quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Assassina das Estradas

Cap. I - O Detetive
Cliford Atkins. Policial, 46 anos de idade. O aumento de peso denunciava que ele não estava mais preocupado em manter as aparências. Era um bom investigador de homicídios, mas já tinha entendido tudo, como as coisas funcionavam. Recentemente havia pego um figurão, filho de uma família rica da região de New Orleans. Gente envolvida em política. Não deu em nada. Ele foi absolvido pelo tribunal do júri. Algum jurado foi comprado? É possível que sim, mas Cliford não tinha como provar. Ele não queria se envolver no jogo sujo envolvendo juízes e políticos. Certamente sua carreira seria prejudicada dali em diante, afinal ele havia mexido com uma das famílias tradicionais da cidade. iriam dar o troco para ele, mais cedo ou mais tarde.

Assim seu telefone tocou logo pela manhã. Ele ainda estava de ressaca da noite anterior. Começar a segunda-feira logo atendendo a um caso de assassinato não estava bem em seus planos. Só que era trabalho e ele teria que seguir em frente. Um homem de meia idade havia sido encontrado em seu carro na estrada que ligava a Louisiana à Flórida. Dois tiros na altura do abdômen. A carteira com dinheiro fora roubada. Havia sinais de luta corporal dentro do carro. Clift pegou seu velho chapéu e foi para a estrada. Tinha que fazer as primeiras análises no local do crime.

Esse caso lhe lembrou outro que havia acontecido há 3 meses, ainda sem solução. Clift desconfiava que os dois crimes poderiam ter sido cometidos pela mesma pessoa. As vítimas e as circunstâncias do crime revelavam isso. Eram dois homens, entre 55 a 60 anos. Ambos tinham histórico de contratar prostituas nas rodovias pelas quais passavam. Os dois foram mortos com tiros à queima roupa, sugerindo que o assassino (ou a assassina) entraram em seus carros e ficaram próximos suficientes para dar um tiro a pouca distância.

Isso fez Clift desconfiar que o homicida ou mais provavelmente a homicida fosse um ou uma profissional do sexo. Como os dois homens eram héteros havia fortes suspeitas que eles pegaram algum mulher para se prostituir em seus carros. Algo havia dado errado. Em algum momento essa mulher reagiu aos avanços deles, puxou uma arma e os matou. Depois roubou tudo o que havia de valor dentro do carro de seus "clientes", ou seja, dinheiro, relógios, anéis, cartões de créditos, qualquer coisa. Clift no alto da experiência de sua profissão estava praticamente convencido que havia uma assassina à solta nas estradas.

Ao retornar para a delegacia, o bom e velho detetive Cliford Atkins resumiu o caso em sua cabeça. Para ele uma pessoa havia entrado no carro da vítima. Provavelmente entrou sem reação violenta, o que significava que o criminoso contava com a confiança da vítima. Dentro do carro eles foram para uma estrada mais remota, onde poderiam fazer sexo. Partindo do pressuposto de que as vítimas eram homens heterossexuais só havia a quase certeza que era uma assassina, um prostituta a principal suspeita. Porém havia algo que não se encaixava no caso montado em sua mente. Mulheres raramente usam de métodos violentos para cometerem crimes. Mulheres geralmente matam com venenos, coisas assim. Elas detestam sangue e bagunça na cena do crime.

Cap. II - A Assassina
Não muito longe dali, em um bar para motoqueiros, Alicyn Woother bebia uma cerveja gelada. Ela certamente não se enquadraria em um perfil típico de assassina do FBI. Estava mais para vítima. Aos 12 anos havia sofrido abuso sexual de seus próprios parentes próximos. Traumatizada, saiu de casa. Para sobreviver trocava sexo por dinheiro ou carteira de cigarros. Foi criada praticamente na rua, sendo abusada por pedófilos. Era uma vida triste. Só que agora Alicyn parecia viver uma vida mais feliz. Há alguns anos ela tinha se descoberto lésbica. Anos e anos sendo abusada por homens imundos fizeram com que ela criasse uma ojeriza com o sexo masculino. Havia criado um trauma com o falo ereto. As mulheres eram mais delicadas, carinhosas e sensíveis. Não é de se admirar que ela havia se tornado lésbica.

Agora estava tendo um caso amoroso com Kaitlin Riley. Ela trabalhava em pequenos empregos mal remunerados nos motéis da região. Trabalhava como faxineira e arrumadeira. Era o que os americanos costumam chamar vergonhosamente de "White Trash" (Lixo branco). Pessoas até bonitas, mas pobres, sem educação formal superior. Ela tinha um jeito meio masculinizado, o que lhe valia em certas ocasiões o apelido de "Buddy", como se fosse um cara qualquer, que tinha gestos másculos e falava sobre futebol americano. Com ombros fortes e cabelo curto parecia mesmo um macho, um caminhoneiro da pesada.

Em muitos casos envolvendo casais de lésbicas havia a que representava o lado masculino da relação e o que servia como a mulher feminina. Kaitlin Riley "Buddy" era o machão do namoro, o que em certos meios gays é conhecido como "Lady Botina". Alicyn Woother era a fêmea, o que em redutos era conhecida como Lady Penélope. As duas tinham alugado um quarto na beira da rodovia. Estavam vivendo bem. O que "Buddy" não sabia era como sua namorada ganhava dinheiro, afinal ela nunca tinha um emprego. Saía pela manhã e voltava no final de tarde, sempre com algum dinheiro. "Buddy" não dizia para ninguém mas desconfiava que ela fazia programas nas rodovias próximas. Porém esse assunto nunca era discutido entre elas. Iria quebrar o clima, quebrar o romantismo.

Alicyn Woother estava com 38 anos de idade. Estava perto dos 40. Já não sonhava com príncipes encantados. Ela também já tinha passado da idade de ser uma mulher atraente, que fosse interessar a alguém para se casar e ter um relacionamento. Sem profissão nenhuma, acabou se tornando prostituta de estrada. Para sua segurança ela havia comprado um revólver 38. Ela só entrava dentro do carro dos clientes devidamente armada. Como tinha uma personalidade psicopata pouco se importava com a vida humana. Depois de milhares de programas ela entendeu - em sua mente doentia - que era mais fácil simplesmente dar um tiro naquele que a contratava.

Um tiro certeiro no coração. Depois que o tal sujeito caía tudo o que ela precisava era roubar sua carteira e ir atrás de algo de valor nas cabines dos caminhões ou carros. Também era uma assassina desajeitada, que não tomava precauções no quesito provas. Digitais dela estavam em todas as partes. A polícia as tinha levado para perícia, mas faltava uma digital no banco de dados de criminosos para bater com o que eles tinham.

Enquanto os corpos iam aparecendo a imprensa começou a se interessar pelo caso. Vazamentos do departamento de polícia tinham chegado nas redações de jornais. Era muito interessante ter uma mulher como assassina. Não tardou muito e as manchetes vinham com sua nova alcunha de "Assassina das Estradas". O velho detetive ficou contrariado com toda a sensacionalismo do noticiários. Isso iria atrapalhar as investigações. Ele então resolveu ligar para o chefe de redação e foi bem claro sobre tudo o qu estava acontecendo.

Parem de publicar informações confidenciais! Isso vai atrapalhar as investigações! - Ninguém se importou. Nenum jornalistas deixou de continuar a escrever sobre o caso. Vendia jornais, despertava interesse do público, então a imprensa iria continuar a aproveitar ao máximo. O que Cliford estava disposto a fazer para pegar a criminosa? Ele então pensou em algo até óbvio. Ele iria preparar uma armadilha para ela. Quem sabe assim ela cairia nas mãos dos policiais.

Cap. III - As Pistas
Cliford Atkins estava em um beco sem saída. Não tinha respostas para os crimes. Ele tinha encontrado elementos que poderiam ajudar a condenar o criminoso em um tribunal, porém não tinham pistas sólidas que o levassem a essa pessoa. Era aquele tipo de situação ao estilo "Saberei quem é você quando o encontrar". Tudo estava no ar. Enquanto isso a imprensa atrapalhava a investigação, publicando reportagens sensacionalistas. Clift até mesmo teve que receber um telefonema mal humorado do comissário por causa da falta de resultados concretos.

Sem nada em mãos o velho detetive resolveu usar de antigas táticas. Uma delas seria atravessar o lado mais sórdido da cidade em busca de informações. Ali sobrevivia a nata da escória da região (muito embora essa definição não fazia o menor sentido). Clift ia nos bares, becos e bordéis para encontrar seus informantes. Gente desesperada por algum dinheiro. Eram cafetões, proxenetas e pederastas de todos os tipos. Gente sem moral. Gente boa para comprar com alguns trocados. Era hora de sujar as mãos com o excremento que escorria pelas ruas mais infames da cidade. Coisa que todo detetive deveria fazer, mais cedo ou mais tarde.

Como os crimes envolviam prostituição ali era o lugar natural para saber de alguma coisa. Para sua surpresa ninguém soltou nada. Não sabiam de nada. Ele ficou surpreso. Esse tipo de resposta só poderia ter uma explicação. O assassino ou a assassina deveriam se de fora, de outra cidade ou até mesmo de outro estado. O que estava acontecendo de fato?

Big Bangaroo era um dos cafetões mais conhecidos de New Orleans. Um cara da pesada, literalmente falando. Tinha mais de 150 kg e dois metros de altura. Era um daqueles negros que usavam grandes chapéus espalhafatosos e roupas de cores berrantes. A pessoa poderia vê-lo a metros de distância e reconhecer que ele era um cafetão. Clift tinha um passado com ele. O velho detetive havia se apaixonado por uma de suas garotas. Erika Von, uma loiraça maravilhosa. Cabelos curtinhos, grandes seios, bronzeado perfeito. Lindos olhos azuis em uma face de anjo. Linda demais! Era até complicado entender como uma mulher daquelas foi parar nas ruas, fazendo programas para o porco do Bungaroo.

Esse mundo porém não era perfeito. Pelo contrário, cheirava a cigarro apagado na calçada. A maioria das pessoas eram sórdidas. De vez em quando Clift ainda curtia uma dor de cotovelo por causa da loira Von, mas não havia muito o que fazer. Ela tinha ido embora com um cafajeste. Mulheres lindas, ainda mais se forem loiras de olhos azuis, caem de amores pelos cafajestes de plantão. Deve ser algo em seu DNA estúpido, quem sabe...

Pois então, Big Bangaroo não tinha nada a dar para Clift, mas involuntariamente lhe deu uma pista importante ao explicar que ele conhecia todas as vadias da cidade. Tanto as que estavam na ativa, como as novatas e até mesmo as aposentadas. Algumas tinham até mesmo se casado com políticos, gerando filhos da puta. Para Big a única explicação era de que essa prostituta envolvida nos crimes certamente não era de New Orleans. Se fosse ele teria ouvido algo. Ela era de fora. Pegava os caras em outros lugares e quando chegavam nos arredores da cidade cometiam o crime!

Poxa, a banha do Bangaroo deveria ter transformado ele em um tira. Clift havia pegado o fio da meada. Sua conversa com o cafetão grandalhão rendeu bons frutos. Afinal aquele cara era o "rei das putas" na cidade e isso não era por mero acaso. De volta para seu escritório Clift pegou a caneta, material para investigação, entrou em seu carro e caiu na estrada. Ele precisava refazer o caminho que aqueles homens tinham tomado. A intenção era conversar com seus familiares. Para onde eles costumavam viajar? Alguém tinha que falar algo...

Cap. IV - Na Estrada
Antes de falar com os parentes das vítimas o detetive Cliford Atkins cometeu o seu maior erro. Ele pegou seu carro e foi para a estrada. Queria conversar com as pessoas que viviam ali, literalmente à margem da sociedade. Rondando se deparou com uma mulher bonita. Era obviamente uma prostituta. Ele não iria fazer um programa, óbvio, mas conversar com alguém que vivia naquele ambiente era um ponto de investigação válido.

Por uma incrível coincidência a mulher que ele chamou para conversar era Alicyn Woother. Ela mesma, a assassina das estradas. Poderia haver algo mais inesperado do que isso? Não, jamais. Clift lhe ofereceu dinheiro, mas ela ficou arredia. Embora estivesse desesperada em busca de algumas notas sabia que aquele sujeito era um tira em busca de informações. Bem, depois de um tempo ela refletiu e pensou que ele estivesse em busca de informações de alguns travestis que faziam ponto por ali perto. Alguns tinham "navalhado" seus clientes.

Ela disse que aceitaria o dinheiro, mas que eles teriam que sair dali. Caso alguém a visse com conversa com algum policial isso seria perigoso. Ela seria morta por isso. Depois perguntou quanto iria levar pelas informações. O velho tira ofereceu 40 dólares. Ela não aceitou. Só iria pelo preço de um programa regular, 200 dólares. Veja, ela já não era mais a bonita mulher do passado. Certamente não ganhava isso por programa, era uma farsa, mas mesmo assim o policial aceitou.

Valores acertados, ela então entrou no carro. Foram para uma estrada secundária, de terra, sem asfalto. Longe da vista de todos. Era o modus operandi dela. Assim que o carro parou ela pediu um momento "para acertar a bota que estava calçando". Na verdade ela escondia um pequeno revólver de dois tiros, muito popular entre as mulheres.

A ação foi rápida. Ela veio por trás da cabeça do policial, mirou e atirou. Tiro certo, morte imediata. Sem saber Clift teve o mesmo destino dos homens que foram assassinados, dos crimes que investigava. Baixou a guarda, achou que seria altamente improvável encontrar a criminosa que procurava. Como um policial tão experiente caiu numa armadilha tão simples? Ossos do ofício. Ela ainda vasculhou o carro e a carteira do velho tira em busca de algum valor. Encontrou 400 dólares. Uma boa quantia. Com os 200 que já tinha saia agora daquela cena do crime com 600. Um dia produtivo. E o policial? Foi morrendo aos poucos... as pupilas perdendo o brilho... seu corpo lentamente morrendo. Ele deveria saber que em contos noir as mulheres sempre são fatais. 

Cap. V - O Sórdido Encontro de Lábios
Alannah não era uma mulher bonita. Baixa demais, gordinha, acima do peso, com tornozelos grossos, não tinha um corpo bonito. Era uma garota comum que procurava se arrumar para que o conjunto não parecesse tao feio. Ela era enfermeira, não era rica, de jeito nenhum, ganhava pouco e vivia no sufoco. Ainda morava com o pai, um sujeito caipira, do interior, rude e tosco. Charles, seu pai, poderia ser definido como um homem burro. Só falava de vacas e futebol. Não tinha muito conhecimento do mundo e nem queria ter. Ele cultivava um certo culto ao fato de ser um ignorante. Pessoas ignorantes não sabem a extensão de sua ignorância e assim acabam sendo sábias, pelo menos em sua cabeça de amendoim.

Alannah já tinha passado dos 30 anos de idade. Para uma mulher sempre há aquele estigma pejorativo da "tia solteirona" que não conseguiu se casar e nem ter filhos. Tudo preconceito, não se pode negar. O que poucos sabiam é que Alannah tinha aversão sexual a homens. Ela na realidade era lésbica. Nunca havia sido do armário porque seu pai tosco e pseudo conservador nunca iria aceitar isso. Provavelmente iria expulsá-la de casa, como seu tio havia feito com seu primo. Gente rude do interior, não aceitava homossexuais sob o mesmo teto. A tosquice misturada com a religião dava como frutos esse tipo de situação aflitiva. Assim Alannah ficava na moita, sem nunca assumir sua verdadeira identidade sexual.

Algumas vezes ela arranjava um namorado de fachada, mas aquilo era o fim da picada em sua mente. Quando as coisas apertavam demais e ela ficava sufocada o jeito era pegar seu carro e pegar a estrada, onde ela podia ir em bares escondidos frequentadas por mulheres lésbicas. Era a forma que ela tinha de respriar um pouco mais. Nesses lugares ela finalmente podia se sentir livre, sem ter que dar satisfação para seus familiares bocós. Ela inclusive se via livre de ter que conversar com seu irmão que também era o suprassumo da estupidez e ignorância. Nos bares lésbicos ela tinha com quem conversar, falar sobre a vida e o mais importante de tudo, conviver, mesmo que por pouco tempo, com pessoas como ela. Era libertador em todos os sentidos.

