinistro de tudo é que o corpo havia sido levado nos braços do raptor necrófilo, uma vez que seu caixão estava no mesmo lugar de antes, só que aberto, com a tampa levantada. A esposa de seu cliente já estava com sete dias de estado de decomposição, era algo insuportável de se colocar nos braços para se levar embora. Isso sem contar que diante de seu estado de putrefação certamente alguns membros iriam cair do corpo, como dedos, o nariz e quem sabe até mesmo um dos braços ou as pernas. Uma visão terrível. Que criminoso teria tanto sangue frio? 

Cap. IV - A Necromancia, a necrofilia
O que o detetive Yves Cloquet não poderia desconfiar é que estava na verdade desempenhando o papel de um mero peão em um jogo de xadrez bastante macabro e sombrio. Ele estava sendo enganado, sendo tapeado. Era o bobo da corte das trevas. O corpo da esposa do Dr. John Michael Chieffo não havia sido roubado. Na verdade o próprio médico nefasto havia retirado o corpo dela de seu túmulo. Há tempos que não apresentava um comportamento normal, há tempos que tinha delírios dignos de um homem enlouquecido. Ele havia desenvolvido um gosto sórdido pelo oculto. Mandava pessoas para os países mais distantes apenas para comprar livros obscuros de ocultismo. Acreditava que Jesus tinha chegado ao conhecimento de antigas práticas que podiam até mesmo ressuscitar homens e mulheres mortas. Assim ele poderia ressuscitar uma mulher morta. Era apenas uma questão de tempo!

Ele até mesmo havia adotado um nome oculto, para ser usado em rituais macabros. Quando vestia o capuz negro e segurava uma bíblia negra, que segundo a lenda havia sido escrita pelo próprio Satanás, ele assumia a identidade de Morpheus, o filho querido dos sete príncipes do inferno profundo. E o corpo de sua amada esposa fazia parte desse esquema misterioso. Após trazer o corpo putrefado dela do cemitério, ele o teria mergulhado em uma banheira com formol e outras substâncias químicas que impediam o avanço da decomposição do corpo. Com a mente deteriorada, ele achava lindo os sinais da putrefação humana. Tão excitado teria ficado quando trouxe ela para casa que naquela mesmo noite a levaria para a cama, para uma horrenda noite de necrofilia desenfreada.

Clinicamente louco, Morpheus conseguia enganar a tudo e a todos, mas não conseguia se enganar quando tinha pequenos lapsos de racionalismo e lucidez. Em um momento de volta ao estado normal de sua mente, quando finalmente se deu conta do tamanho de sua loucura, ele teria se encarado no espelho. Desesperado e sem saber o que fazer, simplesmente deu um murro violento no vidro que refletia sua imagem. A violência do ato teria sido tão forte que ele veria o chão de sua sala de estar se tornar completamente vermelha com seu sangue. E no meio desse show de horrores ele gritava: "Perdão, meu Deus... perdão! Salve minha alma podre, salve a minha alma podre". E com as mãos levantadas para os céus, joelhos dobrados, chorava e chorava, sem cessar...

Porém seus momentos de lucidez eram breves. Tão logo passava alguns minutos e ele mergulhava de volta para a pura insanidade, gritando nomes de demônios pelas salas de sua bela casa. Ele os invocava e dizia para que tomasse conta de seu corpo, que o levasse a fazer sexo com o corpo meio decomposto de sua esposa. E lá ia ele, completamente nu, se entrelaçando ao lado da mulher morta em sua cama. Claro, o cheiro era simplesmente horrível, uma mistura insuportável de carne em decomposição com formol de necrotério. Só que Morpheus em seus delírios achava aquilo ainda mais excitante, fazendo sexo desesperado com uma mulher falecida. Ao beijar a boca dela percebia que a pele de seu rosto desprendia, caindo, como se fosse uma pasta agourenta e cheia de pus, com cheio de cemitério velho. Ah, como aquilo tudo o excitava em alto grau! A loucura... a loucura... quem poderia deter tanta abominação? 

Cap. V - Maldade na Alma
Havia muita maldade no coração daquele homem. Diz o ditado que a boca transborda o que no coração está cheio. Bom, se isso é uma verdade, então no coração do Dr. John Michael Chieffo só havia ódio. Ele tinha um complexo de inferioridade desde a juventude. Costumava dizer a si mesmo que não era uma pessoa normal. No que ele tinha uma certa razão. Era um homem cheio de complexos e traumas não resolvidos. Sua aparência pessoal não era das melhores. Pode-se dizer tranquilamente que era um homem feio, destituído de beleza. Durante anos ele procurou por uma companheira, que surgiu naquela mulher que iria se tornar sua esposa.

Foi a única que realmente quis um relacionamento amoroso com ele em toda a sua vida. Na boca pequena, na fofoca dos salões, havia muitas suspeitas sobre ela. Provavelmente se relacionou com ele por causa de dinheiro e status, nada mais. Se isso era uma verdade o solitário médico não deu ouvidos. No fundo ele desconfiava disso, mas pense bem, aquela era provavelmente a única oportunidade dele de se casar e ter uma vida feliz, ou melhor dizendo, uma vida mais normal, fora das pequenas e grandes loucuras que de vez em quando voltavam para assombrá-lo.

O Dr. Chieffo sempre teve uma adoração pelo oculto, pelas trevas. Ele nem mais escondia isso. Não era ateu, mas acreditava nas forças do mal, nas forças do "anjo caído" como ele gostava de dizer ao se referir ao Diabo. Ele que tinha uma personalidade que poderia ser definida tranquilamente como "escrota", se identificou totalmente com Lúcifer e seus asseclas que foram expulsos por Deus do paraíso. Ele odiava as ladainhas dos crentes, dos cristãos. Ele queria estar ao lado mesmo de demônios... e como os tinha em sua mente, corroendo seu modo de ver o mundo ao seu redor.

Certa vez lendo um tratado de psiquiatria sobre características das mentes dos psicopatas ele foi se identificando prontamente com tudo aquilo que lia. Ele não tinha empatia por ninguém. Gostava de ouvir histórias de pessoas que tinham se dado mal, que tinham sido assassinadas, estupradas, etc. Ele ficava com alegria vendo a tristeza do próximo. Ele ficava satisfeito ao saber que outros pessoas sofriam. Sintomas claros de uma mente psicopata.

E também não tinha remorsos nenhum pelo que fazia. Certa vez ele estuprou uma de suas pacientes em seu próprio escritório. Deu gás para dormir para ela perder a consciência. Depois disso rapidamente baixou suas calças e começou a fazer coito não consentido com ela. Um horror. A paciente sem consciência na cama e ele em cima dela fazendo as maiores barbaridades. Tudo transcorreu sem maiores incidentes e ele, pra dizer a verdade, gostou da tal "experiência". Remorso pessoal? Não sentiu nenhum. Até cobrou mais do pobre marido de sua paciente como se estivesse que ainda ser pago por estuprá-la. Era um médico perverso, psicopata. Um psicopata de jaleco, se fazendo por doutor respeitável, é uma das maiores atrocidades que uma sociedade pode sofrer.

