domingo, 13 de dezembro de 2009

O Lobo da Escócia - Parte 4

O Monstro
Mark virou-se e saiu, meio tonto pelas ruas molhadas pela chuva. Foi uma imersão traumática para ele, do ponto de vista psicológico. Isso porque ele amava Katja, mas ela agora não passava de um cadáver. Ele queria saber o que tinha acontecido, o velho até estava disposto a lhe dizer, porém não naquele momento. O coveiro iria se inteirar dos acontecimentos. Saber o que havia mesmo acontecido. Caso Mark começasse a apresentar um comportamento estranho, o velho estava disposto a usar seu rifle para dar um tiro em sua cabeça. Mais uma criatura metade lobo, metade homem, seria demais para aquela pequena cidade.

Mark foi se recuperando aos poucos. A cada dia ele ganhava uma dose de normalidade. Começou a beber muito, na maioria das vezes para superar o trauma da morte de Katja. Era algo que ele não conseguia entender. O que havia acontecido naquela noite? Uma fera saindo das sombras, atacando as pessoas em um cemitério, durante uma noite de luar? Não fazia muito sentido. Era algo complicado de entender. Muitas perguntas ficaram sem respostas. Tudo havia ficado pelo caminho.

Numa tarde recebeu a visita do inspetor da cidade. Ele estava investigando a morte de Katja. Queria saber como ela havia morrido. Mark não tinha muito o que esclarecer. Ele mesmo tinha muitas dúvidas sobre tudo. Se alguém estava em busca de respostas era ele mesmo. O velho policial não gostou da atitude de Mark. Achou ele evasivo e fraco em seu depoimento. Desconfiado, colocou Mark na lista de suspeitos. Ele era um jovem rico, estudante de medicina, de uma ótima família tradicional, mas nada disso impedia de quem sabe ser indiciado pelo crime.

Durante a primeira semana após o ataque Mark foi notando algumas diferenças. Ele não conseguia mais se concentrar nas aulas e tinha tonturas e crises de vômitos, todos os dias isso acontecia. Ele estava tão deprimido que ignorou os sinais que seu corpo estava lhe passando. Outro fato também o deixou perplexo. Sua fome aumentou consideravelmente. E não era uma fome como outra qualquer. Era algo voraz. Ele não se satisfazia com o que estava acostumado a comer todos os dias. Agora Mark queria grandes fatias de carne, e se essas fossem sangrentas, muito melhor!

Ele passou a frequentar o restaurante especializado em assados e caças. Ele nunca havia ido muito por lá, mas agora era uma necessidade vital que sentia. Mal as aulas caminhavam para o final e ele já estava nos corredores, correndo em direção à comida. Queria comer, comer, comer, muito carne, sempre, sem intervalos. Virou algo obsessivo e doentio. Seus colegas de faculdade logo notaram isso. E mais de uma vez surgiu na classe com a roupa suja de sangue da carne que havia comido. Logo ele, um verdadeiro dândi no modo de vestir. Agora parecia o porco de um açougueiro... o que estava acontecendo?

Ele também passou a desenvolver uma sexualidade fora do controle, lasciva, absolutamente lasciva. Seu ideal de mulher do ponto de vista sexual era Katja. Ela era uma mulher baixinha, mal chegando aos 1.60 de altura, porém como muitas mulheres desse tipo ela tinha um corpo maravilhoso, muito bem torneado, bem distribuído. Tinha pernas maravilhosas e um bumbum que faria qualquer padre deixar a batina. Mark só penava nela nua em sua cama. Mesmo quando tentava asistir ás aulas sua imagem vinha sempre em sua mente. Por isso passou a se masturbar com uma freqüência absurda!

Também começou a literalmente feder pois sua higiene pessoal começou a desaparecer. Estava sempre mal arrumado, barba por fazer, cabelos despenteados. O rapaz que em um passado muito recente despertava o interesse de suas colegas universitárias agora gerava comentários e fofoquinhas pelo fato de cheirar mal. Definitivamente algo estava acontecendo com ele. 

Na primeira noite de lua cheia após o ataque veio a revelação! Ele começou a passar muito mal no pequeno quarto da faculdade onde residia. Parecia que sua pele queimava por dentro. Mark pensou que estava passando por algum tipo de crise alérgica que desconhecia. Não, era algo bem pior. Ele estava se transformando. Passou a ver pessoas mortas de seu passado como sua avó, há muito falecida! Era atroz, além de estar sentindo problemas físicos poderia perceber que seu psicológico também estava se comprometendo. Ele tinha consciência do que vinha acontecendo, mas uma força poderosa em sua mente também o impedia de procurar por algum tipo de ajuda...

O estudante de medicina Mark estava se transformado em um monstro. Nas noites de lua cheia, ele perdia a consciência humana e se transformava em um lobo feroz, uma fera em busca de carne! A fome era insuportável, assim qualquer coisa que se mexia era atacada ferozmente. O lobo causou pânico e terror por onde passava. A polícia já sabia que algo estava acontecendo. Era raro não aparecer o corpo de algum animal de pequeno ou médio porte ao amanhecer. Algo estava fora de controle e sedento por sangue.

O velho Jack, o coveiro, sabia muito bem o que ocorria. Ele entendia a lenda. Os eruditos se recusavam a acreditar em lobisomens. Isso era coisa de gente ignorante do interior. Mas Jack, um velho experiente, que não se surpreendia com nada, bem sabia o que se escondia por trás das sombras. Ele então decidiu que iria matar o monstro. Lamentava que com isso também iria eliminar Mark, mas isso era algo que não poderia mudar. O ser humano teria que ser sacrificado com a morte da fera. A bestialidade não poderia mais andar à solta nos bosques.

O que ninguém sabia é que Jack já havia tratado com esse tipo de coisa antes. Ele era muito interessado em ocultismo e sabia que forças sobrenaturais agiam no mundo material que conhecemos. Para lobisomens apenas balas de prata eram eficientes. Ele então foi até o amigo que trabalhava com forjamento de metais e pediu que ele fizesse um conjunto de seis balas de prata. Uma vez armada com o tipo ideal de munição se colocou à moita, esperando Jack passar na madrugada. Ele conhecia a rotina do jovem.

Estava pronto para fazer o que tinha que ser feito. Aquele velho já havia sido um jovem em um passado muito distante. Um jovem com muitos sonhos de vida, muitos deles que nunca se realizariam. Esse tipo de frustração pessoal forjou um homem que sabia que havia momentos cruciais na vida. Era momento de ser pragmático, de agir, custe o que custasse. 

Numa noite avistou, muito ao longe, o lobo se alimentando de uma pobre ovelha. A noite era iluminada pela lua cheia e ele conseguiu enxergar naquela silhueta ao luar a figura transformada de Mark. Não havia mais dúvida. Aquele ser bestial tinha que ser eliminado e ele faria isso – estava completamente decidido sobre isso. Nada de policiais, nada de caçadores profissionais. Ele iria resolver aquela questão. 

A Noite
Na noite ideal ele começou a seguir os passos de Mark. Ele parecia meio desorientado quando adentrou o bosque da região. Com as mãos no rosto mal conseguia ficar em pé, então caiu. A transformação iria começar. Em poucos minutos sua feição começou a mudar. Era uma transformação dolorosa e insana. 

O velho Jack se agachou e foi andando devagar em direção a gruta onde Mark eestava se transformando. Ele foi se transformar em um lugar bem próximo do velho cemitério onde Jack trabalhava e isso o deixou completamente surpreso. O que diabos estava acontecendo... Isso lembrou velhas histórias que tinha ouvido no passado, uma delas dizia que os lobos monstros sempre procuravam pelos lugares onde tinham sido atacados, quando eram seres humanos. Pelo visto não era lenda e a história parecia se confirmar...

Para surpresa do velho não havia apenas um Lobo, mas dois! O segundo, o velho lobo cinzento, o original, entrou na gruta e passou a andar lentamente em volta de Mark que se contorcendo no chão, ia aos poucos perdendo suas características humanas. Primeiras mudanças surgiam nas pupilas, agora com tonalidades indo ao amarelo forte. Depois o crescimento voraz de pelos por todo o corpo. 

O velho lobo cinzento apenas observava a transformação, com dentes cerrados, a saliva descendo por sua boca em direção à areia quente... Se não fosse um animal irracional o velho Jack poderia até mesmo afirmar que aquela fera estava sentindo um certo orgulho de sua criação. 

A transformação ocorria em uma velocidade extremamente rápida. Em pouco mais de dez minutos o ser humano Mark já tinha se transformado em algo diferente, em um bicho real, que se levantava do chão e começava a perceber a presença do outro lobo ao redor. Jack poderia pensar que haveria uma briga feroz entre os dois monstros, mas para sua surpresa Mark se abaixou, em sentido de clara subordinação ao lobo que o havia atacado no passado. Agora ele fazia parte da alcateia, tinha que mostrar total submissão ao macho alfa, caso contrário seria atacado e muito provavelmente morto pelo seu agora mestre selvagem.

 Jack entendeu que havia chegado o momento de agir. Não havia mais como esperar, ou então ele seria atacado por aquelas duas bestas ferozes. Ele então se posicionou, colocou as balas no rifle e fez mira.

- Morram, enviados do diabo... morram! - Foram suas únicas palavras.

O estampido do tiro espantou os corvos. O tiro não foi certeiro, atingindo apenas o ombro da fera alfa. Essa deu um pulo de sobressalto, procurando pelo atirador. Os olhos vermelhos de ira denunciavam que o ser humano não existia mais, apenas a besta.