Em uma dessas tardes Alannah conheceu Alicyn Woother. Ela estava assustadoramente bonita naquela ocasião. Os anos que lhe fizeram tanto mal em termos estéticos havia dado uma trégua ali. Alicyn parecia tão sedutora ali, com um copo na mão, o rosto parcialmente bronzeado pelo sol, os olhos azuis, o cabelo loiro, que mesmo não sendo tratado como devia ainda chamava a atenção. Como uma profissional do sexo, com antenas ligadas ao redor, Alicyn percebeu que Alannah lhe encarava com uma certa insistiência. Era óbvio que ela estava interessada nela. Só não sabia que no dia anterior o alvo de seus suspiros havia matado um tira no meio da estrada... isso sem contar todos os outros clientes asquerosos que ela havia mandado dessa para melhor... ou pior, dependendo de suas crenças religiosoas ou do que significa um cova fria em sua visão pessoal.

Alicyn gostava de se ver de uma forma diferente, mas a dura realidade é que ela era uma puta. Passara a frequentar bares de lésbicas para quem sabe diversificar seu leque de clientes. Até porque ela tinha uma namorada fixa, era lésbica em sua vida pessoal e tinha ojeriza de homens, com seus pintos sujos, barrigas flácidas e conversas dementes. Se relacionar com uma mulher era sempre melhor. As mulheres sempre procuravam a sutileza, procuravam aparentar ser mais inteligentes do que eram, mesmo que fossem na realidade bem burras. Era parte da sedução que surgia entre duas fêmeas. Isso estimulava Alicyn ao máximo. Era o último porto de tesão que ainda percorria suas veias e mente.

Alannah se aproximou e ofereceu um drink. Alicyn aceitou com prazer, com um sorriso nos olhos. Havia ali todo um jogo de sedução. Uma olhava os lábios da outra e o clima ia ficando mais quente. Havia mesas mais ao fundo, para momentos de maior privacidade. Alicyn convidou Alannah para ir até lá. Convite aceito sem reservas ou receios. Em poucos minutos ambas estava se deliciando, saboreando a saliva da parceira. Beijos realmente afetuosos, que de certa maneira demonstravam o quanto Alannah se encontrava carente naquela ocasião. Não era fácil manter uma imagem quase por 24 horas por dia apenas para agradar a família conservadora e tosca. Esses momentos de liberdade, onde ela beijava outra mulher, era tudo o que ela queria na vida. Pena que não tinha dinheiro para abraçar a independência completa em sua vida.

Ficou meio óbvio que Alannah ficou caidinha por Alicyn. Essa era o que poderia se chamar de "puta velha". Sabia que poderia extrair algo dali. Ambas saíram depois de uma hora sarrando no bar. Foram para um motel de beira de estrada que ficava ali pertinho. Quantos homens Alicyn já não tinha atendido naqueles mesmos quartos? Já tinha perdido a conta. Porém agora com Alannah elas tiveram um momento muito quente e muito íntimo. Não era apenas mais uma cliente de sua vida de prostituta. Parecia haver algo a mais ali naquele encontro, algo mais forte e algo mais perigoso também...

Cap. VI - Orgia de Sangue
Alicyn matou Alannah com requintes de crueldade. Primeiro fez ela se despir completamente. Realmente não tinha um belo corpo. Era desleixada e isso ia contra ela. Também era mal feita por natureza. Pernas curtas demais, ausência de um bumbum bonito. Enfim. Nesse primeiro momento Alicyn ainda não tinha decidido se iria matá-la ou não, mas algo a fez decidir por um caminho. Ela viu de relance um cartão de crédito do American Express. Esse cartão geralmente tinha alto limite de crédito. Alicyn colocou olho gordo ali. Alannah estava condenada.

Alicyn levava dois punhais bem cortantes e bem afiados em sua bolsa. Dessa vez ela estava sem a arma calibre 38 que costumava usar para matar seus clientes homens. Então ela fez com que Alannah deitasse de costas para ela, insinuando que iria fazer uma massagem. Disse que ficaria mais erótico se ela deixasse que fosse colocada um pano em sua boca. Era a segurança de que ela não iria gritar. Alannah inocentemente aceitou a sugestão. Erro fatal.

Com Alannah nua, indefesa, com os braços amarrados (para simular o tal fetiche erótico), de costas para Alicyn, completamente nua, era a vítima ideal. O cordeiro no altar do sacrifício. O abate seria fácil demais. Alicyn pegou seus dois punhais. Alannah não sabia o que estava acontecendo então.

- Toma sapatão escrota, toma sua puta safada! - gritou Alicyn no primeiro golpe...

Alicyn deu a primeira punhalada... depois outra, nas laterais, Alannah gritou de dor, lágrimas saíram de seus olhos, mas ninguém ouviu. Ela estava amordaçada e morrendo em um banho de sangue, em uma orgia de sangue. E Alicyn continuava a apunhalar com todas as suas forças... Os músculos exteriores foram rompidos, e Alicyn fez ainda mais força para que os punhais entrassem mais fundo nos órgãos internos de Alannah. Também girou a arma branca para causar ainda mais estragos...

Nesse assassinato algo estranho aconteceu. Alicyn ficou realmente excitada com tudo aquilo. O sangue, sua vítima nua na cama, morrendo afogada em seu próprio sangue... aquilo deixou Alicyn molhadinha... excitada, chegou inclusive a fazer movimentos lascivos com sua língua, como se tivesse em um caso de amor com o próprio diabo. Tão excitada ficou que quase não conseguiu parar as punhaladas - que segundo o laudo do médico legista, havia ultrapassado as 80 estocadas no corpo de Alannah. Nenhum ser humano iria resistir a tamanha agressão e violência. Logo Alannah perdeu os sentidos e morreu...

A assassina cuspiu no corpo de sua vítima e xingou: "sapatão safada". Depois Alicyn foi ao banheiro, se lavou rapidamente e pegou dinheiro e o cartão de crédito de Alannah. Não demorou muito e correu em direção ao caixa do banco onde conseguiu sacar mais de 5 mil dólares do dinheiro de Alannah. Nossa, ela iria fazer a festa com tanta grana. Havia valido a pena matar aquela vadia... pelo menos era isso que pensava. O que nem parava para raciocinar é que havia deixado dessa vez uma centena de pistas para os policiais que iriam investigar a morte. Era um jogo onde ela mais cedo ou mais tarde iria se dar mal. 

Cap. VII - Rota 66
Numa quinta-feira à tarde, já completamente entediada pela vida, a assassina resolveu pegar a estrada. Pessoas com problemas de psicose não aguentam viver muito tempo em um mesmo lugar. Assim ela pegou seu cartão de crédito, foi até uma locadora de carros e saiu com o veículo. Não tinha a menor intenção de devolver aquele automóvel. Foi para a estrada com a intenção de matar geral, detonar quem encontrasse pela frente. Estava com sangue nos olhos. Queria esfaquear todo macho escroto que encontrasse pela frente. Quanto mais asqueroso fosse, melhor. Ela tinha intenção de cortar as gargantas deles, roubar seu dinheiro, chafurdar no crime.

E ela estava eufórica. No volante ela pensou em si mesmo. Pensou e lembrou que se sentiu culpada dos primeiros homens que matou. Só que agora ela não tinha mais culpa, não tinha mais consciência. Havia pegado gosto pela "arte de matar". Não queria mais saber de pensamentos de culpa e nem de teor religioso. Queria matar... matar... matar. Em sua mente ela pensou: "O que eu tenho a ver com um cara que morreu há 2 mil anos? Um sujeito que ninguém sabe exatamente quem foi? E o que tenho a ver com mãe dele?". Ela tinha tido formação católica e estava se referindo a Jesus e sua mãe Maria. Ela cuspiu pela janela e gritou: "Porra, eu sou livre! Eu vou fazer o que quiser da vida!"

Depois de viajar por toda a noite ela decidiu parar em  St. Louis, Missouri. Abasteceu o carro, comprou comida e parou um tempo para fumar um cigarro. Nisso chegou um autêntico "Red Neck", um caipirão daqueles bem típicos. Boné, roupa de operário. Puxou uma conversa fiada com ela. Papo furado. Ele perguntou de onde ela era e tudo mais. As respostas foram evasivas. O sujeito continuou a encher o saco. Ela então decidiu que iria dar uma marretada em sua cabeça, bem na frente, para afundar seu crânio.

Ele insinuou que ela poderia ser prostituta, sabe como é... com aquelas roupas. Ela então disse que fazia programas de vez em quando. Cobrava 10 dólares. Os olhos do infeliz brilharam. Transar com uma mulher daquela por apenas 10 dólares? Ele estava dentro do negócio. Ela aceitou a grana e disse que ele entrasse no carro. Pararam em um lugar bem vazio, com ninguém por perto. Ele tentou agarrar seus seios, mas ela pediu um tempo, foi atrás no porta-malas e disse que ia pegar umas coisas.

Ele esperou, já abaixando as calças. Quando ela retornou tinha uma daquelas marretas de construção civil. Objeto pesado, grotesco, rude e violento. Só deu uma na cabeça do pobre diabo. Chegou por trás, de forma sorrateira. Ele parecia lamber os beiços pensando que ia transar com ela. A assassina só deu uma porrada. Ele percebeu o osso do crânio afundando... afinal aquele tipo de marreta era usado para derrubar paredes, imagine o que iria fazer em um crânio humano. A pancada, dura e seca, fez com que o idiota morresse na hora. Seus olhos ficaram escuros, ele perdeu a consciência em segundos.

Ele ficou lá no chão tendo espasmos. Devia ser alguma reação ao golpe que sofreu. Ela não quis nem saber. Foi direto no bolso do desgraçado. Pegou sua carteira. Havia tirado a sorte grande. Ele provavelmente havia recebido salário naquele mesmo dia. Havia 800 dólares na carteira, uma boa grana, iria pagar a viagem por alguns quilômetros. Ela então olhou pela última vez para ele. Estava morto, não respirava mais. Uma vida sem importância chegava ao fim. Ela não queria nem saber! Foi tão fácil, ela pensou. Antes de entrar no carro para ir embora ainda acumulou o máximo de catarro, lá dos fundos de seu pulmão. Depois deu aquela cusparada na cara do homem morto. O musgo verde escorreu de sua cara feia. Ela ligou o carro e foi embora, pensando: "É mais fácil do que tirar doces de criancinhas"

Cap. VIII - A Fazenda Gromberg
Há coisas que não se faz. Há crimes que até mesmo os mais selvagens criminosos sentem asco e nojo. E exatamente o crime cometido pela assassina em relação ao casal Gromberg. Dois velhinhos. Duas pessoas adoradas pela comunidade. Viviam em uma fazenda afastada, onde passava a estrada da rota 66. A assassino parou por alguns instantes e visualizou aquela bonita casa de campo. Estava muito bem cuidada. Ela pensou, que essas pessoas certamente deveriam ter um cofre com dinheiro. "Vou até lá!".

Fingindo ter problemas no carro ela estacionou na frente da casa da fazenda e buzinou. A sra Gromberg, que na época deveria ter uns 80 anos de idade, abriu a porta da casa. Vendo aquela jovem ali, pedindo ajuda por causa de problemas mecânicos no carro, imediatamente se prestou a ajudá-la. Depois saiu da cara o senhor Gromberg, veterano de guerra, 86 anos de idade. Eles ouviram a mulher e disseram que sim, ela poderia entrar em sua casa, com a finalidade de ligar para um mecânico. Era tudo mentira. Ela queria apenas roubar os pobres e indefesos velhinhos.

Quando o xerife Tom Oxford chegou na casa, duas horas depois, ele viu uma cena de terror. O casal havia sido amortaçado, torturado e morto com requintes de crueldade. O cofre que ficava no último quarto da casa, estava aberto. O criminoso havia levado todo o dinheiro. A morte do casal de idosos, que Tom conhecia desde os tempos em que era um simples colegial, o enfureceu. Quem poderia ser tão vil a ponto de matar aquelas duas pessoas? A violência e a insanidade foi perturbadora. Ao sair da casa, em busca de um pouco de oxigênio, ele puxou sua escopeta, a destravou e prometeu:

- Eu vou caçar esse criminoso até os confins do inferno, se for preciso! - Quem conhecia o xerife sabia que ele iria cumprir aquela promessa! Homem da lei há muitos anos, veterano policial, era visto como um homem honesto e íntegro pela comunidade. Quando era necessário ser duro, ele o era, sem pensar duas vezes. Quando era preciso um pouco mais de equidade, em vista de alguma pequena falha de algum morador que ele conhecia, ele certamente fazia vista grossa. Sabia ser justo, sabia ser honesto.

Ele era o xerife de Flagstaff, Arizona, há mais de 30 anos. Começou bem jovem, como patrulheiro da rodovia 66. Depois foi subindo na hierarquia. Quando o xerife John Jones se aposentou, ele assumiu a força policial daquele pequena cidade. Agora se via diante do crime mais brutal, violento e insano de sua vida. Já nos primeiros minutos na casa encontrou um cigarro fumado da marca Chellender. Era uma marca feminina. Os dois idosos não fumavam. Estava claro que uma mulher havia feito parte do crime. Evidências periciais indicaram que apenas uma pessoa entrou naquela casa. Era uma assassina! Uma assassina das estradas! Oxford estava pronto para começar sua caçada! 

Cap. IX - A Perseguição
O xerife Oxford nem pensou duas vezes. Com as (poucas) informações que tinha entrou em seu carro e pisou o pé no acelerador. Ele queria pegar aquela criminosa de todas as formas. A Rota 66 era ao mesmo tempo uma rota de fuga para ela, mas também uma armadilha. Isso porque ela muito provavelmente não sairia de seu caminho, o que iria facilitar e muito em sua captura. Do rádio do carro patrulha, o xerife entrou em contato com todos os demais xerifes da região. Barreiras foram montadas, ninguém sairia do estado do Arizona sem ser totalmente identificado.

As pistas diziam que se tratava de uma mulher, entre 40 e 55 anos de idade. Provavelmente loira (fios de cabelo foram encontrados na cena do crime). Ela também estaria dirigindo um Ford 41. Arriscaria dizer que de cor preta, pois esse modelo tinha em maioria essa cor na lataria. Então todos os policiais tinham que passar pente fino em carros dirigidos por mulheres sozinhas, loiras e de lataria de cor preta. Parar o carro, revistar, pegar os documentos, tudo era procedimento padrão. Dirigindo a alta velocidade o xerife ouviu no rádio do carro que havia uma situação de emergência.

- Atenção, atenção! Policial atingido no KM 68, policial abatido, levou um tiro de revólver. Todas as patrulhas da região se desloquem até o KM 68, situação de emergência! - Ao ouvir isso o xerife respondeu imediatamente - Atenção, aqui xerife Oxford. Estou próximo da área da ocorrência. Estou me dirigindo imediatamente para lá.

Estava tão perto do lugar onde o policial havia sido baleado que, segundo seus próprios cálculos, chegaria no local em pouco mais de 20 minutos. Era necessário acelerar, acelerar, pisando fundo no acelerador. Agora não era apenas questão de prender a assassina das estradas, mas também de salvar a vida de um colega de farda.

Assim que chegou no lugar o xerife Oxford viu o jovem policial caído no chão. Para seu alívio ele estava vivo. Ao seu lado dois carros parados. A sua rádio patrulha e o carro da criminosa. Exatamente como havia sido sugerido pelas investigações, um carro Ford preto. O xerife percebeu que a criminosa havia fugido para um bosque ao lado, isso após dar um tiro no policial que a parou na rodovia para pedir documentos.

O jovem patrulheiro mal teve tempo para uma reação. Ao parar a assassina, pediu educadamente por seus documentos. Ela fingiu estar indo pegar sua carteira, mas na verdade sacou um revólver que estava debaixo do banco de motorista. E ela nem pensou duas vezes, nem pensou em render o guarda para pegar sua arma. Simplesmente sacou o revólver e atirou... a bala se fixou no ombro esquerdo do tira. Ele caiu com o impacto do tiro. Não havia risco de vida, pelo menos por enquanto.