O pior aconteceu quando ele se convenceu que era um vampiro, sim um vampiro - não disse que ele tinha problemas psicológicos? Pois bem, aí está mais uma prova. Em determinado momento ele pensou que era um Lord vampiro. Então começou a usar roupas pretas e até pensou em matar algumas mulheres que andavam em ruas escuras e perigosas pela noite adentro em Londres. Desistiu na última hora. Já havia planejado tudo, inclusive alugando as carruagens adequadas para uma fuga rápida no meio da noite.

Ao invés disso passou a beber sangue, não sangue humano como ele havia planejado, mas sangue de boi, o verdadeiro, não aquele vinho barato que era vendido para marinheiros sem dentes na boca. Então ele colocava o sangue de boi em belas taças de cristal que havia comprado na Turquia. Usando suas roupas pretas, ele se sentia o próprio Conde Drácula. Só que logo o sangue de boi começou a lhe fazer mal, lhe dando fortes crises de diarreia. Sua fantasia, ora demente, ora infantil, de se tornar um verdadeiro vampiro, geralmente acabava no banheiro, gemendo de dor, no meio de um mar de fezes podres. 

Cap. VI - Eu Errei...

- Meu Deus... Eu Errei!, Eu errei! - Pensava consigo mesmo o detetive, enquanto andava pelas ruas molhadas pela chuva. Era noite, as trevas dominavam.

Yves Cloquet acabava de sair de um encontro com um homem vital nas suas investigações. Era o tio da esposa do médico. Sim, o tio da mulher pela qual Yves procurava, ou melhor dizendo, pelo paradeiro de seu corpo. O velho homem ficou realmente horrorizado quando soube que o corpo de sua sobrinha havia desaparecido da tumba! Quem poderia ser capaz de tamanha crueldade, desrespeito e insanidade?

Era um homem de estilo aquele. O tio da finada era um homem elegante, já passado dos 50 anos de idade. Cabelos brancos, porém rosto preservado, sem rugas. Provavelmente não era homem de muitas expressões faciais como Yves acabaria descobrindo. Ele usava uma roupa elegante e tinha um estilo de barba que ficava muito bem em um homem do século XVIII. Ofereceu um bom copo de vinho para o detetive e sentou-se para dar sua opinião sobre o caso.

Fumando um fino charuto, das marcas mais caras do mercado, ele foi fazendo observações, enquanto soltava brumas e nuvens suaves do tabaco no ar. Era curioso e observador. Frisou em cada detalhe da roupa do detetive à sua frente. Também estudou meticulosamente suas expressões, seus maneirismos. Nada parecia passar despercebido.

Então começou a falar...

- Ela era uma pessoa muito graciosa, digo observando seu aspecto físico obviamente. Poderia dizer que tinha talvez uma testa um pouco fora dos padrões, mas o conjunto geral de seu rosto era agradável.

Parou, bebeu um gole de vinho e continuou...

- Porém tinha personalidade de um cão de caça furioso. Não se dava bem com seus pais e logo cedo, já aos 17 anos de idade, tornou a vida com eles tão insuportável que caiu na vida. Foi ser dançarina de um clube no quarteirão boêmio de Paris. Engraçou-se com um jovem, que não tinha nada a oferecer a ela, a não ser uma gravidez inesperada e indesejada.

- O que aconteceu com esse namorado? - Quis saber o detetive enquanto fazia anotações.

- Não sei. Era um desses trabalhadores avulsos, de porto. Nunca parava em lugar algum e tenho sérias dúvidas se algum dia foi letrado. Penso... - parou, deu uma tragada em seu charuto e concluiu - seguramete era um jovem analfabeto, de poucas letras ou nenhum estudo.

- E o que aconteceu a partir daí, ela teve o filho? - Yves achou tudo muito interessante.

- Sim, teve o filho e deu para adoção. Era uma jovem sem eira e nem beira. Não quis estudar, não quis melhorar na vida. A baixinha era um poço sem fundo. Ignorante, irascível, nada boa de conversar. Uma vez veio até mim para pedir dinheiro. Neguei. Neguei...

- E depois de ter o filho e ter dado para adoção, o que ocorreu?

- Voltou para a dança. Começou a se prostituir. Não tinha mais nada a oferecer. Os encantos da juventude se vão rapidamente para quem se deita com muitos homens. A alma perece. A alma dessas mulheres apodrece. Se tornam mulheres da vida, mulheres de ninguém.... Mas ela teve sua dose de sorte do destino...

- O que significa? - Perguntou o detetive.

- Ela arranjou um homem que gostou de seus encantos femininos. Ele o tirou da prostituição. Lhe deu um nome e sobrenome, Um status social. Era médico. Homem mais velho, obviamente. Um tanto estranho. Estive com ele pelo menos em três ocasiões. Em todas elas me pareceu um sujeito esquisito, de alma sombria.

- Está falando de John Michael Chieffo? - Indagou o investigador Yves.

- Sim, certamente, ele mesmo. Aliás meu caro, me permita o devaneio. Se eu fosse você pensaria seriamente em investigar seu próprio cliente. Essa bizarrice que me contou parece bem coisa desse ser soturno e obscuro. Esse médico nunca me pareceu alguém com o juízo certo, com a cabeça no lugar. Sei não... sei não... Não compraria nada dele na confiança. Parece ser uma figura satânica...

Essa observação atingiu Yves como um raio... Será que aquele homem à sua frente teria razão? O corpo teria sido roubado justamente pelo próprio marido? Se sim, qual era o objetivo de se contratar um detetive particular para localizá-la? Onde os peças não encaixavam direito nesse grande quebra-cabeças?

Capítulo Final - Sombras do túmulo
Yves Cloquet bateu palmas na frente da grande mansão e ninguém respondeu. Tentou de novo. Nada! Parecia um lugar abandonado, sem nenhuma alma viva por perto. Era a grande mansão do Dr. Chieffo. O detetive queria tirar algumas dúvidas, colocar alguns pontos para seu cliente (agora suspeito) responder. Como ninguém apareceu para lhe atender ele decidiu ver se o grande portão de ferro à sua frente estava aberto. Para sua surpresa sim, estava aberto! Algo inesperado. Adentrou o grande jardim. As janelas da velha casa estavam fechadas.

Na porta da frente, a mesma coisa. Estava aberta! Incrível a falta de segurança daquele lugar. Entrou na casa, viu um vulto passando pelo corredor à direita. A casa estava toda fechada, a escuridão era completa. Uma pequena luz vinha do mesmo corredor onde o detetive pensou ter visto alguém passando. Resolveu ir por ali, para tentar localizar alguém. Entrou no grande corredor que ia em direção à biblioteca. Ali havia uma luz... Provavelmente alguém ocupava aquele lugar. Talvez o Doutor estivesse imerso em seus estudos, em suas leituras. Chieffo estaria ali?