Então o velho Jack mirou com capricho no coração daquela besta cinzenta. Houve um uivo forte que atravessou a madrugada . Jack não esperou pelo pior, apertou o gatilho. A bala acertou em cheio...

Um ruído assustador cortou a madrugada. A fera, sentindo a ferocidade do ataque... se voltou e correu em direção ao bosque. Estava sem dúvida, ferida. E não tinha forças naquele momento para atacar Jack. O lobo cinzento saia em retirada rápida, não queria ficar para ver o que lhe aconteceria. 

Mais um tiro, nas costas. Três balas de prata já cravavam o corpo do monstro.

O animal então desapareceu na escuridão da noite. Estaria abatido ou mortalmente ferido? Naquele momento de tensão, não havia como raciocinar direito, apenas se lutava pela sobrevivência...

O velho Jack então mirou suas atenções para Mark, totalmente transformado, pronto para atacá-lo. Jack deu um tiro e errou... O lobo jovem era muito rápido... puxou o gatilho e deu um novo tiro... outro erro.... finalmente no terceiro conseguiu atingir Mark. 

Foi um tiro forte, dado a curta distância, que abriu um verdadeiro buraco no corpo do lobo. Agora era torcer para que a morte viesse para o monstro, pois não tinha mais balas...  Vendo o perigo, Jack recuou, o lobo parou e olhou em seus olhos. 

O velho sentiu a presença de Mark ali. Pensou que o pior estava por vir, que Mark o atacaria, mas para sua surpresa, isso não aconteceu. Assim como acontecera com o lobo cinzento, Mark também virou as costas e correu em direção ao mato, sangrando, mas não parecendo ter sido atingido de forma fatal. Ainda estava rápido e feroz, com boa disposição. Não demorou e desapareceu pela noite adentro. 

Jack não perdeu tempo e foi embora do lugar. Alguém poderia ter ouvido os tiros. Ele não queria ser acusado de assassinato.

E ali naquela lareira abandonada, iluminada apelas pela luz opaca da Lua, o jovem Mark começou a ressurgir. Ele estava muito ferifo, com as roupas rasgadas, o ombro nu, sangrando... Mas estava vivo... era o que importava...

Pablo Aluísio.

O Lobo da Escócia - Parte 3

Fúria
Naquele mesmo fim de semana, Mark finalmente resolveu que iria até o cemitério, tarde da noite. Queria ver o que se passava. Já meio embriagado, ele partiu ao lado de Katja pelas ruas escuras da cidade.

- Vamos encontrar seu tio – vamos lá! – gritava Mark enquanto caminhava. Ele via as pedras das calçadas brilhando ao luar.

- Fale baixo, cala a boca, vão nos prender por arruaça – devolvia Katja com os braços de Mark em seus ombros.

Ele tinha uma garrafa de whisky numa das mãos e na outra segurava Katja com força. Imaginem o escândalo caso sua nobre família o visse daquele jeito. O tio de Katja estava de plantão naquela madrugada. Era a velha história dos adeptos de ocultismo e paganismo invadindo o cemitério de noite para fazer seus rituais. Havia até mesmo adeptos de uma nova linha religiosa francesa, que havia sido compilado em um livro de sucesso chamado “O Livro dos Espíritos”. O autor? Um professor desconhecido que havia adotado o nome de Allan Kardec.. O velho professor acreditava em toda aquela nova doutrina baseada na existência de espíritos de pessoas falecidas. A consciência que sobreviveria até mesmo à morte física. Era uma nova idéia que intrigava as pessoas daqueles tempos. 

A entrada no cemitério foi tranquila. Os velhos portões enferrujados estavam entreabertos.  Era um velho cemitério decrépito, com suas antigas lápides, encobertas por vegetação rasteira. Aquelas pessoas tinham morrido há muitos anos. Provavelmente seus familiares também estavam mortos. Assim não havia mais quem se importasse com os túmulos. Com o abandono a natureza voltava a tomar conta. Após a morte, o esquecimento é um fato que virá, mais cedo ou mais tarde. É o trágico destino de cada pessoa que viver nesse mundo.

Era aquele clima de abandono e solidão. Aqueles nomes nas pedras já não significavam nada para ninguém. O tempo, senhor de tudo, já havia de certo modo apagado da memória dos vivos a história daquela gente que jazia sete palmos abaixo da terra. Quem foram? Quem eram? Quais eram suas personalidades? O que faziam quando eram vivos? O que pensavam? Tudo havia se perdido nas areias do tempo. Dizem que nenhuma alma se apaga. É uma visão romântica. A maioria das pessoas terá suas memórias apagadas para todo o sempre. As ditas pessoas comuns serão esquecidas. Suas pegadas serão apagadas. Nem seus descendentes vão se lembrar delas após alguns anos. A morte é a morte também da lembrança, da memória.

E no meio desses pensamentos melancólicos Mark e Katja foram adentrando pelas ruelas do velho cemitério decrépito. Ela olhava acima dos ombros em busca de seu tio. Ele, meio bêbado, não estava preocupado. Tinha o calor do corpo de Katja ao seu lado. Era tudo o que ele queria na vida, no final das contas. Foram andando, andando, de vez em quando se lia algum nome de algum morto até que...

Eles ouviram barulhos. Pareciam tambores. Parecia gente cantando uma música estranha. Eram os pagãos, com certeza. Mark colocou o dedo sob a boca, fazendo aquele gesto de “silêncio” que todos conhecemos. Havia uma fogueira, se via pela claridade do fogo no meio da escuridão da noite. Mark e Katja foram em sua direção, se agachando um pouco para que ninguém os visse. Era um misto de aventura, mistério, tudo junto. Embiaguez de sentidos.

Ao subirem o pequeno morro viram então a cena. Eram de cinco a seis mulheres. Elas dançavam ao redor do fogo. Gritavam e cantavam numa língua estranha. Parecia um velho idioma dos druidas. Era obviamente uma cerimônia antiga, uma coisa de invocação de espíritos da natureza. Era o que os antigos costumavam chamar de bruxaria. Se fosse ainda os tempos da santa inquisição aquelas mulheres seriam queimadas na fogueira com toda a certeza.

Elas pareciam invocar o nome de deuses ancestrais. Nomes que Mark desconhecia, mas que soavam um pouco familiares. Eram nomes de deuses caídos, ditas por seguidoras de divindades antigas que a igreja tentou apagar por séculos. O que aquelas mulheres queriam com aquele ritual? Era exótico, estranho, tudo ao mesmo tempo. Claro, havia ali também um prato servido para sociólogos e teólogos em geral. Afinal ver um bando de mulheres nuas dançando em volta de uma fogueira, com instrumentos desconhecidos nas mãos, invocando antigos nomes de deuses, definitivamente não era algo que se via todo dia.

Na realidade aquelas mulheres pagãs cultuavam as forças da natureza. A força das árvores antigas da floresta, do espírito dos animais selvagens, inclusive daqueles que já não existiam mais. O homem, um ser frágil, na realidade, mal conseguia compreender a força que provinha da natureza. Fazia todo o sentido. Tudo era natureza, desde o mais simples organismo, até os grandes astros do universo. Não havia na existência forças maiores do que essas. 

E entre o conhecido e o desconhecido pela ciência, realmente existia uma grande esfera de criaturas ainda não estudadas pelos cientistas. E essas criaturas estranhas pareciam reagir bem àqueles rituais, talvez algo inerente ao seu próprio organismo. Algo herdado de seus ancesttrais mais remotos na história. Antes mesmo do surgimento do homem no continente europeu. 

Até que Mark ouviu um barulho vindo do meio da escuridão das árvores. Parecia uma fera grunhindo de fúria perto de atacar. Era um rosnado aterrorizador, é verdade. Mark colocou as mãos sobre o paletó e percebeu que estava totalmente desarmado. Se aquele bicho resolvesse atacar, ele não teria nem ao menos como se defender... Se havia momento para ter medo, bom, aquele era a hora certa para isso...

O Lobo Cinzento
 Chorem crianças da noite, chorem! - Mark conseguiu ouvir essa ladainha bem no meio da tensão. Uma criatura estranha o enxergava por entre as árvores. Árvores de cemitério. Velhas, longas, sinistras... Um velho lobo cinzento com as marcas de luta por todo o seu corpo! O animal foi se aproximando, mas ainda sem se revelar. Era algo não natural. Parecia um lobo, mas de porte extremamente avantajado. E aqueles olhos vermelhos, bem, aquilo não lhe parecia familiar? Era a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. A fúria e a violência. Nada de paz provinha daquele bicho.

Então ele se colocou por fora das sombras. A luz do luar iluminou a cabeça daquela insana visão. Mark ficou em alerta. Ele não queria fazer um gesto brusco porque isso poderia assustar aquela criatua da noite! E então o animal começou a rosnar, a rosnar, era o prelúdio de um ataque iminente. Mark percebeu que tinha apenas alguns segundos e então... o pulo fatal!

Ele se esquivou, mas não escapou de ser machucado pelas garras da fera. O sangue escorria em seu ombro. Mark então se abaixou e pegou uma pedra enorme, provavelmente pedaços de uma lápide secular. Ele ficou jogando a imensa pedra de mão em mão, olhando a besta nos olhos. Era uma dança corporal que passava a mensagem que haveria reação, que caso fosse atacado ele iria revidar. Besta dos infernos ou não, cão de Satã ou não, haveria luta. Mark, cerebral, agiu como se tivesse pronto para a guerra com seu opositor.