O xerife Oxford então esperou pela chegada de um carro patrulha de apoio. Quando esse chegou ele nem pensou duas vezes, correu em direção ao bosque. Queria colocar as mãos naquela mulher fria que havia matado dois idosos em seu condado. Ao que tudo indicava era uma serial killer com outras mortes nas costas. Não seria fácil pegá-la no meio daquela região, mas ela não estaria muito longe. A chance era agora, mas por onde começar? Onde ela estaria se escondendo? 

Cap. X - Morte nas Folhagens
Há elementos complicadores em ir atrás de um criminoso no meio de um bosque. As folhas, úmidas, propicam quedas. Cada tronco de árvore é um pequeno e eficiente esconderijo. A surpresa pode ocorrer a qualquer momento. Um tiro pode vir pelas costas, pela frente, de lado, de qualquer lugar. Por isso quando o xerife Oxford foi em busca da assassina, ele foi com extrema cautela. Para sua sorte logo descobriu que ela vestia um casaco vermelho que a deixava bem à vista no meio de todo aquele verde. No passado os uniformes dos exércitos exibiam cores bem fortes. Isso durou até todos se tocarem que isso os transformavam em alvo ambulantes. A partir daí todos os exércitos do mundo se tornaram verdes.

Assim que o xerife a viu no meio da mata deu ordens para ela parar. Só que foi sem efeito. Ao invés disso ela se virou e deu um tiro no policial. Um tiro que não o atingiu. Provavelmente ela não era boa de mira, até porque só havia matado suas vítimas à queima roupa. Só bastou isso para o velho homem da lei descobrir que estava na presença de uma amadora. Ela não sabia atirar, nem mirar, nem nada. Em sua mente o xerife pensou que iria admitir que ela só atirasse por três vezes. Depois iria reagir.

O terceiro tiro aconteceu. Bom, a paciência havia se esgotado. O xerife se abaixou, dobrou suas pernas e fez mira. Ele tinha uma boa visão dela, mesmo que estivesse correndo por entre as árvores. O xerife então controlou sua respiração, fechou um de seus olhos, mirou bem e... apertou o gatilho! O tiro foi certeiro, bem em suas costas. A criminosa caiu com o impacto da bala atingindo seu corpo. O local atingido era bem mortal, ali ela poderia ter morrido de forma imediata, caso a bala chegasse em algum órgão vital. Mas estava realmente morta?

Oxford começou a caminhar em direção ao corpo da criminosa caída. Foi devagar, com extrema cautela. Nada de movimentos bruscos. Então chegou perto, a menos de 1 metro. Nenhum sinal de vida. Estava morta. Abatida como a um alce no meio da floresta. O xerife então colocou seus dois dedos em seu pescoço, em busca de sinais vitais. Nada. Ela havia partido dessa para melhor (ou pior, se você acredita na existência do inferno).

O xerife então ligou o rádio, avisou aos seus colegas de farda e esperou. Ali ao lado do corpo morto de uma mulher, caiu sobre ele uma certa melancolia. Um certo sentimento de que algo havia dado errado. Embora fosse uma criminosa, ainda era uma vida que se ia. Ele pensou, observou e ouviu o canto de pássaros. Era um contraste incrível mesmo. Do lado da morte, ouvia-se as mais belas canções da natureza, cantadas pelas aves mais bonitas que ele já tinha visto em sua vida.

Pablo Aluísio.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O Lobisomem da Escócia

Prólogo - Nos Tempos Romanos
Sempre existiu lendas e mitos nas terras altas escocesas. O clima frio e hostil e aquelas terras onde ninguém morava dava mesmo margem para o aparecimento desse tipo de história. Já nos tempos em que as ilhas britânicas estavam sob dominação romana, se dizia que nenhum legionário do império deveria subir muito ao Norte pois a morte o encontraria de forma certeira. Isso impressionou os comandantes romanos que apesar de formar uma casta de homens bravos, não os encorajava a ponto de enfrentar forças sobrenaturais que eles não conheciam. 

Nessa época remota surgiu a história de Lupus, um monstro, meio homem, meio lobo. Dizia-se entre os romanos que certa vez uma patrulha foi muito ao Norte e acabou se perdendo naquelas terras sem fim. Com a chegada da noite eles precisaram levantar acampamento para no dia seguinte tentar voltar para sua legião. Entretanto isso não iria acontecer. 

Os quatro soldados romanos foram violentamente atacados durante a madrugada. Uma besta caiu sobre eles de forma avassaladora. Muito se cmentou sobre as forças que atuaram naquele ataque formidável. Dois legionários tiveram suas cabeças arrancadas, seu elmo destruído. O outro ainda tentou fugir em disparada, mas parou ao sentir que longas garras entravam em suas costas, arrancando seu coração. Um barbarismo como nunca se viu!

Os romanos que chegaram no acampamento duas semanas depois ficaram chocados com o que encontraram. Restos de braços, pernas e equipamento militar espalhados por todas as áreas. A fera que os atacou não apenas tirou suas vidas, mas comeu parte de suas carnes. Canibais! Os romanos já tinham enfrentado todos os tipos de bárbaros ao longo de sua história, mas nunca tinham se deparado com nada parecido com aquilo. O comandante do grupo de resgate ficou chocado e amaldiçou o homem ou o animal que fez aquilo! Por Júpiter, nunca se vira algo assim antes. 

Depois disso os romanos resolveram parar os avanços para o Norte. O imperador Adriano mandou erguer um muro para o qual nenhum romano deveria passar além. As muralhas de Adriano ainda se erguem em grande parte do Norte da Bretanha, no local basicamente onde está a fronteira entre a Inglaterra e a Escócia de nossos tempos. 

E a lenda sobreviveu, pois antigos textos romanos foram encontrados contando justamente essa história. Relatórios militares que foram enviados para o Imperador em Roma. A lenda de um homem lobo que atacava e matava todos os que ousavam ultrapassar seu território. Ninguém poderia sobreviver após aqueles terríveis acontecimentos...

Cap. I - O Coveiro
Estamos no século XVIII. Para ser mais exato em 1773. Jack é um homem que para muitas pessoas não passa de um sujeito asqueroso. Ele trabalha como coveiro na cidade de Newtown. Lugarejo que parece nunca ter saído da estagnação, embora fosse relativamente perto da capital. Ali muitos estudantes de medicina, da classe alta, iam em busca de passar algumas noites nos bares e prostíbulos do lugar. As mulheres tinham fama de serem bonitas. Afinal mulheres bonitas e pobres se tornam alvo fácil para gaviões endinheirados da capital escocesa.

Entre eles estava Mark Longbridge III, filho de uma família tradicional. Jovem de apenas 20 anos, fazendo o primeiro ano do curso de medicina. Ele não sabia mas seu destino iria cruzar, pelas vias tortas do acaso, com o coveiro Jack. Para completar o trio de pessoas importantes naquela noite havia Katja, a jovem de aparência russa que trabalhava na taverna. Mark era louco por ela, já a tinha levado para a cama algumas vezes, mas sempre com um tipo de impessoalidade que o incomodava.

Ele sabia que aquela garçonete de corpo maravilhoso era também disponível, pronta para fazer companhia noite adentro a quem pagasse bem. Um relacionamento do jovem futuro médico com uma meretriz era algo impensável para a tradicional família Longbridge. Nem em sonho isso iria acontecer. porém Mark estava literalmente caído por Katja. Algumas vezes viajava toda a noite de carruagem apenas para vê-la. E aqui temos o primeiro elo de ligação entre o promissor estudante de medicina e o coveiro asqueroso da cidade. Katja era sobrinha de Jack.

No começo Jack passava pela madrugada para pegar a sobrinha e levá-la em segurança pelas ruas escuras da cidade. Numa dessas ocasiões conheceu o acadêmico em medicina que estava apaixonado por ela. "Bem rapaz, você então vai ser médico?" - Jack perguntou acendendo seu cigarro de palha, enquanto olhava Mark com os olhos semicerrados -"Eu conheço alguns médicos da faculdade de Edimburgo" -o sorriso irônico não escondia a acidez de seu comentário. Era como se ele dissesse "Eu conheço aquela gente, aqueles porcos de jalecos brancos!". No passado Jack havia vendido corpos humanos para professores e médicos da universidade. Claro, era um crime abominável, ele vendia presuntos frescos para os doutores. Era uma forma deles estudarem a anatomia humana com mais precisão.

A revelação obviamente chocou em um primeiro momento o jovem Mark. Era algo sinistro, porém isso numa visão das pessoas comuns, do homem médio. Ele iria ser um homem da ciência, um médico, por isso embaixo do rosto espantado havia também um pensamento racional do tipo "Eu entendo esse tipo de coisa, eu posso aceitar essa situação que para muita gente é sinistra e nebulosa". Ora, ora, Mark e Jack então decidiram tomar uma bebida. Tudo pago pelo jovem. Afinal ele queria conquistar também o tio, pensando em levar mais uma vez para cama sua sobrinha, Katja, mulher de seus sonhos mais inconfessáveis. Então ele olhou diretamente nos olhos do velho coveiro e lhe disse com convicção: "Eu posso conviver com isso! Eu entendo meus colegas! Eles fizeram tal coisa pela ciência".

A noite de bebedeiras continuou até o dia seguinte. Lado a lado a fina flor da sociedade escocesa, um estudante de medicina jovem, o melhor que se poderia esperar de um rapaz. Do outro lado um coveiro, considerado um dos tipos de trabalho mais brutais e rudes que se poderiam imaginar, isso claro, sob um ponto de vista da elite burguesa e intelectual. Porém por mais diferentes que fossem acabaram se aproximando, se tornando, pelo menos naquela noite, bons amigos.

Mark Longbridge gostava de beber. Embora tivesse que estar na universidade pela segunda de manhã, ele passava os fins de semana nas tavernas mais obscuras daquele lugar. Entre uma poesia e outra ele enchia copos e mais copos de whisky. Entre devaneios puxava conversas envolvendo lutas, sexo e até sobre o sobrenatural. Tudo o que ele não falava entre as elegantes e elitistas salas de aula da universidade. Afinal o ambiente universitário não abria margens para esse tipo de conversação, considerada de baixo nível, de péssimo gosto.

O coveiro Jack lhe contou algo curioso. O cemitério tinha sua própria "fauna" noturna, pessoas envolvidas com religiões e rituais pagãos de magia negra. Com a igreja pressionando os adeptos desses cultos de ocultismo só sobravam mesmo as ruelas entre os túmulos onde eles podiam fazer seus rituais macabros, durante as madrugadas escuras. Mark ficou surpreso em saber da existência desse submundo. Ele pensava até aquele momento que o cristianismo havia varrido da Europa esse tipo de ocultismo. Porém havia muito mais sobre as sombras que ele nem poderia imaginar.

Jack se referia a todos eles como "as criaturas da noite" ou "as crianças da noite", um pequeno feudo de pessoas que flertavam perigosamente com as forças do outro lado. Não as forças das luz, mas sim as forças das sombras. Jack, ás vezes, assistia tudo de longe, escondido em alguma penumbra. Havia muitas invocações, bebidas estranhas eram tomadas pelos participantes e de vez em quando alguma presença maligna chegava a ser sentida. Seus superiores tinham dado ordem para ele expulsar todos que encontrassem para fora do cemitério, mas Jack era um homem prático. Enquanto não houvesse aberturas de túmulos ou violações de corpos, ele tolerava aquela presença. Afinal, se havia alguém culpado em profanar túmulos naquele lugar era o próprio Jack, como ele já havia confessado.

Cap. II - A Universidade de Medicina
Mark retornou para a universidade pela segunda de manhã. Era a volta à velha rotina estudantil. De fato o curso de medicina era extremamente puxado, um choque de realidades envolvendo a esbórnia dos fins de semana e as aulas intermináveis da semana. Para aliviar um pouco o stress de passar o dia correndo pelos corredores, indo de uma sala de aula a outra ele se reunia com seus amigos na parte da noite na área externa do campus. Ali eles bebiam um pouco, conversavam sobre o mundo, recitavam poesias. Gostavam de se ver como um clube de literatura. Membros da fina flor intelectual escocesa, era natural que levassem aquele estilo de vida dândi.

Ao lado de Mark estavam sempre seus bons amigos, John Robinson e William Clark. Todos jovens como ele, ali na faixa dos vinte e poucos anos. Tinham a vida toda pela frente. Robbie e Bill (seus apelidos dentro do grupo de amigos) sempre ficavam intrigados e interessados nos relatos de Mark. O que ele teria aprontado no fim de semana? Nesse dia em particular Mark tinha mesmo muito o que contar. Ele havia conhecido o velho tio da garçonete pela qual ele era apaixonado. Um senhor que trabalhava como... coveiro da cidade! Estranho, muito estranho.

Porém a ideia ali era mesmo relaxar, contar algumas piadas, ouvir histórias bizarras, tudo para passar o tempo. Mark lhes contou que o velho havia flagrado pessoas andando pelo cemitério na madrugada, fazendo rituais de velhas seitas pagãs. Robbie, assim como havia ficado Mark, simplesmente não acreditou que ainda havia paganismo na Escócia! Era surreal. Aliás eles como estudantes de medicina estavam obviamente mergulhados em pura ciência. Sentimentos religiosos eram encarados como crendices populares, uma herança distante de um tempo que para esses jovens que se sentiam imortais não trazia mais nenhum sentido. Talvez apenas uma curiosidade sociológica. Nada mais do que isso.

Robbie provocou. Quem sabe eles não poderiam por pura farra ir para o cemitério à noite para ver com os próprios olhos esses "medievais". Seria divertido, engraçado, bizarro, tudo ao mesmo tempo. Além disso ia trazer uma anedota para que eles pudessem contar pelo resto de suas vidas. A ideia empolgou os dois amigos, mas Mark ficou com um pé atrás. Afinal o velho coveiro era o tio da garota pelo qual ele estava caidinho. Valia a pena se queimar assim? Só pela farra de seus colegas de universidade? Era muito arriscado, mas nessa idade quem pensa com seriedade? É um jogo divertido de cartas meu caro.

A semana transcorreu sem maiores problemas. Havia muitas aulas e naquele semestre em particular Mark estava prestando praticamente todas as matérias sobre anatomia. O corpo humano o fascinava. Ele tinha aquela máquina da natureza como um conjunto perfeito o que em sua opinião exigia a presença de um criador. Anos antes do advento da inteligência de design, Mark já ficava pensativo sobre tudo o que aprendia. Desde a menor célula, até o mais bem organizado e complexo membro ou órgão, tudo tinha sua função. Não havia espaço para o inútil dentro do nosso corpo. Era fabuloso. Para Mark havia uma inteligência por trás de tudo aquilo. Não poderia ser mero acaso, definitivamente não haveria como!

Durante a semana Mark se comportava como um estudante de medicina exemplar. Ele tinha boas notas, era considerado um aluno inteligente pelos professores e se revelava uma pessoa bem sociável entre os colegas de universidade. E freqüentar uma universidade naquele época era mais do que um privilégio. Era um verdadeiro sinal de que assim que formado haveria empregos, bons salários e um futuro promissor pela frente. E para isso não era necessário ser o mais inteligente dos homens. Se o jovem médico optasse por morar no interior, em pequenas cidades, ele também teria uma vida de privilégios, pois os médicos eram ao mais bem pagos por onde passavam. Era uma vida cheia de promessas no futuro, um sensação de sucesso enchia a todos de orgulho.

Claro, naquele meio também existiam os patifes, os pequenos canalhas e os assumidamente escroques. Todos eram, em maior ou menor grau, filhos da elite escocesa, pois o curso exigia vários anos de estudo e era necessário para isso uma família abastada e rica por trás. Os livros custavam pequenas fortunas e manter um estudante de medicina naquele tempo custava caro. Só as famílias mais ricas podiam dispor desse privilégio.

E no plano de futuro brilhante também havia a expectativa que o jovem médico escolhesse uma bela dama para se casar. Uma moça de família de sobrenome, a mulher que seria a ideal para um jovem médico em começo de carreira.