Yves Cloquet entrou na biblioteca e encontrou o médico em uma das mesas, lendo um velho livro que parecia ter séculos de existência. O frio era intenso, o que o deixou meio cismado. Não era para estar naquelas baixas temperaturas. O Dr. Chieffo percebeu a presença do detetive. Sem tirar os olhos de sua leitura convidou o detetive para sentar-se à sua frente. O clima era pouco amistoso.

- Sente-se, por favor! - Convidou o médico - A que devo a honra de sua visita? - Plenamente incisivo completou a frase.

- Queria lhe fazer algumas perguntas.

- Pois não, pergunte, faça as perguntas, se tiver as respostas, as darei...

- O senhor teria algo a ver com o desaparecimento do corpo de sua própria esposa? - Foi duro, um choque para o médico ouvir aquele questionamento, assim de forma tão surpreendente.

O médico colocou o livro em cima da mesa. Olhou fixamente os olhos do investigador. Estava pálido. Não era uma imagem bonita de se ver. Parecia estar em outro plano, em  outra dimensão de existência.

- Sabe, meu caro, hoje pela manhã decidi que iria terminar com a dor da existência. Viver, após a morte de minha esposa, se tornou o maior dos tormentos. Viver na infelicidade não é viver. É apenas exisitr. A mera existência é para os medíocres, não para homens intelectualmente superiores como eu! - Terminou sua explicação com o dedo em riste.

Yves ficou completamente surpreso com as declarações, mas aquilo não lhe respondia. A questão ficava em aberto.

- Hoje pela manhã peguei minha arma de fogo. Coloquei ao lado da cama, enchi a máquina da morte de balas, pensei um pouco, ponderei... Olhei uma velha foto da minha querida esposa, única razão de viver e...

- Ainda bem que não seguiu em frente com esse ato de tirar a própria vida - Disse yves.

- Não segui? Vá ao quarto ao lado... - Desafiou o médico.

Yves não entendeu. Levantou-se e dirigiu ao quarto. O que viu jamais esqueceria. Na cama jazia o corpo do Dr.Chieffo. Ele havia dado um tiro na cabeça. Nas suas mãos ainda estava a arma fumegante. Os miolos caíam no travesseiro ao lado. Estava morto... morto.. mas como era possível? Ele acabara de falar com o De Cujos!!!

Yves voltou para a Biblioteca e nada... não havia ninguém... O detetive não pensou duas vezes. Pegou seu chapéu e correu para fora da mansão. Ela havia tido uma experiência sobrenatural, algo que jamais pensava existir. Nunca havia sido um espiritualista, absolutamente não! Quando finalmente conseguiu sair da mansão entendeu plenamente o que que havia presenciado. Um arrepio vindo dos infernos percorreu todo o seu corpo. Era o horror, o horror, não havia salvação.

A polícia foi chamada. Os peritos comprovaram o suicídio. O corpo da esposa foi encontrada em outro quarto da mansão. Estava em uma espécie de altar. O ladrão do corpo havia sido o próprio médico que jamais aceitara a morte da esposa. Ambos foram enterrados lado a lado no cemitério da cidade. Agora poderiam passar a eternidade juntos...

Pablo Aluísio.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O Estranho Caso das Sombras Eternas

Cap. I - A Chuva sempre é Eterna?
Yves Cloquet se considerava um bom cidadão francês que morava em Londres. Ele trabalhava como detetive particular em um pequeno escritório localizado na área menos nobre e bonita da cidade inglesa. Tempos duros, tempos complicados aqueles. Geralmente era contratado por homens desconfiados de suas esposas. Na maioria das vezes isso não levava a nada, outras vezes ele tinha que dizer aos maridos que eles estavam realmente sendo traídos. Era o momento em que a mera desconfiança virava convicção e fato verdadeiro. Era sempre o mesmo melodrama barato. Coisa irritante. Porém de tempos em tempos Cloquet era surpreendido por um caso interessante. Nesse leque estava casos de pessoas desaparecidas. Naquela cidade infernal não era incomum alguém simplesmente fugir de casa e nunca mais voltar.

Problemas emocionais, familiares, eram a rotina. A convivência em casa se tornava tão insuportável para certas pessoas que elas simplesmente iam embora. Na longa experiência do detetive esse era o principal motivo quando um jovem sumia de casa. Outra era de fundo passional. Geralmente jovens garotas apaixonadas por rapazes que não contavam com a aprovação dos pais. Ao invés de lidar com todo o stress desse tipo de situação, com brigas e mais brigas sem fim, era melhor pegar as malas, pular a janela do quarto de adolescente e ganhar o mundo. Simples assim, ir embora dava uma maravilhosa sensação de liberdade para todos esses jovens. Quem poderia culpá-los? A vida familair, a depender dos parentes de cada um, realmente pode se tornar algo intolerável. Melhor fugir, procurando ser feliz, do que viver dando desculpas a quem é especialista em fazer a vida dos outros uma existência infeliz.

Naquela manhã Cloquet saiu de casa sob chuva... novamente. A chuva em Londres parecia eterna. Nessa cidade cinza sempre parecia chover. O guarda-chuvas era item essencial para se sair de casa, só que naquela manhã o veterano detetive havia esquecido disso. Como não estava chovendo no momento que saiu de casa, pensou que seria um dia bonito, para aproveitar a manhã. Pensou errado. Naquela cidade a chuva parecia mesmo eterna. Calmamente ele então procurou por proteção numa banca de revistas localizada em Sidcup. Quem sabe dali em pouco o tempo poderia abrir novamente.

Ao passar os olhos nos jornais acabou lendo uma manchete que lhe chamou a atenção. Uma jovem de 16 anos de idade estava sendo dada como desaparecida. A segunda em três semanas. Mesmo biotipo, jovem, adolescente na verdade, loira, olhos azuis, um certo penteado, com cachos amarelos caindo sobre o rosto lindo. O que estava acontecendo? Havia um serial killer à solta na cidade? O que a polícia metropolitana falava? Basicamente nada. Eles não podiam tratar o assunto como assassinato porque não havia corpos. Sem corpos, sem crime. As meninas poderiam simplesmente ter ido embora como muitas outras delas. Afinal o romantismo estava no ar. Nada poderia ser mais romântico do que fugir com aquele que se considerava o "amor de sua vida". O que Yves nem desconfiava é que aquelas desaparecimentos iriam cruzar seu caminho naquela mesma manhã. Mal sabia ele o que estava por vir. 

Cap. II - O Caminho na Floresta
Na biblioteca de Londres, entre milhares de livros e arquivos empoeirados, tive acesso às cartas, ou melhor dizendo, aos relatórios do detetive Yves Cloquet. Esses textos, escritos pelas próprias mãos do detetive, traçam um painel amplo desse caso. A seguir passo a palavra para o protagonista dessa história. Reproduzo aqui os trechos mais importantes sobre suas investigações. Conforme fui lendo, fui me informando com todas as revelações produzidas por ele. Segue tudo em frente, leia, prezado leitor, assim como li, nas tardes chuvosas da capital inglesa. As páginas amareladas pelo tempo sempre possuem algo a mais para dizer. Surgem como fotografias reveladoras de um tempo que já não existe mais.