O animal deu uma segunda investida e cravou os dentes no ombro de Mark. Ele caiu ao chão, viu de perto os dentes da fera pingando com seu sangue. Com adrenalina a mil, nem pensou duas vezes e bateu a pedra na cabeça do bicho. Deu certo. A pancada surtiu efeito e o monstro saiu em retirada. A violência e a força do ataque acabaram chamando a atenção de todas as pessoas que estavam no cemitério, até mesmo das garotas pagãs que se vestiram e saíram correndo em direção a Mark para prestar socorro.

Ele caído no chão, com a roupa rasgada e o sangue escorrendo pela camisa.  

- O que aconteceu? O que aconteceu? - gritavam as aprendizes de bruxas pagãs. 

- Fui atacado por um lobo! - Respondeu Mark, ainda desnorteado pelos acontecimentos. Apoiado nas meninas, ele se levantou. Sacudiu para tirar a areia. Areia de cemitério. A mesma que era jogada em cima dos caixões putrefatos dos corpos sem vida. Então as garotas o levaram até o portão. Só que havia um problema;. Mark parou, olhou para trás e gritou: 

- Katja, onde você está? – E não houve qualquer resposta...

Depois disso a perda de sangue cobrou seu preço. Mark se apoiou em uma velha lápide do cemitério. Não parecia ter mais forças nas pernas e nas mãos. O sangue escorria por seu corpo. Aos poucos foi perdendo a consciência... O mundo ia ficando escuro... a visão embaçada... Por fim a escuridão completa... o vazio, o vão sem fundo...

Mark acordou no hospital. Ele estava mal. O animal que o atacou gravou os dentes em seu ombro. O ferimento foi feio. Rasgou a pele e danificou várias veias e músculos. O quadro não era bom. Ele ardia em febre. Seu pai ficou espantado ao saber das circunstâncias do ataque. O que diabos Mark estava fazendo em um cemitério? Que bicho o atacou? Por que ele não avisou sua família? Eram questões que todos se perguntavam.

Mark ficou doente e febril por três dias seguidos. Coisa grave. Só que para espanto dos médicos, após o terceiro dia ele teve uma melhora espantosa. O ferimento deixou de inchar e um risco de infecção foi descartado. No quarto dia ele parecia muito bem. Sentou na cama, andou pelo quarto, falou alegremente com os familiares. Parecia ter se recuperado bravamente! Até o corpo médico que o atendeu ficou surpreso! Era caso de entrar nos estudos da medicina.

No sexto dia Mark pegou sua camisa, seu casaco e saiu do hospital. Os médicos não lhe deram alta. Ele se deu alta. Acordou, lavou o cabelo, escovou os dentes e se foi. Sua primeira parada não foi na casa dos pais, mas na de Katja. Ele estava preocupado com ela. O que aconteceu com a garota pela qual ele tinha tantos sentimentos? Ele estava muito preocupado, porque em suas lembranças difusas, ele a viu sendo brutalmente atacada pelo bicho. Aquilo havia acontecido mesmo ou era fruto de uma mente em delírios, após a grande febre que teve no hospital?

 A notícia não foi nada boa. Jack, o velho coveiro, tio de Katja, lhe deu a terrível verdade.

- Katja está morta! - O velho era duro, sua profissão lidava com a morte, mas agora ele estava realmente entristecido.

- Meu Deus! Eu não acredito! - Mark, com lágrimas nos olhos, não conseguia acreditar. Ele se abaixou e ficou ema posição que mostrava sua vulnerabilidade emocional.

- O lobo a matou. Ele não resistiu aos ferimentos... Filho, lamento... lamento... - O tom do velho Jack era estarrecedor.

- Não, não... não... - Mark não conseguia acreditar no que estava ouvindo...

O  velho coveiro então percebeu que Mark tinha pedaços de curativos saindo por seu casaco. Ele percebeu que Mark tinha sido ferido também pela criatura. Isso não era um bom sinal, pelo contrário, era um péssimo indicativo. O velho acreditava em velhas lendas... como a de homens que viravam feras em noites de lua cheia. Para ele o ataque do "lobo" nada mais era do que o ataque de um "lobisomem" e como tal isso condenaria a vida de Mark para sempre. Se em algum momento, durante o ataque, seu sangue teve contato com o sangue do monstro feroz, então ele também estava condenado.

Pablo Aluísio.

sábado, 12 de dezembro de 2009

O Lobo da Escócia - Parte 2

A Universidade de Medicina
Mark retornou para a universidade pela segunda de manhã. Era a volta à velha rotina estudantil. De fato o curso de medicina era extremamente puxado, um choque de realidades envolvendo a esbórnia dos fins de semana e as aulas intermináveis da semana. Para aliviar um pouco o stress de passar o dia correndo pelos corredores, indo de uma sala de aula a outra ele se reunia com seus amigos na parte da noite na área externa do campus. Ali eles bebiam um pouco, conversavam sobre o mundo, recitavam poesias. Gostavam de se ver como um clube de literatura. Membros da fina flor intelectual escocesa, era natural que levassem aquele estilo de vida dândi. Todos adoravam Lord Byton e conversavam sobre sua história pessoal fora dos padrões. Era o ídolo dos jovens da época. 

Ao lado de Mark estavam sempre seus bons amigos, John Robinson e William Clark. Todos jovens como ele, ali na faixa dos vinte e poucos anos. Tinham a vida toda pela frente. Robbie e Bill (seus apelidos dentro do grupo de amigos) sempre ficavam intrigados e interessados nos relatos de Mark. O que ele teria aprontado no fim de semana? Nesse dia em particular Mark tinha mesmo muito o que contar. Ele havia conhecido o velho tio da garçonete pela qual ele era apaixonado. Um senhor que trabalhava como... o coveiro da cidade! Estranho, muito estranho.

Porém a ideia ali era mesmo relaxar, contar algumas piadas, ouvir histórias bizarras, tudo para passar o tempo. Mark lhes contou que o velho havia flagrado pessoas andando pelo cemitério na madrugada, fazendo rituais de velhas seitas pagãs. Robbie, assim como havia ficado Mark, simplesmente não acreditou que ainda havia paganismo na Escócia! Era surreal. Aliás, eles como estudantes de medicina, estavam obviamente mergulhados em pura ciência. Sentimentos religiosos eram encarados como crendices populares, uma herança distante de um tempo que para esses jovens que se sentiam imortais não trazia mais nenhum sentido. Talvez apenas uma curiosidade sociológica. Nada mais do que isso.

Robbie provocou. Quem sabe eles não poderiam por pura farra ir para o cemitério à noite para ver com os próprios olhos esses "medievais". Seria divertido, engraçado, bizarro, tudo ao mesmo tempo. Além disso, ia trazer uma anedota para que eles pudessem contar pelo resto de suas vidas. A ideia empolgou os dois amigos, mas Mark ficou com um pé atrás. Afinal o velho coveiro era o tio da garota pelo qual ele estava caidinho. Valia a pena se queimar assim? Só pela farra de seus colegas de universidade? Era muito arriscado, mas nessa idade quem pensa com seriedade? É um jogo divertido de cartas meu caro.

A semana transcorreu sem maiores problemas. Havia muitas aulas e naquele semestre em particular Mark estava prestando praticamente todas as matérias sobre anatomia. O corpo humano o fascinava. Ele tinha aquela máquina da natureza como um conjunto perfeito o que em sua opinião exigia a presença de um criador. Anos antes do advento da inteligência de design, Mark já ficava pensativo sobre tudo o que aprendia. Desde a menor célula, até o mais bem organizado e complexo membro ou órgão, tudo tinha sua função. Não havia espaço para o inútil dentro do nosso corpo. Era fabuloso. Para Mark havia uma inteligência por trás de tudo aquilo. Não poderia ser mero acaso, definitivamente não haveria como!

Durante a semana Mark se comportava como um estudante de medicina exemplar. Ele tinha boas notas, era considerado um aluno inteligente pelos professores e se revelava uma pessoa bem sociável entre os colegas de universidade. E freqüentar uma universidade naquela época era mais do que um privilégio. Era um verdadeiro sinal de que assim que formado haveria empregos, bons salários e um futuro promissor pela frente. E para isso não era necessário ser o mais inteligente dos homens. Se o jovem médico optasse por morar no interior, em pequenas cidades, ele também teria uma vida de privilégios, pois os médicos eram ao mais bem pagos por onde passavam. Era uma vida cheia de promessas no futuro, um sensação de sucesso enchia a todos de orgulho.

Claro, naquele meio também existiam os patifes, os pequenos canalhas e os assumidamente escroques. Todos eram, em maior ou menor grau, filhos da elite escocesa, pois o curso exigia vários anos de estudo e era necessário para isso uma família abastada e rica por trás. Os livros custavam pequenas fortunas e manter um estudante de medicina naquele tempo custava caro. Só as famílias mais ricas podiam dispor desse privilégio.

E no plano de futuro brilhante também havia a expectativa que o jovem médico escolhesse uma bela dama para se casar. Uma moça de família de sobrenome, a mulher que seria a ideal para um jovem médico em começo de carreira.