Era justamente isso que Mark mais temia. Ele era apaixonado por Katja, a garçonete filha de um coveiro. Impensável para sua mãe ter uma nora assim. Ele podia inclusive ouvir a voz de sua mãe berrando em sua mente numa hipotética situação dela um dia vir a descobrir tudo. Era enervante. A mãe dominadora provavelmente teria um colapso nervoso caso viesse a saber que Mark, seu filho motivo de orgulho, era apaixonado por uma vagabunda. E o que dizer de seus excessos na bebida?

Conforme a semana ia chegando ao fim Mark começava a salivar, a sentir um enorme desejo de tomar uma bebedeira. Ele sabia que isso era sintoma de que provavelmente ele iria desenvolver nos próximos anos um alcoolismo crônico. Porém é a tal coisa, quando se é jovem e se tem o futuro pela frente tudo é possível, nada parece ser trágico, cinza ou negro em seu futuro. Tudo parece brilhar, é claro. Só que contra fatos não há argumentos. Mark sentia a abstinência. Assim quando mal acabavam as aulas na sexta-feira pela tarde ele corria, subia em uma carruagem e ia para o interior, freqüentar as piores e mais esfumaçadas tabernas. Ele queria se esbaldar, com muito álcool, sexo pago e aquele clima de vida boêmia decadente e depravada que ele tanto amava.

E sim, havia ainda Katja, seu amor bandido. Mark não via a hora de se deitar com ela, ficar enrolado em seus braços, sentir aquele cheiro de perfume barato que tanto o excitava. Era um paradoxo. Quanto mais Katja parecia vulgar e dissoluta, mais ele parecia se apaixonar por ela. Quanto mais ela quebrava convenções, mais ele se derretia. Psicologicamente era um portão de liberdade. Liberdade de se ver preso a semana inteira na imagem de jovem impecável, de jovem promissor. Ele queria a esbórnia, queria a embriaguez.

Cap. III - O Cemitério
Naquele fim de semana Mark finalmente resolveu que iria até o cemitério, tarde da noite. Queria ver o que se passava. Já meio embriagado ele partiu ao lado de Katja pelas ruas escuras da cidade.

- Vamos encontrar seu tio – vamos lá! – gritava Mark enquanto caminhava. Ele via as pedras das calçadas brilhando ao luar.

- Fale baixo, cala a boca, vão nos prender por arruaça – devolvia Katja com os braços de Mark em seu ombro.

Ele tinha uma garrafa de whisky numa das mãos e na outra segurava Katja com força. Imaginem o escândalo caso sua nobre família o visse daquele jeito. O tio de Katja estava de plantão naquela madrugada. Era a velha história dos adeptos de ocultismo e paganismo invadindo o cemitério de noite para fazer seus rituais de satanismo. Havia até mesmo adeptos de uma nova linha de ocultismo francês, que havia sido compilado em um livro de sucesso chamado “O Livro dos Espíritos”. O autor? Um professor desconhecido que havia adotado o nome de Allan Kardec. No cardápio muita necromancia e invocação de mortos travestido de bom mocismo. O velho professor estava de olho mesmo nas vendas dos livros, mas no fundo acreditava em toda aquela nova doutrina de clara linhagem de anjos caídos.

A entrada no cemitério foi tranquila. Os velhos portões enferrujados estava entreabertos.  Era um velho cemitério decrépito, com suas antigas lápides, encobertas por vegetação rasteira. Aquelas pessoas tinham morrido há muitos anos. Provavelmente seus familiares também estavam mortos. Assim não havia mais quem se importasse com os túmulos. Com o abandono a natureza voltava a tomar conta.

Era aquele clima de abandono e solidão. Aqueles nomes nas pedras já não significavam nada para ninguém. O tempo, senhor de tudo, já havia de certo modo apagado da memória dos vivos a história daquela gente que jazia sete palmos abaixo da terra. Quem foram? Quem eram? Quais eram suas personalidades? O que faziam quando eram vivos? O que pensavam? Tudo havia se perdido nas areias do tempo. Dizem que nenhuma alma se apaga. É uma visão romântica. A maioria das pessoas terá suas memórias apagadas para todo o sempre. As ditas pessoas comuns serão esquecidas. Suas pegadas serão apagadas. Nem seus descendentes vão se lembrar delas após alguns anos. A morte é a morte também da lembrança, da memória.

E no meio desses pensamentos melancólicos Mark e Katja foram adentrando pelas ruelas do velho cemitério decrépito. Ela olhava acima dos ombros em busca de seu tio. Ele, meio bêbado, não estava preocupado. Tinha o calor do corpo de Katja ao seu lado. Era tudo o que ele queria na vida, no final das contas. Foram andando, andando, de vez em quando se lia algum nome de algum morto até que...

Eles ouviram barulhos. Pareciam tambores. Parecia gente cantando uma música estranha. Eram os pagãos, com certeza. Mark colocou o dedo sob a boca, fazendo aquele gesto de “silêncio” que todos conhecemos. Havia uma fogueira, se via pela claridade do fogo no meio da escuridão da noite. Mark e Katja foram em sua direção, se agachando um pouco para que ninguém os visse. Era um misto de aventura, mistério, tudo junto. Embiaguez de sentidos.

Ao subirem o pequeno morro viram então a cena. Eram de cinco a seis mulheres. Elas dançavam ao redor do fogo. Gritavam e cantavam numa língua estranha. Parecia um velho idioma dos druidas. Era obviamente uma cerimônia antiga, uma coisa de invocação de espíritos da natureza. Era o que os antigos costumavam chamar de bruxaria. Se fosse ainda os tempos da santa inquisição aquelas mulheres seriam queimadas na fogueira com toda a certeza.

Elas pareciam invocar o nome de demônios. Nomes que Mark desconhecia, mas que soavam um pouco familiares. Eram nomes de anjos caídos, de seguidores de Lúcifer. O que aquelas mulheres queriam com aquilo show de bizarrice? Era apavorante, estúpido, ridículo, tudo ao mesmo tempo. Claro, havia ali também um prato servido para sociólogos e teólogos em geral. Afinal ver um bando de mulheres nuas dançando em volta de uma fogueira, com atacas nas mãos, invocando antigos nomes de demônios, definitivamente não era algo que se via todo dia.

Até que Mark ouviu um barulho vindo do meio da escuridão das árvores. Parecia uma fera grunhindo de fúria perto de atacar. Era um rosnado aterrorizador, é verdade. Mark colocou as mãos sobre o paletó e percebeu que estava totalmente desarmado. Se aquele bicho resolvesse atacar ele não teria nem ao menos como se defender... Se havia momento para ter medo, bom, aquele era a hora certa para isso...

Cap. IV - O Lobo
Chorem crianças da noite, chorem! - Mark conseguiu ouvir essa ladainha bem no meio da tensão. Uma criatura estranha o enxergava por entre as árvores. Árvores de cemitério. Velhas, longas, sinistras... O animal foi se aproximando, mas ainda sem se revelar. Era algo não natural. Parecia um lobo, mas de porte extremamente avantajado. E aqueles olhos vermelhos, bem, aquilo não lhe parecia familiar? Era a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. A fúria e a violência. Nada de paz provinha daquele bicho.

Então ele se colocou por fora das sombras. A luz do luar iluminou a cabeça daquela insana visão. Mark ficou em alerta. Ele não queria fazer um gesto brusco porque isso poderia assustar aquela criança da noite! E então o animal começou a rosnar, a rosnar, era o prelúdio de um ataque iminente. Mark percebeu que tinha apenas alguns segundos e então.. o pulo fatal!

Ele se esquivou, mas não escapou de ser machucado pelas garras da fera. O sangue escorria em seu ombro. Mark então se abaixou e pegou uma pedra enorme, provavelmente pedaços de uma lápide secular. Ele ficou jogando a imensa pedra de mão em mão, olhando a besta nos olhos. Era uma dança corporal que passava a mensagem que haveria reação, que caso fosse atacado ele iria revidar. Besta dos infernos ou não, cão de Satã ou não, haveria luta. Mark, cerebral agiu como se tivesse pronto para a guerra com seu opositor.

O animal deu uma segunda investida e cravou os dentes no ombro de Mark. Ele caiu ao chão, viu de perto os dentes da fera pingando com seu sangue. Com adrenalina a mil nem pensou duas vezes e bateu a pedra na cabeça do bicho. Deu certo. A pancada surtiu efeito e o monstro bateu em retirada. A violência e a força do ataque acabou chamando a atenção de todas as pessoas que estavam no cemitério, até mesmo das garotas pagãs que se vestiram e saíram correndo em direção a Mark para prestar socorro.

Ele caído no chão, com a roupa rasgada e o sangue escorrendo pela camisa.  "O que aconteceu? O que aconteceu?" - gritavam as aprendizes de bruxas do inferno. "Fui atacado por um lobo!" - Respondeu Mark, ainda desnorteado pelos acontecimentos. Apoiado nas meninas ele se levantou. Sacudiu para tirar a areia. Areia de cemitério. A mesma que era jogada em cima dos caixões putrefatos dos corpos sem vida. Então as garotas o levaram até o portão. Só que havia um problema;. Mark parou, olhou para trás e gritou: "Katja, onde você está?"

Mark acordou no hospital. Ele estava mal. O animal que o atacou gravou os dentes em seu ombro. O ferimento foi feio. Rasgou a pele e danificou várias veias e músculos. O quadro não era bom. Ele ardia em febre. Seu pai ficou espantado ao saber das circunstâncias do ataque. O que diabos Mark estava fazendo em um cemitério? Que bicho o atacou? Por que ele não avisou sua família? Eram questões que todos se perguntavam.

Mark ficou doente e febril por três dias seguidos. Coisa grave. Só que para espanto dos médicos, após o terceiro dia ele teve uma melhora espantosa. O ferimento deixou de inchar e um risco de infecção foi descartado. No quarto dia ele parecia muito bem. Sentou na cama, andou pelo quarto, falou alegremente com os familiares. Parecia ter se recuperado bravamente! Até o corpo médico que o atendeu ficou surpreso! Era caso de entrar nos estudos da medicina.

No sexto dia Mark pegou sua camisa, seu casaco e saiu do hospital. Os médicos não lhe deram alta. Ele se deu alta. Acordou, lavou o cabelo, escovou os dentes e se foi. Sua primeira parada não foi na casa dos pais, mas na de Katja. Ele estava preocupado com ela. O que aconteceu com a garota pela qual ele tinha tantos sentimentos? Ele estava muito preocupado, porque em seus lembranças difusas ele viu ela sendo brutalmente atacada pelo bicho. Aquilo havia acontecido mesmo ou era fruto de uma mente em delírios, após a grande febre que teve no hospital?

 A notícia não foi nada boa. Jack Anderson, o velho coveiro, tio de Katja, lhe deu a terrível verdade.

- Katja está morta! - O velho era duro, sua profissão lidava com a morte, mas agora ele estava realmente entristecido.

- Meu Deus! Eu não acredito! - Mark, com lágrimas nos olhos, não conseguia acreditar. Ele se abaixou e ficou ema posição que mostrava sua vulnerabilidade emocional.

- O lobo a matou. Ele arrancou a cabeça dela - O tom do velho Jack era estarrecedor.

- Não, não... não... - Mark não conseguia acreditar no que estava ouvindo...

O  velho coveiro então percebeu que Mark tinha pedaços de curativos saindo por seu casaco. Ele percebeu que Mark tinha sido ferido também pela criatura. Isso não era um bom sinal, pelo contrário, era um péssimo indicativo. O velho acreditava em velhas lendas... como a de homens que viravam feras em noites de lua cheia. Para ele o ataque do "lobo" nada mais era do que o ataque de um "lobisomem" e como tal isso condenaria a vida de Mark para sempre. Se em algum momento, durante o ataque, seu sangue teve contato com o sangue do monstro feroz, então ele também estava condenado.

Cap. V - O Monstro
Mark virou-se e saiu, meio tonto pela ruas molhadas pela chuva. Foi uma imersão traumática para ele, do ponto de vista psicológico. Isso porque ele amava Katja, mas ela agora não passava de um cadáver. Ele queria saber o que tinha acontecido, o velho até estava disposto a lhe dizer, porém não naquele momento. O coveiro iria se inteirar dos acontecimentos. Saber o que havia mesmo acontecido. Caso Mark começasse a apresentar um comportamento estranho, o velho estava disposto a usar seu rifle para dar um tiro em sua cabeça. Mais uma criatura metade lobo, metade homem, seria demais para aquela pequena cidade.

Mark foi se recuperando aos poucos. A cada dia ele ganhava uma dose de normalidade. Começou a beber muito, na maioria das vezes para superar o trauma da morte de Katja. Era algo que ele não conseguia entender. O que havia acontecido naquela noite? Uma fera saindo das sombras, atacando as pessoas em um cemitério, durante uma noite de luar? Não fazia muito sentido. Era algo complicado de entender. Muitas perguntas ficaram sem respostas. Tudo havia ficado pelo caminho.

Numa tarde recebeu a visita do inspetor da cidade. Ele estava investigando a morte de Katja. Queria saber como ela havia morrido. Mark não tinha muito o que esclarecer. Ele mesmo tinha muitas dúvidas sobre tudo. Se alguém estava em busca de respostas era ele mesmo. O velho policial não gostou da atitude de Mark. Achou ele evasivo e fraco em seu depoimento. Desconfiado, colocou Mark na lista de suspeitos. Ele era um jovem rico, estudante de medicina, de uma ótima família tradicional, mas nada disso impedia de quem sabe ser indiciado pelo crime.

Durante a primeira semana após o ataque Mark foi notando algumas diferenças. Ele não conseguia mais se concentrar nas aulas e tinha tonturas e crises de vômitos, todos os dias isso acontecia. Ele estava tão deprimido que ignorou os sinais que seu corpo estava lhe passando. Outro fato também o deixou perplexo. Sua fome aumentou consideravelmente. E não era uma fome como outra qualquer. Era algo voraz. Ele não se satisfazia com o que estava acostumado a comer todos os dias. Agora Mark queria grandes fatias de carne, e se essas fossem sangrentas, muito melhor!

Ele passou a frequentar o restaurante especializado em assados e caças. Ele nunca havia ido muito por lá, mas agora era uma necessidade vital que sentia. Mal as aulas caminhavam para o final e ele já estava nos corredores, correndo em direção à comida. Queria comer, comer, comer, muito carne, sempre, sem intervalos. Virou algo obsessivo e doentio. Seus colegas de faculdade logo notaram isso. E mais de uma vez surgiu na classe com a roupa suja de sangue da carne que havia comido. Logo ele, um verdadeiro dândi no modo de vestir. Agora parecia o porco de uma açougueiro... o que estava acontecendo?

Ele não sabia disso, mas o estudante de medicina Mark Longbridge III havia se transformado em um monstro. Nas noites de lua cheia ele perdia a consciência humana e se transformava em um lobo feroz, uma fera em busca de carne! A fome era insuportável, assim qualquer coisa que se mexia era atacada ferozmente. O lobo causou pânico e terror por onde passava. A polícia já sabia que algo estava acontecendo. Era raro não aparecer o corpo de algum camponês ao amanhecer. Algo estava fora de controle e algo sedento por sangue.

O velho Jack Anderson, o coveiro, sabia muito bem o que ocorria. Ele entendia a lenda. Os eruditos se recusavam a acreditar em lobisomens. Isso era coisa de gente ignorando do interior. Mas Jack, um velho experiente, que não se surpreendia com nada, bem sabia o que se escondia por trás das sombras. Ele então decidiu que iria matar o monstro. Lamentava que com isso também iria eliminar Mark, mas isso era algo que não poderia mudar. O ser humano teria que ser sacrificado com a morte da fera. A bestialidade não poderia mais andar à solta nos bosques.