"Londres, 19 de setembro de 1820. Uma manhã que parecia não ser muito promissora. Era segunda-feira e pensei que sincertamente não haveria muito trabalho naquela semana. Meu último cliente havia encontrado na sexta. Mostrei a ele as provas que sua esposa o estava trando. Pobre diabo, ficou em frangalhos. A dor de ser corno bate realmente fundo no coração de alguns homens. Porém o que ele esperava? Era um próspero comerciante, com 55 anos de idade. Estava casado com uma mulher de 22, loira, seios fartos e bonita. Visual deslumbrante. Por baixo da beleza porém se escondia uma mulher vil. Antes de conhecer seu baixinho, careca e barrigudo marido, ela era conhecida por fazer boquetes nas esquinas dos piores bairros de Londres. Sim, era uma meretriz! Óbvio que só queria o dinheiro dele. Só que alguns homens solitários só pensam mesmo em seguir acreditando em suas próprias mentiras. Acaba com o doce cálice da decepção e da traição. Não há salvação.

Pois bem, caso resolvido. Ele era corno mesmo. Pelo menos me pagou direitinho. Estava com dinheiro no bolso, mas ser um profissional liberal é estar sempre pensando na semana seguinte. Algumas vezes havia trabalho e pagamento, outras vezes, não! Como sou solteiro, consigo sobreviver. Se tivesse filhos já teria me dado uma bala na cabeça. Fiquem solteiros, jovens. Os casados são meros escravos de suas mulheres. Muitos levam vidas desgraçadas!

Quando deu 10 da manhã estava eu em meu escritório já convencido que naquela manhã não iria aparecer nenhum cliente, mas para minha surpresa a porta se abriu. Entrou uma estilosa senhora querendo contratar meus serviços. Conforme ela me foi relatando o caso descobri, com admiração interna, nunca expressada externamente, que era o mesmo caso que havia lido nos jornais sobre uma garota de 16 anos de idade que havia desaparecido ao ir para a escola. Todo detetive anseia para que algum dia um caso como esse venha a lhe bater na porta. Isso porque de maridos cornos e mulheres vadias o mundo ja´estava cheio. Já procurar pelo paradeiro de um jovem donzela já era um desafio a mais.

Acertamos o valor do contrato, do meu trabalho e apertamos as mãos. Ela ficou meio reticente em pagar o valor que eu estava cobrando, mas entenda uma coisa, nunca subestime seus serviços e nem cobre menos do que vale. A valorização de um profissional começa por ele mesmo. Essa coisa de não se valorizar, de abaixar a cabeça, é o pior dos erros de um profissional que trabalha por conta própria. Saiba se valorizar.

De qualquer forma escrevi em um pedaço de papel as informações mais importantes sobre o caso. A menina se chamava Danielle Wilde. Desde o começo do ano ela ia para a escola sozinha, andando pelas ruas de Londres. Era o primeiro ano que isso acontecia. Sua mãe achava que já era hora dela ter alguma autonomia. Já era uma mocinha e dar seus primeiros passos rumo a uma vida independente poderia significar algo bom na vida da garota. A mãe só não poderia prever que essa opção bem intencionada iria se transformar em um verdadeiro pesadelo. Tal como a Chapeuzinho Vermelho que vai andar só na floresta e encontrava o lobo mau. Minha primeira providência seria percorrer a pé o caminho que ela fazia todos os dias indo para a escola. Esperava encontrar alguma pista do que havia acontecido."

Cap. III - Necromantes Fartos
"Percorri todo o caminho que a garota desaparecida havia feito. Ela entrou em pequenas ruelas que nem eu, agora adulto, entraria sozinho. Uns becos escuros, fendas entre casas, lugares realmente perigosos. Ali a criminalidade poderia fazer a festa, seguramente. Porém de todos os lugares por onde ela andou, um me chamou particularmente a atenção. Era uma casa voltada para práticas de algo novo que chamavam de espiritismo. Uma estranha crença que pregava o contato entre vivos e mortos, por mais estranho que isso poderia parecer. Como tenho faro de detetive acuçado vi que aquele lugar - ou melhor dizendo, aquela casa - poderia me colocar em alguma pista segura. E foi mesmo um tiro certeiro.

Fui recebido por um senhor gordo, de bigode. Ele se apresentou como senhor Hippolyte, mas em seu meio era mais conhecido como Mr. Kardec, Allan Kardec. Para minha surpresa era francês, o que me trazia uma vantagem pois poderíamos conversar em meu idioma natal. Eu me apresentei e disse que era um detetive particular. Vi uma sombrancelha de desconfiança em seu olhar. Ele parecia ter um certo receio de lidar com investigadores em geral, tanto os da polícia metropolitana, como os da iniciativa privada como eu! Isso me acendeu o sinal vermelho. Geralmente pessoas que se sentem desconfortáveis com alguém que representa a lei, mesmo que indiretamente, poderia significar que escondiam alguma coisa. Em sua presença pude perceber muitos cacoetes de um autêntico e legítimo charlatão, um desses gatunos que ganham dinheiro enganando os outros.

Quando disse a ele que eu era um detetive particular seu semblante mudou. De bondade e simpatia foi para introspectivo e carrancudo. Certamente não gostava da minha presença ali. Disse a ele que estava investigando o desaparecimento de uma menina que passou por ali. A partir dali o que era descontentamento logo virou raiva incontida. Ele praticamente se ofendeu - estaria eu desconfiado dos membros do tal espiritismo? Naquele momento nem eu mesmo poderia ter uma resposta definitiva. De qualquer maneira após esse breve contato inicial ele se retirou da minha presença. Disse que estava atrasado para um compromisso, que não tinha tempo e todos os clichês que já bem conheço.

Intrigado, resolvi puxar a ficha dele, para saber quem era aquele sujeito. Ele tinha largado sua profissão original - era professor infantil - para se dedicar à publicação de livros. O tema era sempre o mesmo, o tal do espiritismo. Ele dizia que pessoas conhecidas como médiuns, tinham a capacidade de falar com pessoas falecidas. Claro, achei tudo uma balela incrível. Já tinha lidado com charlatães antes em minha vida e conhecia o modo de agir deles. Muitas vezes o alvo eram pessoas fragilizadas pela morte de alguém próximo. Essas pessoas estavam dispostas a pagar e comprar qualquer coisa que lhes traziam algum conforto espiritual e mental. Era algo também típico de seitas. Eu não comprei aquele jogo de cena. Decidi que iria colar no pé daquelas pessoas.