Era justamente isso que Mark mais temia. Ele era apaixonado por Katja, a garçonete sobrinha de um coveiro. Impensável para sua mãe ter uma nora assim. Ele podia inclusive ouvir a voz de sua mãe berrando em sua mente numa hipotética situação dela um dia vir a descobrir tudo. Era enervante. A mãe dominadora provavelmente teria um colapso nervoso caso viesse a saber que Mark, seu filho motivo de orgulho, era apaixonado por uma mulher como aquela. E o que dizer de seus excessos na bebida?

Conforme a semana ia chegando ao fim Mark começava a salivar, a sentir um enorme desejo de tomar uma bebedeira. Ele sabia que isso era sintoma de que provavelmente ele iria desenvolver nos próximos anos um alcoolismo crônico. Porém é a tal coisa, quando se é jovem e se tem o futuro pela frente, tudo é possível, nada parece ser trágico, cinza ou negro em seu futuro. Tudo parece brilhar, é claro. Só que contra fatos não há argumentos. Mark sentia a abstinência. Assim quando mal acabavam as aulas na sexta-feira pela tarde, ele corria, subia em uma carruagem e ia para o interior, freqüentar as piores e mais esfumaçadas tabernas. Ele queria se esbaldar, com muito álcool, sexo pago e aquele clima de vida boêmia decadente e depravada que ele tanto amava.

E sim, havia ainda Katja, seu amor proibido. Mark não via a hora de se deitar com ela, ficar enrolado em seus braços, sentir aquele cheiro de perfume barato que tanto o excitava. Era um paradoxo. Quanto mais Katja parecia vulgar e dissoluta, mais ele parecia se apaixonar por ela. Quanto mais ela quebrava convenções, mais ele se derretia. Psicologicamente era um portão de liberdade. Liberdade de se ver preso a semana inteira na imagem de jovem impecável, de jovem promissor. Ele queria a esbórnia, queria a embriaguez. Viver uma vida como Lord Byron, seu maior exemplo!

O Cenário do Crime
 Naquela manhã o pequeno diário da cidade estampava em sua página principal uma notícia bem perturbadora.  O corpo de uma jovem havia sido encontrada nos bosques, bem ao lado da propriedade rural do velho senhor McBride. O inspetor Robertson estava intrigado. Em mais de 40 anos de serviço policial ele não havia visto nada igual. Ela estava virada de bruços, havia sido atacada de forma avassaladora. Suas roupas estavam rasgadas e o cenário não era bonito de se ver. 
 
Sua mandíbula estava arrancada. O rosto ainda traia expressões de dor, de desespero. O velho policial chegou até perto do corpo, acendeu seu charuto e olhou ao redor. O ataque havia sido premeditado, feito de surpresa. O agressor ou o animal pulou em cima da vítima em questão de segundos. Não havia como se defender. O velho policial viu o lugar de onde o assassino surgiu pois as folhas estavam quebradas no meio da mata. E ali havia uma pequena trilha, pequena demais para um homem robusto, ideal para um lobo. 

Não demorou muito e reconheceu as pegadas da fera. Eram bem maiores dos que os camponeses estavam acostumados a ver. Se era mesmo um lobo então era de uma nova espécie desconhecida, ou então era de algum animal exótico que havia sido trazido ilegalmente para aquela região e havia fugido de seu cativeiro. Então a situação se colocou em seu ponto de vista. Era, pelo menos naquele momento, o ataque de um lobo selvagem, desconhecido da fauna comum que existia naqueles bosques. 

Ao perceber que um jornalista havia chegado ao lugar, o velho inspetor determinou que seus policiais agissem rápido, que levassem o corpo da mulher morta para o departamento de polícia. Mesmo com a pressa, não escapou de ser interrogado pelo repórter que queria novidades. 

- Inspetor o que aconteceu aqui, alguma informação para os leitores de nosso jornal? – Foi logo indagando o velho policial cansado da vida. 

O policial parou, acendeu o fogo de seu charuto e respondeu ao jornalista

- Eu vejo aqui um cenário de crime, talvez, de uma jovem mulher assassinada. Penso, em uma visão preliminar, que se trata de um ataque de um animal selvagem. Um animal com porte físico bem maior do que o normal. Não temos maiores informações do que isso. Só o tempo e as investigações vão revelar mais sobre esse caso – Finalizou o veterano, agora envolto nas nuvens de seu charuto. Então deu as costas e voltou para sua delegacia. Era um caso novo e muito complicado de se resolver, disso ele tinha plena consciência. 

Pablo Aluísio.

O Lobo da Escócia - Parte 1

Prólogo - Nos Tempos Romanos
Sempre existiram lendas e mitos nas terras altas escocesas. O clima frio e hostil e aquelas terras onde ninguém morava dava mesmo margem para o aparecimento desse tipo de história. Já nos tempos em que as ilhas britânicas estavam sob dominação romana, se dizia que nenhum legionário do império deveria subir muito ao Norte pois a morte o encontraria de forma certeira. Isso impressionou os comandantes romanos que apesar de formar uma casta de homens bravos, não se encorajavam a ponto de enfrentar forças sobrenaturais que eles não conheciam. 

Nessa época remota surgiu a história de Lupus, um monstro, meio homem, meio lobo. Dizia-se entre os romanos que certa vez uma patrulha foi muito ao Norte e acabou se perdendo naquelas terras sem fim. Com a chegada da noite, eles precisaram levantar acampamento para no dia seguinte tentar voltar para sua legião. Entretanto isso não iria acontecer. 

Não se trataria de um lobo selvagem comum, nada disso. Estava mais para um ser sobrenatural. Os romanos já tinham se deparado com esse tipo de lenda quando entraram nas florestas geladas da Germânia. Os povos bárbaros que lá habitavam diziam que existia uma entidade meio homem e meio lobo que vivia dentro das florestas mais escuras e que nenhum ser humano deveria adentrar seu território pois isso iria contra a vontade dos deuses. 

A velha lenda era interessante. Quatro soldados romanos acabaram em uma região aberta, perto de um lago de águas cristalinas. O lugar era bonito, afastado e selvagem. Não havia alma viva por perto, em quilômetros de distância. As altas montanhas ao redor deixavam claro que aquele era um penhasco de muitos ventos. Vento frio, de gelar a alma de qualque mortal. E os romanos não estavam definitivamente prontos e nem vestidos adequadamente para aquele tipo de clima feroz. Sem dúvida era necessária uma roupa melhor, com muitas peles, para agüentar aquele frio intenso. 

Apesar da situação nada calorosa, os romanos finalmente escolheram um lugar que acharam o mais adequado. Grupo pequeno, que precisava ficar atento. Um deles ficou de guarda pela madrugada. Não adiantou muito. Lá pelas três da manhã se ouviram os primeiros uivos. Aqueles soldados sabiam muito bem como soava um lobo na noite. Só que aquilo parecia diferente, uma mistura do som natural do lobo, com crianças chorando e nítidas sonoridades de um grito humano. Era de arrepiar. 

Não tardou muito para o pior. Eles foram violentamente atacados durante a madrugada. Uma besta caiu sobre eles de forma avassaladora. Muito se comentou sobre as forças que atuaram naquele ataque formidável. Dois legionários tiveram suas cabeças arrancadas, seus elmos destruídos. Um outro ainda tentou fugir em disparada, mas parou ao sentir que longas garras entravam em suas costas, arrancando seu coração. Um barbarismo como nunca se viu!

Nem o fato de estarem portando armas mortais, como espadas, lanças e escudos, ,serviu para que pudessem se defender. O ataque foi tão violento e rápido que mal conseguiram perceber o que estava acontecendo com eles! Parecia uma força vinda diretamente das entranhas do inferno. Aquele monstro não era natural, da natureza. Era algo pior, mais sujo, mais violento. De seus grandes dentes escorria uma baba pegajosa, muito mal cheirosa. Os romanos conheciam a Raiva, uma doença que atingia cães e lobos, mas aquilo era diferente. Era algo mais nocivo, mais putrefato, era o bafo da morte, o cheiro das profundezas do Hades. 

O ataque durou poucos minutos. Em questão de momentos, todos os legionários estavam mortos. Os corpos caídos ao chão foram dilacerados. Suas entranhas foram comidas com ferocidade. Aquele animal certamente estava com muita fome e não distinguia entre uma ovelha ou um ser humano. Tudo era comida e a fome era enorme. Havia também elementos de crueldade extrema, como amputações de pernas e braços dos militares. As armas ficaram para trás, no chão, sem serventia. Certamente aquele monstro era irracional. Se fosse o ataque de inimigos certamente as armas teriam sido levadas. E os romanos sabiam que havia tribos bárbaras naquela região, mas não era esse o caso.

Os romanos que chegaram no acampamento duas semanas depois ficaram chocados com o que encontraram. Restos de braços, pernas e equipamento militar espalhados por todas as áreas. A fera que os atacou não apenas tirou suas vidas, mas comeu parte de suas carnes. Canibais! Os romanos já tinham enfrentado todos os tipos de bárbaros ao longo de sua história, mas nunca tinham se deparado com nada parecido com aquilo. O comandante do grupo de resgate ficou chocado e amaldiçou o homem ou o animal que fez aquilo! Por Júpiter, nunca se vira algo assim antes!

Relatórios militares logo foram escritos e levados para a cidade eterna. Em Roma não se falava em outra coisa. Pelos becos da capital do império todos estavam comentando sobre monstros vivendo na ilha da Bretanha. Aquele lugar escuro, onde sempre parecia chover, realmente não era uma terra das mais amistosas. As lendas envolvendo monstros sempre fizeram parte da cultura romana. Dizia-se que os mares eram infestados de monstros marinhos. Só não se sabia até aquele momento que em terra também havia esse tipo de fera feroz!