O que ninguém sabia é que Jack já havia tratado com esse tipo de coisa antes. Ele era muito interessado em ocultismo e sabia que forças sobrenaturais agiam no mundo material que conhecemos. Para lobisomens apenas balas de prata eram eficientes. Ele então foi até o amigo que trabalhava com forjamento de metais e pediu que ele fizesse um conjunto de seis balas de prata. Uma vez armada com o tipo ideal de munição se colocou à moita, esperando Jack passar na madrugada. Ele conhecia a rotina do jovem.

Cap. VI - A Noite
Na noite ideal ele começou a seguir os passos de Mark. Ele parecia meio desorientado quando adentrou o bosque da região. Com as mãos no rosto mal conseguia ficar em pé, então caiu. A transformação iria começar. Em poucos minutos sua feição começou a mudar. Era uma transformação dolorosa e insana. O velho Jack então se posicionou, colocou as balas no rifle e fez mira.

- Morra, enviado do diabo - morra! - Foram suas únicas palavras.

O estampido do tiro espantou os pássaros. O tiro não foi certeiro, atingindo apenas o ombro da fera. Essa deu um pulo de sobressalto, procurando pelo atirador. Os olhos vermelhos de ira denunciavam que o ser humano não existia mais, apenas a besta.

Então o velho Jack mirou com capricho em seu coração. E apertou o gatilho. A bala acertou em cheio...

Um ruído assustador cortou a madrugada. A fera caiu de frente, com as mãos tentando segurar o sangue que jorrava.

Mais um tiro, nas costas. Três balas de prata já cravavam o corpo do monstro.

O animal então caiu definitivamente. Estaria abatido?

O velho Jack chegou perto para conferir. E para não restar dúvidas deu mais dois tiros de prata, os chamados tiros de misericórdia. O animal deu seu último suspiro.

Jack não perdeu tempo e foi embora do lugar. Alguém poderia ter ouvido os tiros. Ele não queria ser acusado de assassinato.

E ali naquela lareira abandonada, iluminada apelas pela luz opaca da Lua, o jovem Mark começou a ressurgir. Ele estava morto, com as roupas rasgadas, o ombro nu, sangrando...

Era o fim de sua vida, era o fim de todos os seus sonhos... ou não?

Cap. VII - O Uivo do Lobo
Mark não morrera. As balas usadas pelo coveiro não tinham o teor necessário de prata pura para matar o lobo, apenas para suspender por um curto período de tempo sua transformação. O velho coveiro não teria dinheiro mesmo para comprar prata de alto nível de pureza. Mark estava vivo. Ele recobrou sua consciência levando as mãos em seu rosto. Sentiu como se 1 tonelada estivesse pressionando sua cabeça. Era uma dor terrível, mas ele havia retomado a consciência de si mesmo, de onde estava. As roupas rasgadas, sujas, cheias de lama... sangue coagulado em seus braços e mãos. Aquela noite que passou havia sido mesmo uma noite infernal, sob todos os aspectos.

Mark então se levantou. Ele ainda cambaleava, procurando por uma direção. Por sua sorte foi visto por uma jovem colega da universidade de medicina. Ela ficou horrorizada com o que estava vendo. Mark estava em frangalhos, ou melhor dizendo, suas roupas estavam esfarrapadas. Naquele momento parecia o mais imundo escocês do mundo - mais sujo do que os mendingos que andavam pelas ruas da cidade. Sua conhecida (veja bem, não era sua amiga, mas eles se conheciam), correu e usou o grande lençol que estava usando para seu pic-nic para cobrir Mark.

- Meu Deus! O que lhe aconteceu? - Isabel estava em choque. Mark não respondeu. Ele tinha problemas de se manter em pé. Imediatamente entrou na carruagem da amiga que o levou até um pequeno hotel nas vizinhanças. Mark mandou comprar roupas novas e depois de um longo banho estava novamente apresentável. Parecia finalmente um ser humano.

Ele se deitou na cama e ficou pensativo. O que havia acontecido mesmo? Ele tinha lapsos de memórias, apenas momentos breves surgiam em sua mente. Suas lembranças tinham cheiro e gosto. Cheiro e gosto de sangue humano. Lembrava de lutas, suor, fedores, adrenalina destroçando sua mente. Eram lembranças do momento em que se transformava em um monstro, em um lobo.

Como todo rapaz de sua geração ele também conhecia a lenda dos lobisomens. Era algo bem explorado por livros de bolso, publicações sensacionalistas. Era pulp fiction por excelência. Só que Mark também sabia que algo havia lhe acontecido. Verdade ou mentira, lenda ou realidade, ele sabia que algo havia lhe atingido. Sua mente de médico (ou de quase médico, já que ele ainda não havia se formado) se colocou a pensar. Ele poderia estar contaminado por algum vírus nunca estudado pela ciência médica. Ele poderia estar passando por alguma doença desconhecida. Virar simplesmente um monstro não era algo que lhe parecia crível. Era algo insano, fora de realidade, coisa de gente ignorante das pequenas vilas de interior. Mark tinha que achar a resposta, antes que fosse tarde demais...

Cap. VIII - Sexo, fúria e selvageria
Mark se tornou um lobo naquela mesma noite. Era sexta-feira de lua cheia. Impossível resistir ao chamado do lobo. Logo ele começava a suar em profusão, sentindo sua pele se revirar completamente. Era uma dor insana, uma dor da morte. Seus dentes caninos cresciam e forjavam sua caixa craniana. Geralmente nesses momentos ele desmaiava da dor insuportável que sentia. Perdia os sentidos. O homem era deixado de lado. A basta fera tomava o controle. E uma vez dominado, não havia mais nenhum pensamento racional em sua mente. Tudo que pensava em satisfazer seus desejos mais primitivos, como fome e sexo.

A fome logo foi saciada no bosque. Um cervo passeava tranquilamente na floresta, pensando estar seguro, coberto das sombras, quando o lobo o atacou. Era Mark transformado. Ele imediatamente atacou a jugular da pobre criatura. o sangue jorrou e lhe trouxe um prazer indescritível. Era insano, era selvagem, era maravilhosamente delicioso. Enquanto o animal morria, vendo sua vida escorrer por suas artérias, Mark se saciava, dando grandes mordidas em seu couro forte e resistente. Quando a pele finalmente rompia ele gritava para a luz do luar. Estava em êxtase completo.

Foi quando ouviu galhos se quebrando. Era uma pessoa. Melhor, era uma mulher. Andando no meio da floresta, no meio da noite, completamente indefesa. Tudo o que o lado bestial de Mark mais queria. Após saciar sua fome era hora de saciar sua lascívia. Não houve tempo de reação. A pobre garota gritou, mas não havia ninguém para ouvir. Mark pulou em cima dela, arrancando suas roupas com os dentes. Logo dois lindos seios rosados foram iluminados pela luz da lua da meia noite. Mark a possuiu com ferocidade, ali mesmo, no meio do mato, na areia do solo da floresta. Seu membro absurdamente aumentado por sua transformação praticamente rasgou a pobre garota em duas! Foi uma cena que o próprio Satã assistiu, tomando doses de vinho milenar e dando gargalhadas no meio da noite.

- Veja, seu desgraçado... Seu bastardo... veja... no que sua "genial criação" se transformou! - Era o anjo caído debochando e desafiando Deus. Era óbvio que ele, mais uma vez, queria demonstrar que o ser humano, dito como a maior criação de Deus, era uma piada infame. O seu ser humano, agora transformado em besta, devorava viva uma bela jovem loira de olhos azuis - Tome seu bastardo, tome seu canalha - Gritava Satã entre gritos e risadas diabolicamente ensandecidas.

Mark, ou melhor, a besta, continuou a possuir com ferocidade a jovem garota. Depois em um momento de pura fúria teve um orgasmo absoluto, feroz, incomparável. Ele estava fora de si, transformado em lobo. Lembrou de Katja, sua jovem amada, agora dentro de um caixão. Pensou em ir ao cemitério para tirar ela da sepultura, para fazer amor com seus restos mortais.

Satã, com seu poder de entrar na mente de Mark, deu risadas histéricas daqueles pensamentos. Imagine, depois de um ato de bestialismo, teríamos agora um ato de necrofilia. Esse Mark era realmente um de seus filhos malditos, um de seus ungidos nas escuras cavernas do inferno profundo. Satã dançava entre as árvores da floresta, ria de forma sarcástica, bebia o vinho derramando em seu corpo. Era a personificação do deboche, da blasfêmia, da sagacidade. Poucas vezes ele havia se divertido tanto como naquela noite escura.

Cap. IX - Carta a um Amigo...
Quando os inspetores entraram no quarto onde Mark vivia encontraram uma grande bagunça. Roupas rasgadas (e cheias de sangue) pelo chão, mau cheiro, podridão, moscas. Nada parecia lembrar o asseado estudante universitário do passado. A polícia já estava atrás de Mark há alguns dias. Ele foi visto saindo, praticamente nu, de uma das cenas de crime. Ali perto, a poucos metros, jazia o corpo de uma jovem que havia sido literalmente estraçalhada por uma selvageria poucas vezes vista. Assim o inspetor John Winston já sabia por quem procurar.

Ele começou uma série de investigações e descobriu alguns fatos interessantes. Mark há muito já não frequentava as aulas na universidade. Estava sempre apresentando um comportamento estranho, esquisito. Não falava mais com os velhos amigos, parecia perturbado da mente e do corpo. Seu cheiro ruim passou a ser comentado por colegas de classe. Ele não conseguia mais prestar atenção às aulas e fugia das provas. Numa dessas ocasiões chegou a quebrar um lápis bem no silência do teste. Aquilo chamou a atenção de todos. Ele apenas se levantou, jogou a prova no chão e se foi, grunhindo algumas palavras que ninguém entendeu.

Parecia estar sempre suado, enervado, colérico. O menor sinal de aborrecimento levava à ira. O menor comentário que ele considerasse ofensivo... partia para cima de quem dissesse tais palavras. De jovem calmo, sereno, amigo, culto, passou a ser visto como um sujeito rude, grosso, ignorante. Estava sempre vermelho, prestes a explodir. Era irascível, brigão... parecia estar sempre em busca de briga. Virou um valentão nos corredores da universidade. Destruiu sua imagem, virou uma paródia de si mesmo. Esse foi o quadro que surgiu de diversas entrevistas com outros estudantes.

Na carta que foi encontrada dentro de seu quarto, o inspetor descobriu mais sinais de que ele poderia ser o assassino selvagem e mordaz que estava há tempos procurando. A carta estava amassada, quase rasgada. Foi encontrada dentro de um balde onde o estudante jogava fora suas anotações. Era algo bem bizarro ter encontrado aquele manuscrito no meio de um monte de outras folhas de estudo. Ele estava com a mente alterada, por isso não devia se esperar por algo lúcido.

A carta tinha o seguinte teor: "Carta a um amigo. Estou muito mal nos últimos dias. Tenho passado por sintomas estranhos. Tenho momentos de delírio e loucura. Alucinações passam pela minha mente. Me vejo como um lobo no meio da floresta, correndo entre as árvores, predando pequenos e grandes animais. Sinto uma vontade imensa de consumir carne... humana! Quero matar, quero dilacerar... não sei o que está acontecendo comigo. Em um raro momento de lucidez nos últimos dias fui até a biblioteca da universidade em busca de respostas. Nos livros de medicina encontrei algo que pode ser a resposta para minhas perguntas. A palavra que pode me salvar é: licantropia! É isso, vou atrás de um especialista, vou atrás de cura... precisa me curar! Meu Deus... me ajude!"  

Cap. X - Mausoleum
O corpo de Mark foi encontrado alguns dias depois em um caminho para a cidade de Glasgow. Ele estava no chão, caído ao lado de sua carruagem de dois cavalos negros. O inspetor John havia acompanhado Mark nos últimos dias ao lado de dois investigadores. Trazia em mãos seu mandado de prisão. Não houve tempo de cumpri-los. As investigações revelaram que no últim dia de sua vida Mark comprou uma espingarda de caça a raposa. Depois comprou dois pacotes de muniação especial. Eram balas de prata, tiradas das minas de Montana, nos Estados Unidos. Algo caro, que apenas um jovem de família rica como ele conseguiria comprar tão facilmente.

Quem o encontrou foi um senhor, um velho camponês que morava perto. E ele tinha mais a dizer. Disse aos policiais que ouviu o tiro que matou Mark, mas que não foi até o local por puro receio de também sofrer alguma violência. Havia ladrões e bandidos atuando naquela área, principalmente pelas madrugadas. No dia seguinte, ao amanhecer, foi até o caminho e encontrou Mark morto no chão. O inspetor John descobriu que Mark havia se matado com um tiro na cabeça. O mais estranho em seu corpo é que um de seus braços estava absurdamente peludo para um ser humano.

A conclusão que o inspetor chegou foi algo que ele guardou apenas para si mesmo. Seria absurdo colocar isso em um relatório policial. Apenas em sua mente ele decifrou os acontecimentos. Era óbvio que Mark havia se matado durante sua jornada. Mas o que aconteceu? Para o inspetor ele começou a sofrer uma transformação. Era sexta-feira, noite de lua cheia. Sim, o inspetor, mesmo que não dissesse isso a ninguém, estava convencido que Mark estava se transformando em um lobisomem naquele momento. Desesperado, já com o braço direito em transformação, ele desceu da carruagem, pegou seu rifle, armou com duas balas de prata e atirou contra sua cabeça. Esse foi o seu fim.

Dentro da carruagem do suicida, o inspetor encontrou um livro chamado "Lendas e maldições do Lobisomem". Estava claro que Mark o estava lendo, pois havia muitas marcações em suas páginas. O inspetor pegou o exemplar e o tirou da cena do crime. Ele iria defender a tese de que Mark sim havia se matado, mas o havia feito em um surto psicótico. Ele estava sofrendo de algum distúrbio mental não diagnosticado. No auge da loucura havia decidido acabar com tudo. Esse seria o teor de seu relatório. Para poupar ainda mais a família e evitar problemas para ele, como servidor público, omitiu do relatório qualquer ligação de Mark com as mortes de mulheres. A família poderia ficar ofendida e destruir sua carreira, caso isso viesse a parar nos jornais.

Mark foi enterrado no cemitério local, na área reservada às famílias tradicionais e mais ricas da cidade. Não muito longe dali, na chamada "viela dos pobres", onde pessoas mais humildes eram enterradas, havia sido enterrada sua amada Katja. Eram tão jovens... morreram tão jovens... era algo a se lamentar. A família de Mark ficou arrasada e muito consternada com sua morte. Ele foi sepultado no bonito mausoléu de seu clã. Seu caixão foi depositado ao lado do lugar onde seu avô, um dos homens mais ricos da história da Escócia, há alguns anos jazia.

Curiosamente, com o passar dos séculos, aquele mausoleum ganhou fama de amaldiçoado pelas pessoas que moravam na cidade. Dizia-se que em noites escuras de lua cheia um lobo solitário, todo branco, ai até lá e uivava para a luz do luar. A fera tinha olhos vermelhos de sangue e não parecia ser desse mundo. A lenda urbana iria inspirar um jovem escritor a colocar no papel toda a história que era contada nas tavernas da região. Era a história de um jovem rico, estudante de uma das principais universidades escocesas, que nas noites escuras se transformava em uma besta assassina. Quem poderia discordar de algo assim? Absolutamente ninguém... O uivo do lobo nas noites tem seus próprios segredos seculares...

Pablo Aluísio.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Kepler-452b

Cap. I - A Mensagem
Ao acessar aquele arquivo o astronauta teve acesso a um logo e confuso monólogo, de alguém que não mais respirava e existia. Era um registro até mesmo insano, onde as ideias iam atropelando os pensamentos. O áudio que seguia era também meio assustador. Nele se podia ouvir: "O meu nome é John. Nome comum, nada especial. Apenas um nome. Atualmente trabalho numa empresa de transportes inter espacial. Minha formação foi de engenharia mecânica, mas não encontrei emprego na minha especialização. O jeito então foi me virar. Acabei aceitando entrar na empresa que primeiro aceitou me ofereceu um serviço. Em 2873 ter um emprego é um verdadeiro milagre. O planeta Terra virou uma lata de lixo. Superpopulação e muitos problemas. Grande parte dos jovens se dedicam a atividades criminosas. Virou profissão. Os juízes são comprados e os governos socialistas que dominam o globo apenas criaram uma elite burocrática formada por propineiros e corruptos. Quem tem dinheiro domina esse pobre e infeliz planeta.