Fui ter com um padre, velho amigo da minha família. Fui na intenção de perguntar-lhe sobre aquela nova crença. O Padre John me disse que teologicamente o espiritismo era uma coisa terrível, uma blasfêmia perante os olhos de Deus. Isso porque as escrituras sagradas, também conhecida como Bíblia, negava essa possibilidade e dizia em seu texto que o contato de mortos e vivos era uma afronta a Deus. Ora, quem em sã consciência iria cometer um ato desses? Seguramente pessoas que não estavam procurando pela luz de Deus. Eles queriam mesmo era a experiência de cavucar sepulturas, entrar em contato com mortos, chafurdar nas covas. Essa gente era adepta da necromancia!

O Padre me explicou que o espiritismo era apenas um nome bonitinho para o velho e conhecido ocultismo. No passado muitos rituais de contato com mortos faziam parte da doutrina de várias religiões do antigo paganismo europeu oriental. Os praticantes dessas seitas cultuavam a natureza, as plantas, as árvores, o sol, a água dos lagos. Eles também faziam cultos no meio das florestas. Perguntei por rituais de sacrifício humano, de morte de meninas virgens, algo que já tinha ouvido falar antes. O padre me confirmou tudo. Aquele tipo de coisa, de sacrifício humano também fazia parte do pacote sombrio e negro do ocultismo. Aquelas pessoas podiam pensar que estavam fazendo o bem, que estavam em "mesas brancas", que só entravam em contato com seres de luz, mas o padre me explicou que tais seres da luz jamais entravam em contato com seres vivos, pois isso ia contra as leis de Deus. Eram espíritos enganadores mesmo, mentirosos. E quem era afinal o pai da mentira na Bíblia? Ele mesmo, o diabo. As coisas começam a se iluminar. Era seguramente uma luz no fim do túnel todo esse tipo de informação. 

Cap. IV - Sombras do Cairo
"Kardec era pedófilo? Vasculhando o passado do tal Kardec descobri algumas coisas. Uma delas que pairava sobre ele algumas suspeitas de que na realidade teria sido acusado de pedofilia em Paris. Claro, isso me estarreceu! Ele dava aulas para crianças na capital francesa e essa ligação poderia existir. Porém não consegui encontrar maiores provas desse tipo de crime hediondo. Havia fofocas, boatos, rumores, mas nada de concreto, nada de definitivo. O que posso afirmar hoje, escrevendo nessas páginas amareladas pelo tempo, é que ele foi um profissional da educação frustrado pois nunca conseguiu se firmar como um bom professor. Vivia sendo demitido e como muitos desses estabelecimentos educacionais pertenciam à Igreja Católica, acabou desenvolvendo um ódio mortal contra padres, bispos, freiras e qualquer um que fizesse parte do clero romano.

Kardec tentou então ganhar a vida escrevendo livros, mas nunca conseguiu ser muito bem sucedido. Seu primeiro livro não vendeu nada. Ele ficou desapontado. Uma prima lhe aconselhou a escrever livros mais populares, que pegassem carona em temas que estavam na moda. E o que estava na moda em Paris naquela ocasião? A última moda vinha das chamadas "mesas voadoras". Nos teatros, nos cafés, nas casas de madames, não se falava em outra coisa, só se falava que mesas estavam voando, girando, tudo realizado por almas de pessoas mortas. Como bem demonstrou o mágico Houdini anos depois tudo não passava de shows de mágica, mas naquela época as pessoas se empolgaram. Olhem as mesas flutuando... estão sendo levantadas por espíritos de mortos.

Kardec então aproveitou a moda. Mesas que giram era algo vulgar, grotesco. Ele era um intelectual, um homem que estudou, que tinha formação. Ele iria usar esse tipo de coisa popularesca apenas como fonte, como começo de tudo. Assim ele entrou em contato com uma jovem senhora que estava escrevendo textos que supostamente eram enviados por espíritos. Ali havia potencial. Kardec se apoderou do material, plagiou praticamente tudo e lançou seu primeiro livro. A pobre mulher ficou enfurecida, mas Kardec, como todo bom malandro, disse que ela também não era a autora dos textos, afinal os verdadeiros escritores eram seres do além-túmulo! Quem merecia ter os direitos autorais daquilo tudo? Certamente não ela, mas Kardec acabou registrando tudo em seu nome. A mulher não merecia receber esses direitos, mas ele, agindo como um macho tóxico, meteu a mão grande.

E assim ele conseguiu seu primeiro sucesso no meio editorial. Eu comprei um exemplar em uma velha livraria de Londres e achei tudo muito cansativo. Usando muitas vezes de esquemas do tipo perguntas e respostas, ele ia formulando as perguntas que atraiam o interesse dos curiosos. Tudo meio chato, um tipo de teologia feita nas coxas. Kardec poderia ser seguramente um dos meus maiores suspeitos, por seu histórico de trambiqueiro, do tipo que passa a perna nos outros, como ele fez com aquela mulher cuja obra autoral simplesmente plagiou. Vai da cabeça de cada um.

Porém o álibi do ocultista Kardec era sólido. Ele havia chegado em Londres há apenas um dia, na noite anterior. Danielle havia sumido já há três dias. Ele não seria o raptor, nem com seu passado obscuro envolvendo acusações de que era pedófilo, estelionatário e tudo mais. Assim deixei o ocultista de fachada de lado. Os demais membros do tal espiritismo também pareciam apenas bobos enganados por suas próprias mentiras. Uma gente de imaginação fácil que dizia falar com mortos para amenizar a dor de quem estava em luto. Não acreditava mais que eles pudessem se envolver em rituais macabros de magia negra. Eles queriam ter uma crença baseada em religião, mas também em racionalismo. Crimes? Acreditava que não iriam cometer nenhum nesse ponto da investigação.

Assim meus dons para investigação focaram em outras direções. Havia uma loja de antiguidades no caminho percorrido pela menina que se chamava Zamalek. Era de um imigrante vindo do Egito chamado Amenadiel. Esse nome na língua de seu país significava "Ornamento oculto de Deus” - Que coisa estranha não é mesmo? Ali, no meio de muitos objetos roubados das antigas tumbas do Egito Antigo, esse simpático homem, baixinho, gordinho e de bigodes, recebia os clientes que entravam em sua loja com um grande sorriso. Afinal ele era um vendedor e seu negócio era vender. Quem se interessava em entrar no seu estabelecimento comercial era recebido como um velho amigo que ele não via há tempos. Amenadiel era um mestre na arte de vender e ele iria fazer de tudo para lhe vender algo, de todas as maneiras, como eu estava prestes a descobrir".   

Cap. V - Deuses do Egito
A vida no Egito antigo se desenvolvia se pensando e se vivendo para uma outra vida, que iria começar quando a morte chegasse. O povo do Egito antigo foi provavelmente o primeiro povo da antiguidade a criar toda uma estrutura de templos, monumentos, etc, povoado por Deuses que iriam receber as almas daqueles que faleciam. Toda uma mitologia foi criada com inúmeros deuses. A religião no Egito antigo deixou de ser uma crença particular para se tornar uma política de Estado. Osíris, Ísis, Hórus e muitos outras divindades povoavam as crenças desse povo que viveu às margens do Rio Nilo.