Depois disso os romanos resolveram parar os avanços para o Norte. O imperador Adriano ficou particularmente chocado e mandou trazer os sábios do império para discutir sobre o assunto com ele. Estava intrigado com o que ouvira. Os sábios lhe disseram que essa história já havia sido contada antes quando legiões foram para a Germânia. Provavelmente seria o mesmo tipo de besta. 

O imperador Adriano ainda ouviu os sacerdotes dos templos de Júpiter. Eles relembraram de antigos mitos gregos como o Minotauro. O imperador tinha uma grande curiosidade sobre tudo o que dizia respeito à cultura grega. Por isso ouviu tudo de forma muito atenta. Certamente poderia ser um caminho a seguir. Provavelmente como o Minotauro aquela besta seria um castigo dos deuses contra alguma subversão dos homens que ali viviam, Os romanos apenas não tinham tido o conhecimnto de tudo o que havia acontecido. 

Finalmente depois de dias debatendo o tema com sábios e religiosos, Adriano finalmente se dirigiu ao Senado romano. Uma decisão política deveria ser tomada sobre o tema. E para isso ele precisava ouvir seus senadores. Deveria enviar mais tropas para o Norte ou recuar, decidindo que nenhum romano deveria mais colocar os pés naquelas terras amaldiçoadas, essa era uma dúvida válida naquele momento .

Adriano então sentou no centro do senado e ouviu seus senadores. Ouviu e ouviu de novo tudo o que cada um deles tinha a dizer. E levou em consideração todas as opiniões. Então ele tomou sua decisão e mandou erguer um muro para o qual nenhum romano deveria passar além. As muralhas de Adriano ainda se erguem em grande parte do Norte da Bretanha, no local basicamente onde está a fronteira entre a Inglaterra e a Escócia de nossos tempos. 

Foi uma forma de proteger seus soldados, seus exércitos. A Roma imperial estava pronta para enfrentar qualquer inimigo, de qualquer lugar remoto do mundo, mas o imperador não estava disposto a perder seus homens para feras desconhecidas, que pareciam ter uma grossa pele que resistia até mesmo a ataques de espadas e lanças. Ele não queria ir tão longe. Em se tratando da ilha da Bretanha, os romanos estavam satisfeitos com o que tinham tomado. Não era necessário ir tão ao longe daquele lugar frio, escuro e assustador. Então Adriano tomou sua decisão e editou seu decreto. Dois novos generais foram enviados até lá para a construção do muro. E ele ficou satisfeito com a decisão que havia tomado. 

E a lenda sobreviveu, pois antigos textos romanos foram encontrados contando justamente essa história. Relatórios militares que foram enviados para o Imperador em Roma. A lenda de um homem lobo que atacava e matava todos os que ousavam ultrapassar seu território. Ninguém poderia sobreviver após aqueles terríveis acontecimentos...

E o monstro seria conhecido nos séculos que viriam. Toda uma mitologia então foi criada pela literatura de terror, algumas dessas baseadas em ataques reais que aconteceram ao longo dos séculos. Ao lado de outros monstros clássicos, como vampiros e criaturas dos mais diferentes tipos, a lenda dessa fera atravessou séculos, entrou para a cultura e folclore de povos tão diversos como os do leste europeu ou da América Latina. Até mesmo povos orientais cultuaram seus monstros híbridos de lobos e homens. Pelo visto algo aconteceu no passado, sedimentando todas essas histórias que se contavam. E a seguir passaremos a contar uma delas, das mais assustadoras que se tem notícia pois foi bem documentada pelos cronistas da época vitoriana. 

O Coveiro
Estamos no século XIX. Para ser mais exato em 1873. Jack Boyd é um homem que para muitas pessoas não passa de um sujeito asqueroso. Ele trabalha como coveiro na cidade de Newtown. Lugarejo que parece nunca ter saído da estagnação, embora fosse relativamente perto da capital. Ali muitos estudantes de medicina, da classe alta, iam em busca de passar algumas noites nos bares e prostíbulos do lugar. As mulheres tinham fama de serem bonitas. Afinal mulheres bonitas que serviam nas tavernas se tornavam alvo fácil para gaviões endinheirados da capital escocesa.

Entre eles estava Mark MacAlister III, filho de uma família tradicional. Jovem de apenas 20 anos, fazendo o primeiro ano do curso de medicina. Ele não sabia, mas seu destino iria cruzar, pelas vias tortas do acaso, com o coveiro Jack. Para completar o trio de pessoas importantes naquela noite havia Katja Boyd, a jovem de aparência russa que trabalhava na taverna Devil In The Heart. Mark era louco por ela, já a tinha levado para a cama algumas vezes, mas sempre com um tipo de impessoalidade que o incomodava.

Ele sabia que aquela garçonete de corpo maravilhoso era também disponível, pronta para fazer companhia noite adentro a quem pagasse bem. Um relacionamento do jovem futuro médico com uma mulher considerada de classe inferior era algo impensável para a tradicional família MacAlister. Nem em sonho isso iria acontecer. porém Mark estava literalmente caído por Katja. Algumas vezes viajava toda a noite de carruagem apenas para vê-la. E aqui temos o primeiro elo de ligação entre o promissor estudante de medicina e o coveiro asqueroso da cidade. Katja era sobrinha de Jack.

No começo Jack passava pela madrugada para pegar a sobrinha e levá-la em segurança pelas ruas escuras da cidade. Numa dessas ocasiões conheceu o acadêmico em medicina que estava apaixonado por ela. 

- "Bem rapaz, você então vai ser médico?" - Jack perguntou acendendo seu cigarro de palha, enquanto olhava Mark com os olhos semicerrados - "Eu conheço alguns médicos da faculdade de Edimburgo" -o sorriso irônico não escondia a acidez de seu comentário. Era como se ele dissesse "Eu conheço aquela gente, aqueles porcos de jalecos brancos!". No passado Jack havia vendido corpos humanos para professores e médicos da universidade. Claro, era um crime abominável, ele vendia cadaveres frescos de pessoas pobres e indigentes para os doutores. Era uma forma de estudarem a anatomia humana com mais precisão.

A revelação obviamente chocou em um primeiro momento o jovem Mark. Era algo sinistro, porém isso numa visão das pessoas comuns, do homem médio. Ele iria ser um homem da ciência, um médico, por isso embaixo do rosto espantado havia também um pensamento racional do tipo "Eu entendo esse tipo de coisa, eu posso aceitar essa situação que para muita gente é sinistra e nebulosa". Ora, ora, Mark e Jack então decidiram tomar uma bebida. Tudo pago pelo jovem. Afinal ele queria conquistar também o tio, pensando em levar mais uma vez para cama sua sobrinha, Katja, mulher de seus sonhos mais inconfessáveis. Então ele olhou diretamente nos olhos do velho coveiro e lhe disse com convicção: 

- "Eu posso conviver com isso! Eu entendo meus colegas! Eles fizeram tal coisa pela ciência". – Sim, o jovem estudante parecia firme em seu ponto de vista. 

A noite de bebedeiras continuou até o dia seguinte. Lado a lado a fina flor da sociedade escocesa, um estudante de medicina jovem, o melhor que se poderia esperar de um rapaz. Do outro lado um coveiro, considerado um dos tipos de trabalho mais brutais e rudes que se poderiam imaginar, isso claro, sob um ponto de vista da elite burguesa e intelectual. Porém por mais diferentes que fossem acabaram se aproximando, se tornando, pelo menos naquela noite, bons amigos.

Mark gostava de beber. Embora tivesse que estar na universidade pela segunda de manhã, ele passava os fins de semana nas tavernas mais obscuras daquele lugar. Entre uma poesia e outra ele enchia copos e mais copos de whisky. Entre devaneios puxava conversas envolvendo lutas, sexo e até sobre o sobrenatural. Tudo o que ele não falava entre as elegantes e elitistas salas de aula da universidade. Afinal o ambiente universitário não abria margens para esse tipo de conversação, considerada de baixo nível, de péssimo gosto.

O coveiro Jack lhe contou algo curioso. O cemitério tinha sua própria "fauna" noturna, pessoas envolvidas com religiões e rituais pagãos de magia negra. Com a igreja pressionando os adeptos desses cultos de ocultismo só sobravam mesmo as ruelas entre os túmulos onde eles podiam fazer seus rituais macabros, durante as madrugadas escuras. Mark ficou surpreso em saber da existência desse submundo. Ele pensava até aquele momento que o cristianismo havia varrido da Europa esse tipo de ocultismo. Porém havia muito mais sobre as sombras que ele nem poderia imaginar. O velho paganismo de um passado remoto ainda existia entre a população daquela região.

Jack se referia a todos eles como "as criaturas da noite" ou "as crianças da noite", um pequeno feudo de pessoas que flertavam perigosamente com as forças do outro lado. Não as forças das luz, mas sim as forças das sombras. Jack, ás vezes, assistia tudo de longe, escondido em alguma penumbra. Havia muitas invocações, bebidas estranhas eram tomadas pelos participantes e de vez em quando alguma presença maligna chegava a ser sentida. Seus superiores tinham dado ordem para ele expulsar todos que encontrassem para fora do cemitério, mas Jack era um homem prático. Enquanto não houvesse aberturas de túmulos ou violações de corpos, ele tolerava aquela presença. Afinal, se havia alguém culpado em profanar túmulos naquele lugar era o próprio Jack, como ele já havia confessado.