Já a elite financeira do capital parasitário foi embora, para as estrelas. Os avanços da ciência foram amplos, principalmente no século anterior. As enormes distâncias espaciais foram vencidas. Hoje em dia uma viagem rumo a um exoplaneta habitável é corriqueiro, habitual. Desde é claro que você tenha dinheiro suficiente para comprar uma passagem ou então ser uma mulher bonita. Mulheres bonitas ainda são valorizadas, principalmente se você vai embarcar numa viagem que dura dois anos terrestres. Claro, todas elas são submetidas a um regime servil, com base em prostituição. São garotas sexuais, nada mais. A maioria é bem simplória mesmo, burras. A educação virou item para apenas famílias milionárias. A única chance de uma garota pobre cair fora da Terra seria mesmo por sua beleza e ardor sexual, nada mais.

Kepler-452b é o destino final da minha viagem. Estou há onze meses no espaço. Viajo sozinho, levando equipamentos de manutenção para uma das bases coloniais no planeta. Esse foi um dos primeiros a serem descobertos pela ciência, lá pelo distante e primitivo século XXI. Hoje sabe-se que é um planeta rochoso, até adaptável para a vida do ser humano. A atmosfera é rala, mas renovável e o mundo tem uma primitiva vegetação, que garante um suporte de vida para seres inferiores. Não há vida inteligente, só os humanos, se bem que não diria bem que nossa espécie é o suprassumo de inteligência e coerência nesse vasto universo.

Pessoalmente nunca quis ir embora para Kepler. Não é o melhor dos mundos, é apenas um dos possíveis atualmente. Há muitas tempestades de areia e a radiação torna certas regiões inabitáveis... não é um resort de luxo. Talvez daqui mil anos se torne um lugar melhor, até que a raça humana jogue tudo no lixo novamente com guerras, ideologias de ódio e genocídios. Além disso o clima em Kepler é ruim, tem muitas variações de temperatura a cada dia. O sol de lá, chamado pelos cientistas de Kepler 452 (claro, seu idiota!) pode transformar os planaltos quentes como o inferno, mas tudo também pode mudar, gelando ao extremo polar em apenas algumas horas. Inferno, inverno, verão...Pensando bem, que lugarzinho miserável esse...

A vida é uma porcaria. Tenho consciência disso. Navegar pelo espaço sozinho, tendo apenas os corredores mal iluminados para compartilhar sua solidão, aumentam essa sensação. Muitas vezes você se pega pensando, pensando... fazendo um balanço nada louvável de suas conquistas e suas derrotas. Não é um exercício de prazer, muito pelo contrário. Quem suportaria? Para matar o tédio escrevo essas palavras ao vento...

A nave que estou não é grande coisa. Claro, é uma boa máquina espacial, robusta e forte, ideal para o trabalho pesado, mas fora isso nada demais. Eu tenho quatro ambientes para viver. A sala de controle, com uma mesa e uma pilha de maquinários para decifrar. Um pequeno quarto com cama que mais parece um submarino, uma nave auxiliar para situações de emergência, do tipo a nave vai explodir e você tem que ir embora para salvar sua vida e uma pequena “academia” para se exercitar. Ficar muitos meses no espaço, sem exercício físico, pode atrofiar seus músculos. Isso é muito ruim, pode ter certeza.

Na maior parte do tempo eu tenho que usar uma roupa especial para evitar que certos tipos de radiações que ultrapassam o titânio da nave me atinjam de alguma forma. Uma prevenção, só isso. É uma roupa que me aperta na virilha e me deixa desconfortável. Os testículos sofrem um bocado. Então eu vou checando os controles diariamente em rondas que são feitas de 3 em 3 horas. No resto do tempo eu leio, reflito sobre minha vida, espero o tempo passar. Vejo um pouco de internet e espero, espero, espero. No fundo ser um astronauta operário é um exercício de paciência, de esperar, esperar... e torcer para que nada dê errado. Por exemplo, um incêndio, por menor que fosse, me mataria em apenas poucas horas. Ele consumiria o oxigênio, me mataria sufocado. Uma morte terrível.

Mas, não vamos falar de morte. Isso é bem perigoso. Ultimamente eu tenho sentido um certo desconforto, um certo receio. É uma espécie de tontura leve que não vai embora. Se eu me levantar de uma cadeira com velocidade é bem capaz que eu perca meu equilíbrio. Talvez isso seja causado pela minha mania de coçar os ouvidos. Isso atinge o ouvido interno, levando a uma labirintite não diagnosticada. É uma sensação ruim. Certa vez quase caio e tive que ficar sentado, pensando em outra coisa para não me prejudicar. A mente é poderosa. Se você pensar em algo ruim é bem provável que isso aconteça mesmo. Penso que a mente tem poder de criar bem ou mal estar. Pensou, sentiu... Filosofia barata...

A solidão é boa algumas vezes. Não subestime o poder do silêncio. Eu tive um pai que havia sido criado por um homem obviamente limítrofe. Ele colocava todos os filhos em estado de alta tensão. Isso criou uma ansiedade que aniquilou essas pessoas na vida adulta. Ficaram todos ansiosos e neuróticos. Não conseguiam viver em silencio e nem conseguiam dormir bem à noite. Uma vida infernal. E eles criaram uma imagem altamente positiva do maldito que os criou. Deve ter sido algum tipo de proteção psicológica. É um tipo de auto elogio. Eu elogio meu pai, mesmo que ele fosse um desgraçado, só para indiretamente me auto elogiar. Olha como sou de uma família nobre, digna! Bobagem, você é só mais um nesse vasto, vazio e frio universo.

Olhando pela janela da nave aliás faço também esse exercício do divino. Se Deus existe porque ele fez um universo tão amplo, tão vazio e tão hostil? Milênios depois que a humanidade tomou consciência de sua própria existência miserável, ainda nos perguntamos porque somos os únicos seres inteligentes do cosmos! Por que Deus desperdiçou tantos planetas, tantas estrelas, em vão. Qual é a finalidade de uma estrela como VY Cma, se ela no fundo não serve para nada? É um mega-astro que não tem vida por perto, não gera calor e nem energia para nenhum ser vivo. Existe por existir! Pensando-se na mente de Deus fico mesmo na dúvida – por que Deus teria feito um colosso como aquele para absolutamente nada! Seria um exercício de egocentrismo em nível cósmico? Não sei, não sei, sou apenas uma poeira nesse vasto vazio. Nem sei porque existo, qual é a minha finalidade nesse meio. Minha nave seria engolida facilmente por esse monstro. Tudo iria virar átomo em segundos. Eu não sou nada diante daquilo. Pelo menos tenho a capacidade de pensar sobre isso.

Hoje até estou bem inspirado para divagações. Mas voltemos para minha viagem. Cá estou eu, no meio de um monte de equipamentos. Na colônia eles vão servir para tornar a vida por lá mais suportável. Não que seja uma colônia de férias. Kepler 452-b tem um cheiro de ovo podre. Pelo menos foi o que me disse a Silvia. Bela fêmea. Como solteirão não penso em me casar. Não quero, como dizia Machado de Assis, deixar para meus filhos a herança da miserável vida do ser, mas com uma loirinha como aquela, olha, colocaria toda a filosofia de bolso... no meu bolso. Gatinha suprema, olhos azuis, magrinha, rostinho de anjo. Pena que também nasceu com dedo podre para parceiros. Namorou e casou com um sujeito sem futuro, um matuto de interior. Vai passar o resto da vida trabalhando para sustentar os filhos e a ele próprio, claro. Alguns homens são perdedores por natureza, embora consigam casar com mulheres interessantes, não me perguntem como!

A Silvia ficou para trás. Ficou na Terra. Ainda penso nela muito de vez em quando. Não fui apaixonado, apenas tinha uma certa atração sexual por ela. Queria levar para a cama. Como era uma mulher com temperamento muito forte penso que um relacionamento a longo prazo teria sido cansativo. Além disso ela tinha uma certa pose de superioridade sobre mim, simplesmente por ser mais rica. Era filha de médica numa vila interiorana. Nesses lugares esse tipo de gente é idolatrada pelo povo. No meio de uma caldeira de fogo – como era essa cidade – ser um médico era quase como ser um Deus.

A Silvia tinha dedos alongados. Adoro dedos alongados. Traz para as mulheres uma certa personalidade. Mulheres fortes. Seu único defeito físico eram as pernas, que nos chamados tornozelos eram largos demais. Dedos alongados conseguiriam sobrepujar tornozelos de elefante? Daí uma boa discussão filosófica-existencial-sexual-petulante! Valha-me Deus, estou delirando nesse tédio do espaço. Ok, é uma forma de passar o tempo. Nossa mente pensa em coisas importantes, mas apenas um por cento do tempo. Nos outros 99 por cento é bobagem. Por isso a humanidade é uma trajetória de atos absurdos, decisões estúpidas e... tenho que parar meus pensamentos. Estou recebendo uma nova mensagem no computador da nave... O que seria?

Foi então que eu percebi que eu não conseguia pegar o equipamento. Minha mão ultrapassava a matéria! Meu Deus... o que aconteceu? Desesperado pulei da cadeira, mas essa não se mexeu! Nada parecia lógico. Nada fazia muito sentido, eu não conseguia sentir meu corpo... minhas mãos, nada! Apenas tinha a consciência de mim mesmo. Foi quando então olhei para trás e vi... era o meu corpo deitado na câmara de pressão. Foi então que entendi. Não era apenas uma experiência fora do corpo. Era algo mais. Eu não fazia mais parte desse mundo material, eu não estava no lugar certo... eu estava... morto!"

Cap. II - O Resgate
A nave Copernico VI captou os primeiros sinais de uma nave de transporte que parecia sem direção no espaço. Imediatamente o comandante David Hanley determinou que a Tenente Collette Wolfe fosse até lá para verificar o que tinha acontecido. Ao lado de dois outros tripulantes eles conseguiram ter acesso ao deck principal da espaçonave à deriva. Não parecia haver sinais de vida. Ao entrarem no posto de comando encontraram o corpo de um astronauta sem vida. O rádio transmissor estava ligado, mas não sintonizado em nenhuma estação de comunicação. Pelo estado do cadáver ele estava morto há pelos menos três semanas.

Depois de alguns contatos descobriu-se que o morto era o astronauta John White. Tudo o que ele falou poucos minutos antes de sua morte foram registrados pelo computador de bordo. Era um monólogo confuso, misturando pensamentos sobre o mundo e até mesmo suas preferências sexuais. Algo fora do razoável, fora do comum. Depois de alguns exames saiu igualmente o resultado de sua causa mortis. O sistema vital de sua nave falhou, espalhando monóxido de carbono pelo seu interior. Isso poderia explicar os registros confusos, mal elaborados, atropelados. Sinais de insanidade.

O Capitão David Hanley então recebeu um relatório completo sobre o ocorrido. Agora ele teria que tomar basicamente duas decisões: o que fazer com o corpo do astronauta morto e o que fazer com sua nave que fora resgatada. A nave pertencia à companhia de transporte até Kepler-452b; Por isso seria rebocada. Já o corpo de White seria enviado para o espaço dentro de uma cápsula. O universo seria o seu túmulo final. Para Hanley não havia sentido em manter aquele cadáver. Era algo fora de propósito. Ele seria levado ao espaço, tal como os antigos marinheiros das grandes navegações que eram jogados ao mar.

No resto eles deveriam seguir rumo à estrela Kepler-452. A expedição da Copernico VI tinha finalidade militar, mas também científica. O Dr. Angus Smith estava curioso sobre recentes mudanças na estrela em questão. Sentado ao lado do comandante ele analisava as possíveis implicações. sobre esse anã amarela. Segundo o cientista ela poderia estar no final de sua existência cósmica e isso poderia significar também o fim da colônia humana de Kepler-452b. "Malditos dados do universo" - dizia ele com clara consternação. "Mal escapamos de uma estrela com problemas e já estamos em outra situação delicada". Dr. Smith também estava intrigado com as recentes gravações da nave recentemente resgatada. "Esse homem morreu há 3 semanas, mas há registros de suas ações dentro da nave bem mais recentes. Acredite, em um deles ele fica falando que estava morto!" Assim concluiu: "Ou temos uma falha do computador de bordo em mãos ou então não saberia explicar essa contradição no espaço-tempo". Era um mistério de fato.

A Tenente Collette Wolfe e o Capitão David Hanley, comandante daquela missão, tinham um caso amoroso. A companhia espacial proibia tal conduta, mas as regras não se aplicavam bem quando você estava em uma jornada distante dentro do espaço profundo. E quem iria se impor ao comandante? Algum subordinado? Até porque a própria tripulação achava uma besteira aquela diretriz de não envolvimento amoroso. Se houvesse mais mulheres dentro da nave, todas elas seriam bem aceitas pois seriam, queiram ou não, parceiras em potencial para a ala masculina da equipe.

Isso porém não acontecia. A tenente Collette era a única mulher a bordo. Normal que se tornasse amante do capião, afinal estavam sempre juntos, principalmente em "reuniões" dentro do gabinete do chefe da expedição. Claro que era nesse momento que acontecia toda a pegação. A tenente era uma típica loira caucasiana, muito bonita, com olhos azuis e um corpo invejável. Seios volumosos e muita disposição para o sexo. Não era o tipo de mulher que iria ignorar seu lado sexual para viver em celibato por causa de tolas regras da companhia.

O curioso é que a tripulação de uma maneira em geral sabia do envolvimento do casal, mas respeitava bastante essa opção, evitando qualquer comentário melindroso e desrespeitoso em relação a eles. Seria uma quebra de hierarquia, algo não desejável naquela situação. Quem queria um motim acontecendo naquele lugar tão distante da Terra? Absolutamente ninguém. Apenas o Dr. Angus Smith, oficial de ciência da nave, se atrevia a fazer algum comentário, digamos, mais picante. Como gozava da plena amizade dos dois esses tipo de comentário era aceito sem maiores problemas. Geralmente Angus diziam coisas bem inocentes, do tipo que queria ser convidado para ser o padrinho de casamento, nada muito sério, nada ofensivo. Seria de mal gosto. Além disso ele era inegavelmente um homem da ciência. Preocupado com tudo o que acontecesse dentro da nave nessa seara.
  
Cap III - O Sepultamento
Foi o Dr. Angus que providenciou o "funeral" do astronauta John White, No começo ele pensou em preservar o corpo do morto, por causa das circunstâncias de sua morte. Depois optou por uma cremação e depois por jogar suas cinzas no espaço. Ele costumava dizer que era uma tradição dentro daquele tipo de expedição, algo que remetia aos grandes navegadores do passado, quando o corpo dos marinheiros eram jogados ao mar. Agora os que morriam em viagens espaciais eram colocados a vagar pelo vácuo do espaço pela eternidade. Eles não voltariam ao pó, mas ao cosmos, de onde todos nós viermos. Sem dúvida era algo bem poético.

Após o sepultamento espacial do astronauta John White, começaram as análises dentro da nave Copernico VI sobre sua morte. Tecidos do corpo dele foram retirados e eles corroboram as pesquisas coordenadas pelo Dr. Angus Smith. Sua causa mortis foi definida como intoxicação por excesso de CO2. Provavelmente algum erro no sistema de suporte de vida de sua nave falhou. Com isso sobrou CO2 para respirar. A falta de oxigênio também contribuiu para seus momentos de insanidade. Esse era um bom diagnóstico do que de fato teria acontecido. Foi justamente essa a conclusão que foi apontada em sua necropsia.

Fora dos autos porém havia mais. O Dr. Angus Smith também localizou uma estranha forma de vida biológica dentro dos tecidos do cosmonauta morto. E eles definitivamente não deveriam estar lá. Era uma curiosa mistura de vegetal e animal, dentro de uma mesma célula. A estranha forma de vida poderia ser classificada dentro da biologia do planeta Terra como uma espécie de fungo, mas isso seria simplificar demais uma questão mais complexa. Era nitidamente algo novo.