E eles não deixaram apenas monumentos em pedra, obras literalmente faraônicas que atravessaram os séculos. Eles também deixaram muita arte, muitas obras de arte. Na literatura surgiram textos sagrados como o Livro dos Mortos. E na escultura e pintura, todos os deuses de seu imaginário se tornaram realmente imortais, chegando até nossos tempos. Muitas dessas obras foram encontradas em tumbas. Foram saqueadas por ladrões de covas dos antigos nobres. E de venda em venda esses artefatos chegaram até os nossos dias. Algumas lojas em capitais da Europa se dedicavam ao comércio desses objetos roubados.

Era, ao meu ver, o caso daquela loja que adentrei. Ali obviamente havia muitas obras roubadas. Porém nao queria entrar nesse assunto, seria delicado demais para aquele homem que poderia afinal trazer pistas valiosas sobre o desaparecimento da menina. Andando por entre os artefatos expostos à venda, fiz um comentário banal. Disse que aquela religião que havia sido o sistema de crenças de milhares de pessoas em um passado distante, agora era encarada apenas como pura mitologia. Digamos, literatura fantástica. Isso pareceu ofender o senhor que comercializava aquelas peças. Ele disse de forma incisiva que aquela não era, em absoluto, uma religião morta! Não, havia ainda pessoas que acreditavam em todos aqueles deuses!

Ora, aquilo me deixou realmente surpreso. Eu não sabia que havia pessoas na atualidade que seguiam a religião do Egito Antigo. Até porque o islamismo agora havia se tornado a religião principal do Egito, Estado moderno dos nossos dias. Porém, mesmo após fazer essa observação, que era mais do que coerente com a realidade, ainda assim o senhorzinho tentou me convencer que muitos ainda nos dias de hoje se abaixavam em devoção aos deuses antigos do Egito. Olha aí uma pista importante no meu caso...

Porém também é fato que, pelo menos puxando rapidamente em minha memória, não havia sinais de que existia algum tipo de sacrifício humano cometido por adeptos dessa milenar religião oriental. Ao pensar em religião dos povos astecas, claro isso logo vem à mente. Os astecas desenvolveram uma religião violenta, que entregava pessoas vivas aos deuses deles. Arrancavam os corações com as pessoas ainda vivas, que assistiam a tudo. Um horror! Mas nunca ouvira falar sobre isso entre a religião de Osíris. O que diabos estaria acontecendo? Algo não se encaixava bem naquele mistério...

Nesse ramo de detetive particular você acaba aprendendo certas manhas, certos truques. Me coloquei na posição de uma pessoa muito curiosa, que gostaria de presenciar ou assistir a uma dessas reuniões ou celebrações, não sei ao certo qual seria a denominação certa, para ver com meus próprios olhos que aquela religião ainda seria praticada ali, em Londres. O vendedor disse que isso poderia ser arranjado, mas ao mesmo tempo eu não estaria interessado em nada de sua loja? Não queria comprar algo? Tentando parecer um consumidor comum, com uma curiosidade incomum, acabei comprando uma estátua do deus Hórus. Não era uma estatueta real, dos tempos dos faraós. Era uma réplica, de muito bom gosto, devo dizer. Comprei a peça e fiquei de voltar ali no dia seguinte para, quem sabe, ganhar o convite para assistir a um culto milenar do antigo Egito. Sim, fazia aquilo pela criança desaparecida, mas também estava com curiosidade pessoal sobre isso, não podia negar.

Cap. VI - Curvas da Morte
Valkiria ou simplesmente Val, como passei a lhe chamar, era a sacerdotisa desse culto moderno aos deuses do antigo Egito. Uma mulher extremamente sensual e sexualizada. O conjunto logo me atraiu. Val tinha lindas pernas, uma tonalidade bem branca na pele, mas com uma vasta cabeleira preta e ondulada. Geralmente se vestia com vestidos que deixavam seus ombros e suas costas à mostra. Uma mulher mais elegante de Londres poderia qualificar seu modo de vestir como vulgar e apelativa. No meu caso seus vestidos vermelhos me causavam desejo e calor.

Ela me falou em nosso primeiro encontro que era devota da deusa Osíris. Como se eu me importasse começou a contar as lendas e a história dessa divindade. Enquanto ela contava, bem próxima a mim, não consegui tirar os olhos de seus seios. Sem esconder muito meus desejos lascivos, ela procurou se fazer de mulher vitoriana, mas no fundo eu sabia que ela já havia percebido meus olhares lascivos e brincava com o fato de que eu queria ela na minha cama naquela mesma noite.

Ela vinha de um casamento infeliz. Nunca procurei por detalhes, mas pelo soube por baixo dos panos é que ela traiu o pobre e infeliz marido. Não havia dúvidas que Val era um vulcão. Deveria ser boa de cama, certamente era. Conheço o tipo. Embora fosse uma entidade religiosa (pelo menos na fachada) ela aparecia nas reuniões da seita com os mais provocantes vestidos. E quando queria provocar aparecia com vestidos que poderiam ser qualificados como indecentes mesmo. Uma vez pensei se tratar de uma putona que estava em minha frente. Mulher quente, mulher de cama.

Infelizmente nunca fiz amor com ela. Val começou um jogo de sedução que tinha tudo para terminar em zero a zero. Quando fui ousado, segurando em sua mão, ela recuou, dizendo que tinha um namorado numa cidade de interior. Que perda de tempo. De qualquer forma seu "fora", apesar de inoportuno, me fez acordar. Afinal estava em uma investigação de assassinato de uma garotinha e não em uma competição de alcova para saber quem iria levar a cigana sensual para a cama.

Continuei a ir nas reuniões da tal seita que ainda cultuava os deuses do Egito antigo. Logo percebi que entre aquelas pessoas poucas realmente acreditavam em deuses e divindades do Oriente antigo. Havia algo mais ali no meio daquele bando de hipócritas. E fui percebendo logo o jogo. Havia sempre uma tensão sexual em cada reunião. Claramente estava entre pervertidos e tarados. Meu faro fino sobre isso jamais falhara no passado e não seria agora que tudo iria se revelar falso. Eu sentia que havia algo por baixo de todo aquele papo furado de religião antiga. Meu sexto sentido nunca havia ficado tão em alerta. 

Cap. VII - Religiosidade Phoenix
O nome do sujeito era Marc Phoenix. Era um americano. Ele era um dos lideres daquela seita de malucos. Um sujeito magro, de bigode fino e que parecia estar sempre nervoso com alguma coisa. Eu fui apresentado a ele como um dos novos membros, uma pessoa que queria seguir na seita, que desejava ser um dos neófitos. Era assim que novos membros eram chamados entre eles. Phoenix me olhou de alto a baixo. Parecia naturalmente paranoico e... doido de pedra! Essa pessoa deveria ter uns 50 anos de idade. Seus cabelos já estavam grisalhos. Era óbvio que tinha um passado que inclusive se recusava a comentar. Fiz uma ou duas perguntas furtivas. Ele não as respondeu. Pelo contrário ficou mais desconfiado ainda.