Pablo Aluísio. 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O Vampiro de Versalhes - Parte 8

Ruas Sangrentas de Lisboa
Estrada para Lisboa, 2 de fevereiro de 1890
Prezada Estefânia,
Eu realmente tinha planos de matar Valentino, mas decidi que deveria ser algo bem planejado, sem pressa, tudo deveria ser executado de forma minuciosa. Para minha surpresa, enquanto tecia planos e mais planos em minha mente, soube que Valentino foi encontrado morto em sua taverna esfumaçada e escura. As investigações apontavam para uma certa mademoiselle Lisa. Essa jovem moça era uma das escravas sexuais do vampiro. Uma pessoa que sofreu atrozes torturas em suas mãos por anos e anos. Depois de muitos abusos, o caldeirão um dia iria entornar. Ela o havia matado com requintes de crueldade.

Valentino foi encontrado pelos policiais completamente calcinado. Impossível reconhecer. Porém havia dois detalhes determinantes que chamaram muito a minha atenção na noite seguinte quando li os jornais com as notícias. Em volta do pescoço dele havia um arame farpado que o prendia a um crucifixo. E em seu peito uma grande estaca havia sido fincada. Isso provava duas coisas importantes. Primeiro que Valentino estava definitivamente morto. Nenhum vampiro iria sobreviver aquele tipo de agressão com ares de culto religioso. Segundo, o mais importante, é que quem o matou sabia que estava matando um vampiro. Teria sido apenas a mademoiselle ou alguém com os adequados conhecimentos a havia lhe ajudado?

De uma maneira ou outra, comprei uma passagem de viagem para Lisboa. Era uma bonita cidade, mas o excesso de igrejas e catolicismo me incomodava muito. Nas pequenas ruas de pedras seculares sempre havia uma procissão passando, gente rezando. Para falar a verdade eu nunca havia conhecido um povo tão religioso como aquele. E isso, para um vampiro, nem era a pior parte. Ter que ficar ouvindo aquelas ladainhas, aquelas orações que pareciam nunca chegar ao final, me incomodava bastante. Era muita carolice para um vampiro velho como esse que lhe escreve.

Assim que anoiteceu subi na carruagem e fui embora rumo ao meu destino. Essa seria a última vez que iria fazer uma longa viagem com carruagem. A modernidade havia chegado também na Europa. Os carros estavam prestes a surgir nas estradas. Eu achava aquela máquina algo de intrigante. Eu costumava zombar um pouco, dizendo que eram carruagens sem cavalos, porém quem poderia deter o progresso? Ao longo dos séculos nunca havia visto uma prova concreta da existência de Deus, mas todos os dias me espantava com a capacidade da ciência em inovar e trazer melhorias para a sociedade. Seria a ciência o verdadeiro Deus da humanidade? De vez em quando eu me pegava com esse tipo de questionamento passando por minha mente.

O Clero
Lisboa, 10 de fevereiro de 1890
Estefânia, minha querida...
Após várias tentativas finalmente consegui ser recebido pelo Cardeal Bragança, o membro do clero católico que poderia me dar informações sobre o Livro de Sangue. Eu não menti, me apresentei como especialista em antiguidades e expert em livros raros, algo que sou realmente. Apresentei meus documentos de identificação que me qualificavam como um autêntico pesquisador. 

Ele era um homem fino e educado. Esperava exatamente por isso. O clero católico sempre foi muito culto e versado. Em termos religiosos nenhuma outra seita ou religião chegava perto nesse aspecto. Ele me disse que estava curioso em saber por que eu queria pelo menos ver o tal Livro de Sangue. Era uma obraa medieval, até hoje pouco conhecida ou entendida. Havia muitas lendas envolvidas sobre ela, mas fatos concretos, muito pouco havia o que falar. 

Tendo ganhado sua confiança ele começou a me explicar sobre o Livro de Sangue. 

- Essa é uma obra que nasceu e foi escrita dentro daquele caldeirão cultural que virou uma verdadeira febre na Idade Média, com toda aquela busca pelos milagres que a Alquimia tanto prometia aos desejosos de transformar qualquer metal em ouro...

Ele acendeu um pequeno cigarro muito fino e continuou sua explicação...

- A alquimia medieval em si nunca foi uma ciência, mas de certa maneira inspirou o surgimento da ciência tal como a conhecemos. E suas premissas básicas, de que haveria possibilidade de mudança dos elementos químicos foi confirmada pelos cientistas séculos depois. Os alquimistas assim não eram tolos... Eles realmente tinham as premissas adequadas...

Fiquei prestando atenção na importante explicação daquele homem realmente culto, então resolvi perguntar: 

- Você leu o livro? Ele é basicamente um livro de alquimia?

Ele parou por alguns instantes, deu uma baforada na fumaça do cigarro e continuou a explicação...

- Não diria que é apenas um livro de alquimia. Há muitos elementos religiosos e de saber sobrenatural envolvidos. Há coisas estúpidas escritas no livro, como transformar vampiros em mortais novamente, mas isso é parte do folclore da época... E existe, claro, estranhos experimentos afirmando que seria possível mesmo transformar qualquer metal em ouro puro... Enfim, conjunturas, conjunturas.... De minha parte apreciei um pequeno glossário sobre demônios que o livro traz... Eu sempre tive particular interesse em demonologia e nesse aspecto esse livro antigo traz informações importantes..

Fiquei ouvindo com atenção. Pouco me importava a parte sobre demônios. Eu queria mesmo era ler a parte do livro que tratava dos vampiros. Fiquei muito pensativo sobre a possibilidade de se reverter o processo do vampirismo. Isso seria realmente genial, embora eu não estivesse com planos concretos de voltar a ser um mortal.

De repente o religioso se levantou e me dispensou. 

- Lamento, tenho que interromper nossa conversação. Tenho agenda cheia amanha. Irei trabalhar administravelmente na diocese e irei celebrar missas logo pela manhã, às sete. De qualquer forma agradeço seu interesse. 

Perguntei como seria possível ter acesso ao Livro de Sangue. 
Ele respondeu:

- O livro está atualmente no Vaticano, guardado a sete chaves. Não é fácil chegar nele, mas é possível. Você terá que fazer um requerimento por escrito à Santa Sé, mostrando os motivos de seu interesse, a linha de pesquisa que está sendo seguida. O Vaticano é aberto para pesquisadores, não para meros curiosos, por isso aconselho que apresente uma carta de recomendação da universidade pelo qual você está fazendo sua pesquisa. 

Puxa, aquele era um problema e tanto que eu teria que resolver dali em diante...

Maximilian.

O Destino de Maximilian
Eu, o historiador Pierre, concluo o meu trabalho de pesquisa agora. A carta anterior datada de 10 de fevereiro de 1890 foi a última encontrada. Essa então será, de certa maneira, uma pesquisa inconclusiva. Até que tenhamos acesso a novas cartas, tudo terá se perdido nas areias do tempo...

Depois dessa data e dessa carta nada mais foi encontrado sobre esse nobre vampiro em bibliotecas da Europa continental. Pelo menos, por enquanto. Cartas mais recentes podem existir, mas não foram encontradas, essa é a verdade. O que terá acontecido? Por onde andou? Estaria ainda vagando nas noites escuras? Pela importância do registro histórico passo a pensar em seu destino.

Ele estava prestes a ir para o Vaticano... será que realmente viajou até lá?... Em extensas pesquisas o máximo que encontrei foram pistas que reproduzo abaixo. 

Há um obituário em nome de um certo homem chamado Louis Maximilian datada de meados de setembro de 1916, na cidade de La Rochelle. Esse nobre senhor foi encontrado morto em sua casa nos arredores da cidade. Morreu tranquilamente enquanto lia um livro de alquimia medieval. Esse detalhe foi o que mais me chamou a atenção.

O senhor Jean Lobothan cuidou de seu funeral. Nenhum parente apareceu, apenas o padre Mckenzie que leu alguns salmos, enquanto o caixão de Louis descia em sua cova. Era uma manhã gelada de inverno. A senhora Eleanor, que havia sido sua governanta nos últimos meses, jogou um pequeno buquê de flores violetas. 

Teria ele encontrado mesmo o caminho de retorno para a mortalidade e a partir dali envelheceu e esperou por sua morte, pela paz eterna? Não sabemos...

O que descobri pela leitura do velho jornal amarelado pelo tempo é que seu funeral foi breve e rápido. O padre disse algumas breves palavras. Viemos do pó e ao pó voltaremos. Depois todos se cumprimentaram e deram as costas, deixando Louis para a eternidade. 

E os flocos de neve começaram a cair suavemente em seu ataúde preto com detalhes dourados...

Pablo Aluísio.

O Vampiro de Versalhes - Parte 7

O Livro de Sangue
Londres, 19 de janeiro de 1890
Prezada Estefânia,
Como você pode prever, estou de volta e continuo em Londres. Não por causa de assassinos em séries deselegantes, que mais parecem açougueiros de bairros sujos, mas pela simples razão de que encontrei uma boa amizade na cidade. Estou apreciando a companhia de Lord Lancaster, um homem fino e elegante que tem proporcionado à minha pessoa momentos de prazer, pois é um daqueles lords britânicos com ótima conversação. 