A primeira questão que veio era sobre a forma como aquele "fungo" microscópio teria entrado dentro do organismo do astronauta John. Como ele teria se contaminado com aquilo? Veio através da respiração? Foi um fungo que surgiu dentro da carga da nave e ele a respirou? Foi contato com algum tipo de vegetal de algum planeta desconhecido? Perguntas, perguntas, bem relevantes, mas sem respostas. Por via das dúvidas e seguindo o protocolo de quarentena o Dr. Angus decidiu isolar aquela forma de vida. Ele conseguiu extrair o micro organismo dos tecidos do falecido, para depois o colocar dentro de uma embalagem isolada do meio ambiente. Era vital isolar ele do sistema fechado em si da Copernico VI.

Depois de um tarde trancado dentro do laboratório da nave, o Dr. Angus finalmente subiu para tomar sua refeição ao lado dos demais tripulantes da Nave Copernico VI. Aquela era uma grande nave exploradora, com ênfase em transporte e resgate. Era uma das joias da frota da companhia. Porém com intenso uso de tecnologia não era necessária uma grande tripulação a bordo. De fato havia apenas seis pessoas ali.

Além do Dr. Angus, do comandante David Hanley e da tenente Collette Wolfe havia ainda três especialistas. Um era o responsável pelo setor de segurança, Justin Crowe. Ex-mariner ele era responsável pelas armas dentro da espaçonave. Qualquer problema que envolvesse força bruta também seria com ele. Ben Hawkins, apelidado de "Software", era o especialista em programas do sistema de computação da nave. Além disso mantinha todos os sistemas de comunicação em bom estado. Por fim havia Ernst Lodz "Hardware", a quem incumbia supervisionar a parte mecânica da espaçonave. Tudo o que fosse metal pesado, aço e ferro era com sua área; Juntos formavam um bom time que em breve seria testado aos limites da força humana.

A expedição da nave Copernico IV completou dez meses. Era um espaço de tempo considerável. Outras expedições já tinham registrado aumento da tensão entre os tripulantes após tantos meses no espaço. Claro, a tecnologia ajudava a dissipar grande parte dessa tensão que era essencialmente psicológica, mas o fato insofismável era que o corpo humano não havia sido projetado para esse tipo de coisa. O fato de terem encontrado um astronauta morto em uma nave de transportes na mesma rota não ajudava a melhorar os ânimos. Pelo contrário, os membros da nave passaram a ter momentos de melancolia e depressão, algo que o Dr. Angus sabia ser perfeitamente normal. Era um encontro nada sutil com a própria mortalidade. De repente todos se viam na pele do astronauta morto, vagando pelos confins do universo. Um pensamento nada reconfortante.

Cap. IV - A Loucura
Naquele dia o Dr. Angus falaria com a tripulação. Seria uma pequena palestra sobre um planeta conhecido como Osíris. Eles iriam passar por aquele sistema solar. Havia duas coisas interessante naquele exoplaneta. A primeira e mais óbvia é que ele estava sendo absorvido por sua própria estrela. Estava tão próximo dela que parte de sua crosta estava em colapso, derretendo a temperatura impensáveis para a mente humana. Isso criava uma "cauda cósmica" no planeta, fazendo com que ele tivesse uma aparência próxima de um cometa. Nessa cauda poderia haver a formação de material orgânico, uma antiga teoria científica que deveria ser comprovada pela missão. Caso traços de H2O ou carbono fossem detectados então seria possível chegar mais próximo da tese que explicaria o surgimento da vida no universo.

Só que não seria algo fácil de realizar. Dois membros da tripulação deveriam pilotar uma nave auxiliar em direção ao planeta em colapso. Eles deveriam cruzar a espessa cauda de detritos de seus restos e com instrumentos precisos coletar material para análise. Seria quase um suicídio planejado, só que para fins puramente científicos. O próprio Dr. Angus estava disposto a fazer parte disso, porém precisava de um piloto para a nave. A companhia prometia recompensar financeiramente os que se voluntariassem para essa empreitada. Aposentadoria precoce e todos os benefícios para os familiares dos astronautas envolvidos.

Ben Hawkins, o "Sofware", se voluntariou. Ele tinha experiência como piloto, além de ser uma expert nos instrumentos de computação. Foi um alívio, pois para Angus havia o medo de ninguém se apresentar como voluntário o que iria causar um problema social, uma vez que a diretriz da companhia havia determinado que caso ninguém se apresentasse a convocação seria compulsória. Escalado os dois tripulantes que iriam na nave de pesquisas, o resto dos membros da tripulação foram dispensados.

O Capitão David Hanley ficou um pouco receoso. Afinal existiam riscos e o chefe de ciência da nave poderia morrer. Eles estariam expostos a temperaturas que chegavam a mil graus celsius. Mesmo sendo uma nave especialmente construída para situações extremas o perigo estaria envolvido. Não era crível ignorar os riscos. Numa última tentativa Hanley tentou persuadir Angus, mas ele não tinha interferência em assuntos puramente científicos. Nesse campo o Dr. Angus era soberano, sem se submeter a nenhuma hierarquia. Os dados estava lançados e como dizia Einstein, Deus não jogava dados com o universo.

Mal a viagem da nave auxiliar tinha começado e problemas já surgiam no horizonte. Os controles estavam falhando. O piloto, conhecido pela tripulação como "Software" estava começando a perder a paciência. O Dr. Angus estava ao seu lado na cabine principal, mas sua função era científica e não mecânica. Ele logo percebeu que "Software" estava com algum problema. Ele, sentado em sua cadeira, suava demais. Pior do que isso. Muito vermelho, parecia que estava contendo uma fúria em seu interior. Era um sujeito que parecia que ia explodir a qualquer momento!

- Merda, merda, mil vezes merda! Malditos mecânicos da companhia! A nave não está respondendo aos meus comandos - gritou Software.

- Calma, calma... se não houver meios de conserto vamos voltar para a Copernico o mais rapidamente possível. Vamos abortar a missão... vamos...

Não houve tempo para que o Dr. Angus terminasse a sua frase...

O piloto pulou em seu pescoço com fúria insana. Ele colocou suas mãos no pescoço do cientista e parecia disposto a matá-lo ali mesmo! Ambos caíram no chão e rolaram pela cabine da nave. A situação era desesperadora.

- Tudo isso é você, seu filha da puta! Eu vou te esganar até a morte, MALDITO desgraçado! Eu vou te matar agora como a um cão! - A fúria e o ódio de Software não tinha nenhuma racionalidade. O Dr. Angus, mesmo sendo estrangulado ainda raciocinou e percebeu que seu piloto estava contaminado por algum tipo de agente externo. Teria sido o estranho mofo que havia vitimado o outro astronauta da nave que eles encontraram?

- Morra cão! Morra seu pederasta de merda! Eu vou te matar! Eu vou acabar com sua raça! - continuava a gritar Software.

Bom, numa situação delicada como aquela onde um dos homens está completamente insano, a racionalidade era uma vantagem. O Dr. Angus sabia bem disso. Mesmo no chão ele conseguiu se apartar de seu agressor. Correu para o outro lado da cabine da nave e pegou um pesado equipamento, o que nos séculos anteriores era conhecido como extintor de incêndio. Sem pensar duas vezes partiu para cima de Software com ele.

O som abafado e o sangue vermelho jorrando pelas paredes mostravam bem o que havia acontecido. A porrada tinha sido tão grande que parte do crânio de Software havia se partido ao meio. Foi um golpe violento. Seus miolos, pedaços de tecidos e sangue, flutuavam dentro da cabine... era algo pavoroso... um cenário de filmes sanguinários de terror, daqueles bem trash...Software caiu no chão como um saco de batatas acorrentado. óbvio que estava morto. Não houve um último suspiro. Ele parecia fora de si, como se algo tivesse tomado conta de seu cérebro! Era bizarro demais para descrever. Foi uma pancada certeira, coisa de quem conhecida anatomia. O Dr. Angus sabia onde atingir para acabar com seu opositor.

Ainda ofegando, respirando rapidamente, ele foi até a mesa de controle da nave e ligou para a Copernico!

- Atenção nave mãe! Abortei a missão!

- O que houve? - Quis saber o comandante.

- Fui agredido pelo piloto. Ele teve uma fúria insana quando saímos. Quase fui assassinado!

- Mas você está bem? E o Software?

- Lamento comandante. Ele está morto. Eu tive que acertá-lo na cabeça. O sujeito queria me matar. Foi legítima defesa.

- Volte imediatamente! - O capião parecia chocado com o que ouvira.

E assim a nave auxiliar deu meia volta. As pesquisas, tão importantes, teriam que ficar para outra ocasião.

Cap V - A Doença
A forma como se deu a morte de Ben Hawkins "Sofware" pegou todos da nave de surpresa. Ninguém esperava por algo assim. Ainda mais com o envolvimento do pacífico Dr. Angus Smith. Assim que houve o ataque o cientista entendeu que poderia ser um efeito da contaminação qua havia destruído mentalmente o astronauta John. Era o mesmo tipo de comportamento irracional. Então assim que se recuperou do ataque, o Dr. Angus foi até o laboratório da nave Copernico VI. Ele pegou algumas amostras do sangue de Software e levou para observações. Não deu outra! Ele estava sim contaminado pelo agente patológico do astronauta morto. E isso obviamente era uma péssima notícia.

Significava acima de tudo que o ar da nave poderia estar comprometido. Bem, se você está preso dentro de uma nave com espaço limitado, indo para o distante planeta Kepler-452b, uma jornada que iria durar meses, isso era definitivamente algo ruim. Ao receber essas notícias o Capitão David Hanley, comandante da expedição, franziu a testa. Ele poderia esperar por qualquer coisa, menos por uma contaminação viral dentro de sua espaçonave.

- O que podemos fazer então? - Indagou o comandante.

- Vamos seguir o protocolo de emergência biológica. Antes de qualquer coisa leve o corpo do Software para a cremação. Depois despeje seus restos mortais para o espaço profundo. Há uma forte taxa de contaminação desse vírus. E partindo-se do fato de que há um período de incubação envolvido... então todos precisam entrar dentro do novo programa.

- Como manter alguém em quarentena dentro de uma nave como essa?

- Penso que todos agoram precisam usar o equipamento completo, mesmo dentro da nave. Capacete, macacão, luvas, tudo. O sistema do equipamento já tem um sistema de isolamento contra agentes externos. Os tripulantes só devem usar roupas comuns dentro de suas cabines individuais. Fora disso, em ambientes de compartilhamento comum, todos devem ficar equipados. - Disse, sabendo da gravidade da situação, o Dr. Angus.

- Ok vamos reunir toda a tripulação para  a comunicação - Determinou o comandante.

Claro a nova ordem foi mal recebida. Ficar com todo aquele pesado equipamento de astronauta dentro da nave seria cansativo e estressante. Além disso se um tripulante já havia sido contaminado, os demais também tinham sido expostos ao vírus. E se não estavam doentes, provavelmente tinham imunidade. O argumento era muito bom, racional até, embora também tivesse elementos de roleta russa. Mesmo assim o Dr. Angus não quis pagar para ver. Todo mundo agora teria que andar completamente equipado e isolado do meio externo. Era talvez a única forma de salvar a vida de todos aqueles tripulantes.

Ernst Lodz "Hardware" era o negro da nave. Ele havia nascido num país muito pobre do norte da África. Porém lutou para subir na vida. Estudou muito e se tornou engenheiro mecânico. Para alguém com sua origem foi uma vitória enorme. Hardware era muito bem visto entre a tripulação. Simpático, sempre tinha um sorriso a oferecer. Também funcionava como uma espécie de "alívio cômico" quando o stress de ficar meses dentro de uma nave começava a pesar entre todos. Tinha sempre uma piada para animar.

Porém sua personalidade simpática estava mudando. Ele escondia isso de todo mundo, mas pensamentos negativos, criminosos mesmo, começaram a se tornar muito frequentes em sua mente. Ele procurava se acalmar, indagando a si mesmo o que estava acontecendo. Nesse momento ele deveria ter procurado o Dr. Angus. Um dos sintomas do novo agente biológico dentro da nave era a perda do lado racional da mente. Quando se começava a delirar, era tempo de procurar ajuda.

Nos sistemas da nave, trabalhando, uma ideia fixa começava a entupir seu pensamento. Como um mantra, sempre surgia frases do tipo "Eu tenho que estuprar a tenente", "Eu tenho que estuprar aquela vadia"... "Essa puta está me dando mole. Tenho que violentá-la com ferocidade" ou pior do que isso "Eu vou empalar essa escrota!". "Eu quero esfolar essa branca, ela vai gritar... ela vai gritar.. grite branca suja, grite vadia dos infernos". Eram pensamentos violentos, de origem criminosa. Nunca antes, jamais, Hardware havia pensado em fazer mal para a tenente, a única mulher da tripulação. Isso era absurdo! Em um dos momentos de maior loucura Hardware precisou sentar no chão, colocar as mãos em seu rosto e gritar sozinho "Meu Deus, o que está acontecendo comigo?"

Era óbvio que ele estava contaminado pelo vírus, fungo ou seja lá o que aquilo fosse. Seu amigo Software já tinha surtado completamente. Seria esse o seu caminho dali para frente? De uma maneira ou outra Hardware começava a perder a batalha para a insanidade violenta. Ele tinha grandes ereções na hora do serviço e toda aquela ladinha de estuprar a tenente voltava com força em sua mente. Ele fantasiava como isso iria se dar. Ele começava a sorrir de forma louca quando pensava no rosto de pavor e medo da tenente. Suando por todos os poros ele pegou o comunicador e ligou para ela.

- Tenente, venha aqui embaixo, preciso de uma ajuda! - Ela prontamente atendeu e disse que já estava descendo. Mal sabia a armadilha de terror e medo que estava se metendo...

Aquilo tudo foi bem trágico. Ernst Lodz "Hardware" quis estuprar a Tenente Collette Wolfe no lugar mais escuro e isolado da nave, mas recebeu o troco que merecia. A Tenente tinha uma arma de proteção pessoal que ela nunca se separava. Um estilete afiado com o melhor aço fabricado na Terra. Ao perceber que estava em perigo não esperou por muito tempo... atingiu com um golpe certeiro a garganta de Hardware. Foi morte instantânea. Ao jorrar o sangue, o mecânico viu também se esvaziar sua vida.

Cap. VI - A Explosão no Espaço
A tragédia estava consumada. O sangue molhou a roupa da Tenente e em pouco tempo ela estaria infectada. O mesmo aconteceu com o comandante David Hanley. Foi tudo tão devastador. Em questão de horas ambos estavam mortos. Apenas o Dr. Angus Smith continuava vivo, muito provavelmente por ter uma imunidade natural ao vírus. Sim, era um vírus. O próprio Angus resolveu escrever no diário de bordo sobre suas descobertas.

O texto continha muitas informações. Ele escreveu:

"Aqui escreve o Dr. Angus Smith. oficial de ciência da nave Nave Copernico VI. Há algumas semanas resgatamos uma nave à deriva no universo. Dentro encontramos o corpo do astronauta John White. Todos os demais tripulantes também morreram, mas não havia corpos dentro da nave. Esse astronauta deixou um registro muito estranho, onde delírios e devaneios se misturavam com a realidade do que havia acontecido. Fiz exames de necropsia em seu cadáver e descobri que ele havia sido infectado por um organismo de origem desconhecida. No começo pensei tratar-se de algum tipo de fungo, talvez ingerido na alimentação por acidente. Porém hoje, diante de minhas últimas pesquisas, descobri que se trata de um vírus. E é um vírus até bem conhecido da ciência. Trata-se de uma evolução viral da família do Coronavírus. Extremamente mortal, altamente evoluído. Se as versões anteriores atacavam os pulmões, levando os pacientes à morte, esse aqui ataca a região cerebral, desfigurando a área relacionada ao aspecto racional do pensamento humano. Por isso o comportamento dos infectados se torna violento, hostil, dando vazão aos sentimentos mais básicos do ser humano, como violência, sexo e ira. Não há sinais de cura para essa nova evolução e prevejo um desastre para a colônia humana em Kepler 452b. Caso uma infestação viral como essa chegasse naquela comunidade teríamos o extermínio de praticamente toda a população que lá vive. Por essa razão, sob minha total responsabilidade, decidi explodir a nave Copernico VI. Apertarei o botão de auto destruição e depois irei me suicidar. Situações extremas, exigem medidas igualmente extremas. Assinado, Dr. Angus Smith."