Então ele me passou um livro. Na verdade um tijolaço com mais de 900 páginas. Havia sido escrito por ele mesmo. Era um "livro de revelações". Já havia visto algo parecido com o espiritismo e os mórmons. Essas religiões modernas sempre tinham alguém que supostamente era mais iluminado do que todas as outras pessoas do mundo, que tinha acesso a coisas maravilhosas... e blá, blá, blá. Conhecia o papo furado. Porém estava em um disfarce, fingindo ser alguém bobo que iria cair nas suas artimanhas de religiosidade oca e fajuta. Ele então me deu o livro, prometi que iria ler e voltei para casa.

Confesso que até tentei ler o tal book, mas não deu. Centenas e centenas de páginas com centenas e centenas de nomes de divindades do antigo Egito que mal conseguia pronunciar os nomes. Em seu texto maluco o tal de Marc Phoenix garantia que esses Deuses ainda existiam e com poderes de Deuses, claro. Só que eles tinham sido abandonados pelos homens. Quem agora viesse a crer neles iria ter grande prosperidade financeira, econômica e de relacionamentos amorosos. Aquele velho papo furado.

Porém no capítulo XXII vi algo que me despertou atenção. Esse capítulo falava sobre sacrifícios humanos e práticas sexuais. Mesmo usando uma linguagem pouco compreensível, ficava claro que o sacerdote máxima dessa nova seita acreditava que apesar das leis de nossos tempos proibirem enfaticamente a morte de seres humanos em rituais religiosos, eles ainda eram válidos para os deuses. Esses trechos acenderam a luz vermelha em minha cabeça. Aquela era a pista mais quente que já havia encontrado daquela gente, do possível envolvimento deles na morte da garotinha. Essa gente era sem dúvida sórdida e asquerosa.

Entre dezenas e dezenas de parágrafos pessimamente escritos (será que aquela baboseira foi escrita por um chimpanzê?) eu pude subentender que o sacrifício humano levava às portas da prosperidade. da sabedoria e do poder máximo. Teria sido esse o segredo do sucesso das antigas civilizações. Um argumento absurdo que me causava ânsias de vômito. Agora imagina um papo furado desses caindo nos ouvidos de um tolo ávido por riquezas materiais. Era dinamite pura e eu tinha que agir de qualquer maneira. 

Cap. VIII - As Sombras Eternas
Morpheus era o nome que eu procurava. Dentro daquela seita estranha Phoenix era apenas o arco teórico de tudo o que acontecia. Ele escreveu a doutrina religiosa do grupo. Morpheus era o executor, o homem que colocava em prática aquela engrenagem de fanáticos. Também era o homem do dinheiro, que geria a tesouraria do grupo. O nome Morpheus obviamente era uma alcunha que ele usava. Na prática ninguém sabia seu nome, apenas se dizia em sussurros que Morpheus em sua "vida civil" era um homem de negócios rico, um comerciante que ganhava muito dinheiro distribuindo jornais e revistas por todo o país.

Ele era uma pessoa de poucas palavras, parecia estar sempre desconfiado de todos, olhando por cima de seus ombros, com expressão severa. Era gordo, muito gordo. Seus dedos estavam sempre ocupados com charutos fedorentos e caros, importados diretamente de Cuba. Ele ostentava um grosso bigode que era o fino do brega. Sempre que alguém surgia em sua frente e perguntava alguma questão teórica ele desconversava, mandando o fiel tolo ir perguntar para o guru Phoenix. Eu entendi desde a primeira vez que vi Morpheus que ele enxergava a seita como uma empresa, uma empresa que tinha que gerar lucros, caso contrário não valia a pena todo aquele papo furado envolvendo antigas divindades do Egito.

Ele andava pra lá e pra cá quando havia cultos. Sempre com uma pasta preta onde anotava números e nomes. Na frente da pasta havia a expressão "Sombras Eternas". Mais tarde descobri na junta comercial de Londres que esse era o nome fantasia de uma empresa de importações de produtos do oriente. Era isso mesmo, Morpheus pegava as contribuições dos membros para colocar tudo na contabilidade dessa empresa de fachada. Assim ele conseguia também lavar dinheiro como ninguém.

Para minha investigação chegar em um bom termo eu tive que frequentar a seita por seis longos meses. Foi uma investigação que exigiu muito de mim, tanto do ponto de vista físico como psicológico. Não havia outra forma de ganhar confiança dentro da seita. Eu tinha que surgir como um fiel seguidor daqueles preceitos. Pena que nesse tempo todo não consegui levar para a cama a tal de Val, que de modo indireto faria com que todo aquele tema perdido valesse a pena. Sim, porque para avançar nas investigações eu perdi muito tempo, indo a palestras chatas, que duravam horas e frequentando os cultos, que era em última análise, pura loucura!

De qualquer forma aquela seita pertencia mesmo a duas pessoas apenas, Morpheus e Phoenix. Ninguém estava acima deles. Por isso pude perceber que se alguém era culpado pelo desaparecimento, eram eles. Tentei aproximação, tentei criar uma amizade pessoal, mas foi em vão. Eles tinham o instinto do criminoso, daquele que sabe que fez algo contra a lei e que por isso vive desconfiado de tudo e de todos. Porém como criminosos que eram descobri também que eles facilmente se curvavam ao poder do dinheiro. Bastava oferecer mais dinheiro que eu subia cada vez mais na hierarquia da seita. Era tiro e queda. Agora eu tinha o meio para entrar mais profundamente naquele exótico grupo "religioso" (sim, entre aspas).

Foi quando eu ouvi pela primeira vez a história da "ressuscitação" de poderes. O que diabos era isso? Através de algum tipo de ritual antigo, o membro conseguia reverter em seu prol prosperidade financeira e econômica. Os charlatães prometiam que as pessoas ficariam ricas se levassem ao altar sacerdotal algum ser vivo para ser sacrificado. E eu, subindo na ordem, através de muito suborno, ganhei o direito de assistir a um desses estranhos cultos. Para minha surpresa o animal que iria ser sacrificado era uma zebra. Achei tudo muito bizarro, aquele pobre ser vivo perdendo sua vida por causa de um bando de fanáticos.

Quem contratou aquilo tudo foi um médico, dono de restaurante, que via sua empresa ir à falência. Ao invés de investir na empresa, melhorar seus serviços para atrair novos clientes, o que ele fazia? Sim, fazia rituais mágicos absurdos onde animais era mortos. A mente humana é muito estranha, vou te contar. A Zebra foi morta a facadas no pescoço. Depois Phoenix, vestido com roupas absurdamente estúpidas, recolhia sangue do pobre animal e dava para o dono do restaurante beber. Sangue quente ainda, retirado no lugar. Eu tive vontade de vomitar com a cena que assisti. Porém ao mesmo tempo havia uma dose de que estava chegando aonde eu queria. Afinal se aqueles doidos estavam matando animais em nome de empresários falidos em busca de riqueza, o que os impediria de matar seres humanos, considerado o sacrifício perfeito dentro daquela enlouquecida doutrina religiosa?  