Já é um senhor idoso, já passou dos 80 anos, mas penso que tem mais de 500 anos! Ok, você não acredita quando falo que sou um vampiro, porque, como você mesmo não cansa de repetir em suas cartas, vampiros não existem! Tudo bem, respeito seu ponto de vista, mesmo que ele esteja errado. Então imagino agora sua expressão ao ler essa linhas, pelo simples fato de que agora vou afirmar que não apenas eu sou um vampiro, mas meu nobre colega, Lord Lancaster, também é! 

Ele é seguramente um dos vampiros mais antigos da Europa. Um ser que já enfrentou todos os tipos de perseguições e batalhas. Um sobrevivente de nossa classe. Ele não abriu o jogo logo que nos conhecemos. Fui até sua bela casa de interior para tentar adquirir algumas peças antigas, mas acabei me tornando de fato seu amigo. E após muitas noites de diálogos mais do que prazerosos, onde conversamos sobre tudo, de arte a antiguidades, de religião, filosofia, passando até por gastronomia, ele finalmente me contou que era, assim como eu, um vampiro... 

Na verdade ele só me contou tudo porque descobriu antes que eu era uma criatura da noite. Deixou pequenas armadilhas para confirmar suas suspeitas e teve todas as provas de que necessitava. Foi até um momento de puro humor negro britânico quando finalmente nos olhamos e nos deixamos levar pela confissão maior de nossa raça...

- Sim, eu sou um vampiro! - confessei, dando de ombros... Um leve sorriso irônico acompanhou a frase, além do olhar para os lados, afinal o que mais eu poderia fazer naquele tipo de situação?

- Então somos primos, meu amigo! - Disse Lord Lancaster levando ao alto sua taça...

Rimos muito naquele momento... risos sinceros... eu estava mesmo precisando de algo assim...

E assim finalmente relaxamos. Entre as coisas importantes que ele me contou está a existência de uma antiguidade cobiçada pelos vampiros europeus. Trata-se de uma antiga publicação conhecida apenas como "O Livro de Sangue". 

Provavelmente foi escrita e confeccionada na Idade Média. O Lord Lancaster me disse que provavelmente é um livro que data entre 520 a 530 da era comum. Ou seja, tem quase 1500 anos de existência!

Historiadores especializados em Idade Média porém acreditam que esse livro pode ser muito mais velho. Essa fata inicial é apenas a referência do primeiro registro histórico de sua existência. Trata-se de um documento da Igreja Católica. O livro havia sido achado na cabana de uma senhora que estava sendo acusada de bruxaria. 

Ela foi morta na fogueira, pobrezinha, mas o livro acabou sendo levado para o Vaticano. Curiosamente esse precioso e raro livro acabou sobrevivendo às chamas das grandes fogueiras onde a Igreja lançava os livros que entendia ser blasfemos e hereges. Até hoje se discute porque a Igreja não destruiu o livro...

Lord Lancaster acredita que o livro trazia informações preciosas e importantes para o clero católico, informações que ajudariam a Igreja a lutar contra as forças do mal. Por isso seu original foi preservado, para estudos e aprofundamentos por parte dos chamados estudiosos do alto clero do catolicismo.

Como um expert em antiguidades daria tudo, mas tudo mesmo, para colocar minhas mãos nessa preciosidade da literatura medieval. Seria uma peça de extremo valor em minha coleção particular. Eu estava disposto a estudar cada linha de suas páginas, cada detalhe de sua produção medieval. Fiquei muito empolgado ao saber de sua existência!

O Lord Lancaster então me deu uma informação importante. 

- Vá para Madrid, conheça o vampiro Valentino, ele sabe por onde começar suas buscas. Vou lhe escrever uma cartão de recomendação, ele o receberá bem...

E assim foi feito. Lord Lancaster foi mais do que um amigo, foi uma descoberta maravilhosa. Ninguém poderia pensar que um inglês e um francês pudessem se dar tão bem. Estamos acima desse tipo de bobagem de patriotismo. 

Fiz minhas malas imediatamente. Já sabia para onde iria viajar em seguida, após deixar Londres para trás...

Maximilian. 

O Vampiro Valentino
Madrid, 1 de Fevereiro de 1890
Querida Estefânia,
Estou finalmente nessa bela cidade espanhola. Parece minha querida Paris, há arte e história em todos os lugares para onde se olha. Os velhos monumentos, os antigos prédios do passado, tudo ainda está de pé. Deveria ter vindo nessa cidade há muitos anos. Fiquei realmente maravilhado com a arquitetura, com as pessoas, com tudo. Madrid brilha de noite, é uma visão magnífica. 

Há muitos motivos para se conhecer tão belo lugar, mas no meu caso, estou aqui para conhecer Valentino. Quero informações sobre o livro de Sangue, penso que ele, por indicação do Lord Lancaster, poderia me ajudar nessa busca que agora se tornou um tipo de boa obsessão pessoal de minha parte. Temos que ter bons motivos para continuar em frente. Arranjei um novo e muito bom. Está me motivando como há muito tempo não acontecia. 

E afinal quem seria esse Valentino?

Valentino era bem conhecido nos meios obscuros das ruas sombrias da velha Europa. Não se sabe ao certo suas origens. Das informações que obtive, vou aqui deixar um pequeno resumo de suas trajetória. Assim que se tornou um ser da noite ficou obcecado por sangue de lindas virgens. Por seu sotaque e forma de agir ele provavelmente tinha origem além-mar, talvez no distante e exótico Norte da África. Isso talvez explique uma das formas como é conhecido, ou seja, o mouro! Só que Valentino não falava sobre seu passado, como se escondesse algo trágico. E quando não se fala muito sobre o que passou, se abrem janelas para especulações.

Valentino era um vampiro antigo, provavelmente trezentos anos. Dizia-se que havia sido mercador de escravos. Outras fontes diziam que havia criado uma rede de masoquismo no novo continente, o que fez com que fosse perseguido pelos colonos. De uma maneira ou outra, por volta do século XVII ele finalmente subiu em uma velha nau holandesa de madeira e foi para a Europa. 

Essa estranha figura se instalou inicialmente em Lisboa, onde abriu uma taverna que só funcionava a partir do crepúsculo. Ali, dizia-se (sempre muito boatos envolvidos) que ele mantinha uma casa de tolerância com beldades inglesas que importava para Lisboa. Esse vampiro - sim, eu sei do que estou falando - tinha mesmo preferência por mulheres jovens a quem podia sugar o sangue, participando de orgias sexuais sem fim.

A vida devassa e inescrupulosa de Valentino fez com que muitos cruzassem seu caminho. Havia um código de ética entre vampiros europeus e essa sombra noturna estava violando todas essas regras não escritas. Havia rumores que Valentino estaria transformando algumas de suas jovens em vampiras, o que ia contra todo o protocolo de comportamento de um nobre bebedor de sangue humano. 

Fui até onde ele morava. Eu que havia vivido na luxuosa corte de Maria Antonieta, achei seu cabaré  um verdadeiro horror estético. Com cortinas vermelhas escuras, clima de pura decadência moral, não era o lugar adequado para se levar alguém de bom gosto e refinamento. Era sem dúvida um ambiente vulgar!

Valentino sentava-se ao centro do grande salão e comandava suas prostitutas de inferno. Logo percebi que pelo menos duas ou três delas já estavam transformadas. Um absurdo, transformar aquelas mulheres em nobres de sangue. Ele obviamente deveria ser punido.

Valentino havia cruzado um limite. E eu sabia que deveria eliminá-lo depois daquela noite. Mas antes disso, precisava de informações. Fui até onde ele se encontrava e apresentações formais foram feitas. Devo dizer que não gostei de sua presença, não gostei de seu modo de agir. Isso iria facilitar depois quando eu resolvesse lhe atacar...

Ele era alto, tinha cabelos longos ao estilo Louis XIV. Vestia-se bem, mas era facilmente perceptível que não trocava muito a roupa. Parecia suja e surrada. Suas unhas e dedos das mãos eram extremamente grandes. Nos dedos muitos anéis. Parecia um cigano que havia perdido o caminho da volta de seu clã. 

- Então você quer saber sobre o Livro de Sangue? - Perguntou Valentino com olhos semicerrados...

Ele havia acabado de ler a carta de recomendação que Lord Lancaster havia lhe escrito. Acredito que só falou comigo por causa disso. Parecia arrogante e nada amistoso com desconhecidos. 

- Sim, gostaria de saber onde poderia encontrar essa raridade... - Respondi, de forma educada, mas sem exagerar muito na ansiedade. 

- Olha só, por alguns anos esse livro circulou entre vampiros ricos e influentes de Portugal. O elo de conexão foi a Igreja Católica. O original pode estar bem escondido nas profundezas da biblioteca do Vaticano... Eu tive acesso a manuscritos que traziam partes e capítulos copiados diretamente do livro.. nada mais...

- E o que você leu naquelas páginas? - Eu estava obviamente curioso...

- O livro está escrito em latim, mas em uma linguagem mais influenciada também por línguas dos reinos bárbaros que começavam a destruir o poder do império romano...

Ele deu uma pausa e bebeu um pouco do cálice vermelho...

- Basicamente, das coisas que li, era um tipo de alquimia do sangue. Prometia, entre outras coisas. desfazer o vampirismo... Tornar um vampiro em mortal novamente... uma espécie de cura...

Valentino não parecia muito convencido...

- Acho que são velhas bruxarias sem muito valor. Crendices talvez... mesmo que alguns vampiros influentes em nossa comunidade acreditem naquelas velhas palavras medievais... Eu não faço parte desse grupo. Eu achei tudo apenas fantasia. Pensamento mágico, se é que você me entende...