E assim foi feito. No mesmo momento ele acionou o protocolo de auto destruição. Depois disso entrou em uma cápsula feita especialmente para aguentar grandes explosões. Ele não tinha esperanças que aquilo fosse aguentar tamanha explosão, mas foi em frente. Em poucos minutos perdeu a consciência completamente. Em instantes ele deixou de existir. Nenhum pensamento, nenhuma consciência. Simplesmente o nada absoluto. Nenhuma alma para salvar, só o vácuo completo da inexistência. Faltava menos de 30 segundos para a nave explodir...

E a contagem foi chegando ao fim... 4,3,2,1...

E tudo aquilo que uma vez havia existido e todos aqueles lugares por onde eles tinham andado... simplesmente desapareceram para sempre, moídos em milhares de pequenos pedaços de metais retorcidos e incinerados...

A vida humana de milhões estava salva... pelo menos por enquanto...

Cap. VII -  Vênus IV
O Dr. Angus abriu os olhos lentamente. Ele mal acreditava naquilo. Ele estava vivo! Sim, ao entrar em uma cápsula de sobrevivência pouco antes da explosão da nave, ele teria salvado a própria vida. Na realidade nem ele acreditava que a cápsula iria sobreviver a tamanha força da explosão, mas era fato. Feito de titânio massivo, com forma arredondada e uma minúscula escotilha, que aguentava até mesmo a explosão de uma bomba atômica do século XX, o fato é que aquele pedaço de metal preservou a vida do cientista. Sua cápsula foi resgatada pela nave de busca e resgate Vênus VI. Angus estava vivo, quase por um milagre, mas tinha muita a explicar para a companhia. Afinal a nave destruída custava em torno de 899 milhões de dólares e isso sem levar em conta a carga que havia sido perdido para sempre no vácuo infinito do espaço.

Assim que recobrou a consciência Angus reconheceu o médico que o atendia. Era o Dr. Fergunson. Ambos tinham estudado na mesmo universidade. O especialista pediu calma e paciência a ele. Afinal médicos e cientistas costumam ser péssimos pacientes. A conversa que havia começado cordialmente, falando de amenidades do passado, logo se tornou mais trágica porque Angus foi informado que iria perder parte da perna esquerda. Era algo que ele sentia muito. A explosão foi tamanha que seu corpo foi sacudido como uma bola de tênis dentro da pequena e robusta cápsula. Nesse processo sua perna foi praticamente esmagada. Não havia como salvá-la.

A cirurgia de remoção da perna necrosada foi relativamente simples e bem sucedida, uma vez que as técnicas médicas no futuro eram altamente sofisticadas. O médico praticamente nada fazia, sendo toda a técnica efetuada com precisão por um robô especialmente programado para esse tipo de procedimento. Com isso ficava afastado o risco de um erro humano em tal ato incisivo. Com a perna amputada, Angus permaneceu em repouso por mais de 20 dias. Mal conseguia sair do estado de torpor, uma vez que havia sido medicado com potentes remédios e drogas usadas para o pós-operatório. Ele tencionava partir logo para a recuperação, para se adaptar melhor com a prótese robótica que iria usar dali em diante em sua vida.

Depois da breve recuperação Angus tomou conhecimento dos efeitos e sequelas deixadas pela explosão que ele próprio detonou, como medida de desespero e cautela. No fundo queria evitar que toda a população da colônia em Kleper fosse contaminada. Ele iria passar por todo um longo procedimento administrativo dentro da companhia onde seria decidido se ele havia tomado a decisão certa, se ele tinha poderes para fazer o que fez. Já de antemão descobriu por breves contatos que a direção da companhia não estava nada satisfeita com o fato de ter perdido uma nave que valia milhões de dólares. Como toda a empresa o que pesava ali naquela hora era o fator puramente econômico. Eles pareciam não se importar com as vidas que poderiam ser perdidas caso uma nave contaminada chegasse em uma colônia indefesa contra esse vírus.

Era a velha luta entre saúde e economia. Angus, como homem de ciência, nem pensou duas vezes. Ele colocou as vidas das pessoas em primeiro lugar. A companhia, como toda empresa, pensava diferente. Aliás o fato de uma nave daquelas ter sido destruída pelo simples comando de um oficial de ciência a bordo, fez com que o comando de auto destruição das demais naves da companhia fosse desativado. Jamais isso iria acontecer novamente. Apenas o alto comando em Aldebarã III, poderia agora dar esse tipo de comando. Porém de uma coisa todos poderiam saber: Angus não encontraria moleza dentro do processo. Ele seria atacado para servir como exemplo. Aquilo não iria passar em branco. A companhia ira tentar destruir sua vida, tomando todos os seus (poucos) bens. A possibilidade de prisão em uma colônia distante também não poderia ser descartada. 

Cap. VIII - Aldebarã III
O Dr. Angus finalmente desembarcou no planeta Aldebarã III. Era lá que estava a sede da companhia e era lá que ele finalmente seria julgado por ter apertado o botão de autodestruição da nave. Ele sabia que vinha chumbo quente pela frente. Embora fosse um homem racional e da ciência, o Dr. Angus também tinha suas necessidades, entre elas a de ter, de tempos em tempos, uma companhia feminina. Assim no sábado à noite ele decidiu que iria até o night club "Lujuria", um lugar repleto de garotas de programa. Com decoração que lembrava as velhas casas da Espanha colonial, ele procurava relaxar um pouco. Esfriar a cabeça, quem sabe ter um pouco de sexo pago da melhor qualidade.

Enquanto apreciava o show de striptease, foi tocado no ombro por uma mulher que ele nunca havia visto antes. Ela se chamava Eli Gromberg. Uma loira bonita, com olhos azuis e seios fartos, mas que provavelmente eram falsos. Angus pensou tratar-se de uma acompanhante, mas não. Ela era na realidade uma agente do serviço secreto do Estado. Havia algo que Angus precisava saber. Certo, aquele não era o melhor lugar para esse tipo de conversa, mas diante das circunstâncias, era o que havia para o momento.

Angus ficou cético. Não acreditou, pensou que era algum tipo de brincadeira ou pegadinha. Não era. E ele soube disso a partir do momento em que Eli lhe mostrou seu distintivo oficial. Algo muito sério estava por vir. Ela perguntou se poderia conversar com ele em um lugar reservado. Naquela boate havia vários pequenos quartos onde as garotas faziam danças particulares para seus clientes. Angus, um pouco assustado ainda, aceitou a sugestão e eles foram para um lugar nos fundos. O cheiro era ruim, havia uma sensação de que alguém havia ejaculado bem ali, naquelas cadeiras de tecido vermelho brega. Porém era um lugar conveniente. Não haveria escutas e eles poderiam conversar sem medo de que seriam espionados.

- O que está acontecendo aqui? - Quis saber Angus ao sentar-se...

- Há muito mais do que você supõe sobre o que aconteceu em sua nave. Algo maior e mais... sinistro.

- O que poderia ser pior do que uma tripulação inteira morta e uma nave explodida no meio do cosmos? - Era uma pergunta válida por parte de Angus.

- Bom, o vírus não foi obra do acaso... - Começou lhe explicando Eli.

- Como assim? O que está havendo? - Angus estava perplexo...

- O virus foi criado pela companhia. Ele seria usado como arma biológica em planetas da fronteira. A intenção era exterminar qualquer inimigo. O vírus teria alta carga de contaminação. Iria deixar os soldados das tropas inimigas completamente loucos e insanos e eles próprios iriam se matar, antes das tropas mercenárias contratadas pela companhia chegassem em terra firme para fincar sua bandeira, tornando esses novos planetas como propriedade da empresa!

- Meu Deus, isso é muito grave... estou completamente pasmo...

Eli continuou:

- O que aconteceu com sua nave foi um erro, um efeito colateral. A arma biológica na verdade estava sendo transportada pela nave...

- Do astronauta John! - Completou Angus

- Isso mesmo! Acontece que o vírus tinha uma carga de contaminação tão alta que atravessou todos os recipientes de contenção. Contaminou todos na nave. Todos ficaram loucos. Quando vocês entraram nela trouxeram o vírus para a nave de vocês. Então aconteceu toda essa tragédia!

Angus não conseguia acreditar no que ouvia. Tantas pessoas mortas, ótimos astronautas, que nada tinham a ver com esse experimento bélico, letal e ilegal. Angus começou a ficar furioso.

- A companhia precisa pagar por isso. Ser responsabilizada! As mortes não podem ficar em vão...

- Exatamente. Estamos na cola da companhia. Por enquanto ainda não temos todas as provas necessárias para levar a um julgamento, mas esperamos contar com você Dr. Angus - Era uma esperança e um apelo da agente Elis.

- Eu vou contribuir sem dúvida, vou contribuir com todas as minhas forças. Esses desgraçados precisam pagar pelo que fizeram - concluiu o Dr. Angus, cerrando os dentes com raiva. 

Cap. IX -Seis homicídios!
O julgamento do Dr. Angus começou com toda a pompa e circunstância que o evento exigia. Na verdade ele seria julgado por 3 juízes diferentes. Um deles representava o povo. O outro representava o interesse da companhia. Um terceiro representava a classe dos trabalhadores espaciais. Do voto desses homens iria ser decidido o seu destino. Logo no começo da sessão o Dr. Angus teve uma péssima surpresa. O promotor, representado o Estado, decidiu adidar a peça inaugural de acusação. Inicialmente ele estava sendo acusado de destruir uma propriedade da companhia, a própria espaçonave. Porém as coisas pioraram. Ele também foi acusado da morte dos seis astronautas da tripulação. Iria responder por seis homicídios!

Quando ouviu isso o Dr. Angus entrou em choque, ficou completamente chocado! Seu advogado alegou que aquilo era um absurdo completo, que violava os direitos constritucionais de seu cliente, que não havia tempo para protocolar uma defesa hábil para uma acusação de grande porte! Era claramente uma armadilha jurídica para destruir Angus. A junta de juízes então deu a palavra para o promotor público do caso, que assim se manifestou:

- Prezados juízes, o réu tem que ser responsabilizado pelos crimes que cometeu. Inicialmente a promotoria pensava tratar-se apenas de um caso de crimes contra o patrimônio, porém ao analisarmos os registros vimos que seis astronautas morreram nesse evento. Não há registros de comunicação da tripulação que corrobore a versão do réu. Pelo contrário, o que temos é um evento objetivo. E qual seria ele? Ora, em um momento tínhamos uma tripulação de seis bons profissionais do labor espacial. Depois da explosão estavam todos mortos. Ao olhos da promotoria temos claramente um caso de assassinato em mãos. O que levou esse cidadão a tomar tal atitude ainda é um mistério, mas sabemos que essas pessoas inocentes morreram...

Sentado na cadeira, ao lado do advogado, o Dr. Angus colocou as mãos no rosto. Ele havia caído em uma armadilha mortal! Puxando seu advogado pelo terno, o Dr. Angus o informou de algo precioso. Que sim, havia registro de tudo o que aconteceu antes da explosão. Eram relatórios enviados com regularidade para a companhia, informando tudo o que havia acontecido a bordo, inclusive informando das mortes dos astronautas. Eles já estavam mortos quando a grande explosão aconteceu. Ouvindo tudo isso o advogado foi para o centro do tribunal. Era seu momento de falar.

- Peço ao tribunal presente que seja dado mais tempo ao réu, pois novas acusações foram feitas e será necessário a confecção de novas preças processuais para sua defesa. Estamos aqui na iminência de se violar o direito da ampla defesa do acusado. É necessário dar tempo para que tenhamos conhecimento de todas as provas que foram anexadas ao processo. Além disso queremos ler, com a devida atenção, todas as acusações da promotoria. Assim peço adiamento e designação de uma nova data, para uma nova sessão de julgamento.

Diante do pedido, os juízes deliberaram. O juíz da companhia negou o pedido (era de se esperar de um juiz sem imparcialidade, aliás uma aberração jurídica, é bom frisar). O juiz do povo acatou o pedido. Por fim, o juiz dos empregados deferiu o pedido. Por 2 votos a 1, o pedido de uma nova sessão de julgamento foi deferida com data marcada para dali a 30 dias. Era um momento de respirar e se preparar para uma defesa adequada. 

Cap. X - Julgamento e Sentença
O Dr. Angus sentiu o gosto amargo da injustiça. Seu julgamento levou seis meses para ser concluído. Uma interminável ida e vinda de recursos, manobras jurídicas e... puxadas de tapete. Fragilizado e em posição de inferioridade, o Dr. Angus jamais conseguiu provar que os demais tripulantes já estavam mortos quando a nave explodiu no espaço. Os relatórios que afirmava existir jamais foram encontrados. Uma situação que ele não pensou na hora preservar. Ele poderia ter feito um backup de todo o arquivo da nave antes de explodi-la, porém no calor dos acontecimentos, na adrenalina absurda em que tudo aconteceu, ele simplesmente não fez isso. Não salvou os arquivos e se arrependeu amargamente por isso.

Do ponto de vista técnico havia duas cópias de cada arquivo, de cada relatório. Um deles ficava na nave (que não existia mais). A outra cópia era enviada para a companhia. Se eles ainda existiam, não se conseguiu provar. A empresa disse que nada foi enviado. O Dr. Angus não tinha como provar que esses arquivos chegaram na sede da empresa. Os engenheiros espaciais da companhia disseram no julgamento que os arquivos provavelmente nunca chegaram até seu destino por causa da interferência do buraco negro que ficava bem próximo de onde eles foram enviados. Mentira ou verdade? Com as mãos atadas o Dr. Angus não conseguiu provar seu ponto de vista. Coisas do direito, uma ciência muito bonita e louvável, mas ainda assim vulnerável às mesmas falhas do comportamento humano.

Assim o Dr. Angus foi vendo dia a dia sua tese sendo destruída no tribunal. Ele ainda tentou argumentar e deu um depoimento muito bom, muito racional... mas foi tarde demais. Ele foi condenado a 12 anos de prisão! Em grande esforço seu advogado conseguiu que ele não fosse condenado por tudo em crimes de homicídio doloso, o que o deixaria preso pelo resto da vida. Ao contrário disso respondeu apenas por homicídio culposo, sem intenção de matar. Com isso sua pena foi reduzida de forma gradual.

Quando o Dr. Angus saiu da prisão, seis anos depois, por bom comportamento ele se viu um homem velho, de cabelos brancos, tentando recomeçar sua vida. Ao cruzar os portões da prisão, o fez de cabeça erguida, sabendo que não havia feito nada de errado, que não havia matado seus companheiros de viagem. Era um homem dos mais dignos que já passaram por aquele sistema prisional. Ele estava velho, mas ainda tinha uma mente lúcida e admirável. Era um homem culto, que poderia ensinar. Assim montou um pequeno local para dar aulas particulares de ciência. E se deu bem. Em pouco tempo estava com um bom número de alunos. Aquele que tem estudo e cultura, jamais será um homem miserável, já dizia a grande frase de sabedoria do passado.

Em seus últimos anos de vida o Dr. Angus resolveu contar toda a sua história em um livro chamado "Kepler 452-b". Nenhuma editora bancou seu livro, ele de próprio punho o escreveu com todas as dificuldades e fez sua primeira edição, com dinheiro próprio, uma tiragem limitada de 200 exemplares. Enviou grande parte dessas cópias para bibliotecas em todo o mundo pois queria que sua história jamais fosse esquecida. E assim foi feito. O Dr. Angus faleceu em uma bela tarde ensolarada, no quintal, com um livro em mãos. Morreu com a alma tranquila, com a mente calma dos homens justos, sem qualquer sentimento de culpa ou arrependimento. Tinha 79 anos. Passou pela morte dos justos e bons de espírito.

Pablo Aluísio.