Cap. IX - Na Escuridão do Bosque
Não coloque em uma mesma frase as palavras fanatismo e inteligência. Quando uma está presente, a outra sai pela janela. Todo fanático é em essência uma pessoa burra, isso por definição. Foi o que pude comprovar infiltrado nessa seita infame e absurda. E quem pensa que fanáticos não fofocam, pode ter certeza que está enganado. E foi através de uma fofoca que finalmente desvendei esse caso sinistro em minha carreira. Val, a voluptuosa Val, pensou ter ganho minha confiança. Com isso passou a se abrir cada vez mais em nossas conversas. E ela me contou que havia sido realizado um ritual muito especial há alguns meses dentro da seita.

Um empresário muito rico realmente teria contratado os serviços de Morpheus e Phoenix. Ele queria salvar sua empresa da bancarrota. Farejando um otário pela frente, Morpheus disse a ele que apenas um grande ritual do Egito Antigo, com o ato de sacrificar uma virgem, iria deter esse tipo de falência. Pediu 400 mil dólares pelo tal serviço. Conseguiu convencer o tal sujeito, que era rico, mas de pouca formação educacional, que os antigos deuses do Egito lhe traria de volta prosperidade e riqueza. Naquela mesma semana Danielle Wilde desapareceu.

Ela foi cercada por dois leões de chácara contratados por Phoenix e Morpheus. Colocada dentro de uma carruagem foi levada até a sede da seita. Eles escureceram o ambiente, doparam a linda garota e a mataram com uma adaga. Eu fiquei tão chocado quando soube disso, tive uma decepção tão grande com a humanidade, quem mal podia respirar. Porém eu tinha que manter uma certa atitude, como se estivesse vibrando quando Val em contava tudo. Como eu disse, fanatismo não rima com inteligência. Aquelas pessoas eram infames, asssassinas, inescrupulosas.

Porém eu tinha que ter provas antes de chamar finalmente os policiais. Perguntei, com ar de leveza, para Val sobre o destino do corpo da jovem mulher. Ela me disse, com a maior tranquilidade que ela havia levado o corpo de garota assassinada até um bosque, perto de uma fábrica de roupas abandonada. Era exatamente o que queria ouvir. Então convidei Val para um amistoso chá das cinco. Ela aceitou. Entramos na carruagem. Antes que esboçasse qualquer reação puxei meu revólver em sua cintura e pedi que me levasse até onde jazia o corpo da jovem.

Val fez expressão de horror, mas como estava ameaçada de levar um tiro na barriga, aceitou o "convite". Paramos em um lugar realmente desabitado. Caminhamos por cerca de vinte minutos dentro do bosque até ela me apontar um nicho, de terra recentemente mexida, ao pé de uma grande árvore. Era ali que estava o corpo da garota. Imediatamente amarrei suas mãos nas costas. Peguei um pequeno galho e cavei... em pouco tempo ossos, provavelmente de suas mãos, brotaram da terra escura. Bingo! Havia resolvido mais um caso.

Saímos da floresta e ao avistar o primeiro guarda da polícia metropolitana de Londres expliquei todo o caso. Ele apitou, outros policiais chegaram... e Val foi levada para a prisão. O inspetor Robert Almost, me agradeceu por ter resolvido um caso que pendurava há meses em sua escrivania. Porém ainda havia mais algo a fazer. Prender Morpheus, Phoenix e o empresário que os contratou. Pedi para ir junto dos policiais na batida no centro da seita. O pedido foi gentilmente aceito pelo inspetor. Era chegada a hora de colocar um basta naquele antro de fanáticos, oportunistas baratos e charlatães assassinos.  

Cap. X - Caso Encerrado
Morpheus descobriu que havia algo errado assim que entrei no templo ao lado de três policiais fardados. Ele estava comendo grandes porções de batatas fritas. Sempre foi asqueroso. Sua reação surpreendeu a todos. Ele abriu uma gaveta e puxou uma arma de fogo. Não houve tempo de agir. Eu o atingi com um tiro certeiro na cabeça. Seus miolos voaram para todos os lados. Foi um tiro certeiro. Quando o tiroteio cerrou, os membros da seita correram para todos os lados. Eles queriam encontrar uma porta para fugir da polícia. Na confusão uma grande estátua do deus Anúbis caiu no chão, fazendo um grande barulho.

O caos era completo e eu tentava ver o que acontecia no meio da fumaça, do cheiro de pólvora. Vi de relance o velho Phoenix correndo.... ele queria fugir, mas sua idade o impedia de ser mais rápido. Com Morpheus morto no chão, ele seria o principal responsável para pagar pelo crime da jovem assassinada. Eu corri em sua direção a toda velocidade, queria colocar as mãos nele. Era um patife com ares de intelectual. Só que no fundo não passava de um charlatão miserável. Como brincou o inspetor, "Ele era um pensador"... pensava que era teólogo, pensava que era filósofo.. só pensava mesmo...

Phoenix foi logo preso e algemado. Levado para a central de polícia acabou confessando tudo depois de uma exaustiva sessão de interrogatório que durou 20 horas! Mataram ele pelo cansaço. Phoenix não foi torturado pelos policiais. Eles não queria dar essa chance dele anular tudo nos tribunais. Seu julgamento foi longo, durou mais de dois meses, mas ele enfim foi condenado e sentenciado a morrer na forca. Com os recursos conseguiu se safar da pena capital por doze longos anos. Acabou morrendo em sua cela, de leucemia, antes que fosse pendurado numa corda.

A sacerdotisa Val desapareceu. Alguns dias depois, conversando com um investigador, descobri que ela era velha conhecida da polícia. Já tinha sido presa por enganar clientes. Era cartomante e prostituta. Estava explicado sua aproximação com aquela seita de adoradores dos deuses do Antigo Egito. Aliás o que aconteceu com todas aquelas pessoas? Se dispersaram imediatamente. O templo foi fechado, seu cadastro de instituição religiosa cancelado pela justiça de Londres. A liberdade religiosa continuava a ser plena, mas isso não significava que pessoas poderiam ser sacrificadas em nome de uma crença religiosa. Isso ultrapassava todos os limites.

No meu caso fiquei feliz de solucionar mais um caso. Quando coloquei a pasta do crime em meu grande armário de casos resolvidos, senti um alívio e tanto por ter chegado ao fim em bons termos. A única coisa que lamentei muito no caso das sombras eternas foi nunca ter descoberto o nome do empresário que contratou os serviços malditos de Morpheus e Phoenix. Esse último, mesmo preso por longos anos, jamais entregou o nome do tal sujeito. Também nunca disse onde foi parar o dinheiro, os 400 mil. Esse rico comeciante escapou ileso, saiu impune, porém algo que me dizia que ainda iria cruzar seu caminho, algum dia. De qualquer forma o caso estava definitivamente encerrado.

Pablo Aluísio.