Esse foi um primeiro encontro. Valentino me convidou a ir mais vezes em seu leito de festas e orgias eternas. Era assim que ele parecia querer existir, cercado de belas mulheres nuas fazendo sexo. Cada um sabe o que lhe convém...

Houve uma grande surpresa na noite em que retornei naquele recinto. Todas as noites um baile Dantesco era realizado, onde todos os convidados ficavam completamente nus. Era engraçado e mórbido nas mesmas proporções. Nada excitante em meu ponto de vista! Certo, as mulheres propiciavam uma bela vista, pois eram mulheres bonitas, de seios fartos. Já os homens, gordos e de barrigas salientes, destruíam a imagem global daquele festim de horrores. 

E no bordel de Valentino havia dois tipos de homens. Os ricos estavam ali para depois realizar favores de corrupção para aquele ser da noite. Já os pobres e mais jovens seriam seu jantar, já na alta madrugada. Afinal Valentino também não tinha reservas de apetite para sua sede de sangue humano. Ele queria se alimentar todas as noites. Do excesso, ele tornou seu estilo de vida.

Eu fiquei em sua mesa, olhando ao redor, mas sem participar da festa. Ele apenas ficou olhando pelo canto do olho enquanto tomava um vinho do Porto de boa procedência. Valentino se aproximou e quis conhecer aquele cavalheiro estranho que ele nunca havia visto. Pelo seu sentido de ser da noite sabia, mesmo que de forma inconsciente, que eu era um de seus pares. 

Ele ficou curioso comigo, com aquele nobre sotaque francês antigo. Algo soava no ar, um estranho clima de doce veneno. Aqueles seres sabiam que em pouco tempo haveria um jogo de vida e morte prestes a começar sob a luz da lua cheia.

Mas antes disso ele se virou em minha direção e disse: 

- Procure pelo cardeal Alfredo de Bragança em Lisboa. Ele sabe tudo sobre esse livro que você está procurando. Eu tive um certo interesse por ele, mas depois de algum tempo deixei tudo de lado. A Igreja tem todas as respostas que você precisa...

Ele foi sincero naquele momento. Era algo que eu sempre suspeitei. Mesmo com o passar dos séculos, o Livro de Sangue ainda estava de posse da Igreja Católica Apostólica Romana. Isso me lembrou de uma velha frase espirituosa que dizia: "Eu não acredito em Deus, mas acredito na Igreja.." Aquela velha instituição religiosa tinha mesmo muitos segredos milenares. 

E assim descobri que teria que viajar mais uma vez, dessa forma fui até a estação. Portugal era o meu novo destino...

Abraços cordiais,
Max. 

Pablo Aluísio.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Vampiro de Versalhes - Parte 6

Londres, 1888
Um dos escritos mais interessantes do Lord Vampiro se refere a Jack, o Estripador. Isso mesmo, o infame assassino em série que colocou a Inglaterra em pânico com seus crimes em plena era vitoriana. Colocarei aqui as impressões de Maximilian na íntegra, a seguir. O texto foi retirado, mais uma vez, de uma de suas cartas enigmáticas. 

Pierre, Historiador.  

Londres, 16 de agosto de 1889
Prezada Estefânia,

Em 1888 eu fui até Londres. Quando estava em Paris soube que havia um assassino insano nas ruas da cidade, em um bairro pobre, cheio de prostitutas, chamado Whitechapel. Em um primeiro momento pensei se tratar de um membro da minha linhagem, um desgraçado chupador de sangue, que havia enlouquecido, matando e estuprando mulheres que eram conhecidas como desafortunadas, mulheres pobres, com problemas de alcoolismo, que vagavam pelas ruas e ofereciam seus corpos a quem estivesse interessado. Pobres mulheres perdidas nesse mundo vil e violento. Devo dizer que senti pena delas. Imagine ser uma mulher pobre, sem recursos sequer para provir sua alimentação diária. Precisando se prostituir para sobreviver. Até a dignidade de uma mulher é perdida em uma situação tão triste como essa! 

Infelizmente, para meu infortúnio, descobri que as mortes tinham cessado quando finalmente coloquei os pés naquela cidade suja, sempre com céu nublado e muita neblina asfixiante. Apesar de todo o glamour e pompa da rainha Vitória, devo dizer que viver ali naquela pocilga não era a melhor coisa do mundo. Sempre preferi o belo litoral do sul da França, isso apesar de, como é óbvio, não poder desfrutar das praias ensolaradas daquela região. Mas voltemos, voltemos, porque tenho uma revelação a fazer. Muito provavelmente ninguém vai resgatar esses meus escritos das areias do tempo, mas vou escrever, porque hoje é uma noite particularmente sombria.

O verdadeiro Jack, o Estripador era um pobre coitado corroído pela doença mental chamado Aaron Kosminski. Ele era um imigrante polaco, de origem judaica, que foi para Londres atrás de seu irmão mais velho que abriu um pequeno comércio de vendas de roupas para mulheres. O Aaron era o filho mais jovem dessa família. Ele foi criado sem pai, pois esse morreu muito cedo. Os judeus sofriam forte perseguição na Polônia. Por isso parte da família Kominski se mudou para a Inglaterra. Lá eles mudaram seus nomes para Abrahams. Primeiro porque era mais fácil de pronunciar na língua. Segundo, porque eles tinham medo de serem reconhecidos como judeus que eram. O medo era grande naquela época. O preconceito contra judeus era o normal. Eles meio que se escondiam para tentar sobreviver dentro daquela sociedade de castas. 

Aaron Kosminski matou aquelas mulheres porque estava em surto psicótico. Ele tinha esquizofrenia e iria passar o resto de sua miserável vida em um hospício imundo. Ele nunca escreveu aquelas cartas para a polícia de Londres se auto denominando Jack, o Estripador. Ele era analfabeto. Quem escreveu as cartas foi um jornalista que queria afinal de tudo vender jornais. Era o seu negócio. Penso até que esse louco do Kosminski sequer sabia o que estava fazendo. Ele não tinha consciência de seus crimes. Quando cheguei a Londres fui com o objetivo de trucidar o assassino Jack, mas quando descobri a verdade, simplesmente desisti. Não valia a pena. Eu tive pena e nojo dessa criatura.

Os judeus de Londres sabiam que Aaron Kosminski era Jack, mas esconderam a verdade. Por qual razão? Eles tinham receios que uma onda de violência contra judeus iria explodir depois que a verdade fosse espalhada. Por isso decidiram resolver a questão de uma forma menos escandalosa. A família de Aaron Kosminski o levou até um hospício e de lá ele nunca mais saiu. Morreu pesando 30 quilos, completamente louco, envolto em sua própria mente doentia. E isso foi tudo. Queria saber quem foi Jack, o Estripador? Está aí toda a verdade, pobre mortal...

Nas cartas você me faz diversas perguntas sobre Deus! Qual Deus, eu devo perguntar. Sim, porque ao longo da história muitos deuses foram criados pela mente humana. Centenas deles, milhares de deuses. Esse tipo de deus mais abstrato que você e sua família ocidental certamente seguem é uma invenção cultural recente, minha cara. Os deuses da antiguidade não eram seres abstratos. Pelo contrário, eles eram bem concretos. Desciam do monte onde habitavam, seduziam as mulheres, faziam sexo com elas, tinham filhos, etc. O deus da antiguidade tinha que ser viril, guerreiro, sexualmente ativo, caso contrário seria considerado um fraco e não seria seguido por absolutamente ninguém. 

Esse Deus (com D maiúsculo) que é seguido pelo mundo ocidental era, em seus primórdios, um típico deus da antiguidade. Ele tinha cabeça bovina, corpo humano e um pênis gigantesco que usava para arar a Terra, trazendo alimento e vida para todos os povos que viviam na Judéia nos tempos antigos. E o "Deus" também tinha nome. Ele se chamava Yaweh. A maioria dos cristãos nunca ouviu esse nome, no máximo conhecem o nome latinizado Jeová. O mesmo aconteceu com o próprio Jesus que aliás não se chamava Jesus. Seu nome real era Yeshua. Espero que um dia as igrejas tragam de volta os nomes verdadeiros desses seres supostamente divinos. 

Então, estou escrevendo tudo isso, para deixar claro que os deuses são invenções humanas, produtos culturais. Essa coisa de deus único também não é novidade na história. No Egito antigo já havia surgido um faraó muito louco que baniu todos os deuses do Egito e decretou que a partir dali só haveria um deus, o deus Sol, o círculo solar. Em minha opinião a ideia de monoteísmo que depois iria invadir o Judaísmo veio justamente dai. O faraó Aquenáton fez escola e em termos de pensamento religioso foi um dos homens mais influentes da história. Ainal, os judeus estavam escravizados no Egito e certamente conheceram toda essa revolução religiosa que surgia naquele momento.

Então é isso. Deus não salvou aquelas pobres mulheres da mão de Jack, simplesmente porque ele não existe. É um pensamento aterrorizador para determinadas pessoas, eu sei. Outras vão dizer que cheguei nessa conclusão porque afinal sou um vampiro e esses são seres do mal... aquelas coisas... mas eu não acredito no deus bovino e nem no diabo caprino. Tudo soa apenas como mitologia em meu entendimento. 

Abraços bovinos do amigo,
Max. 

Estrasburgo

Estrasburgo, 2 de janeiro de 1889. 

Querida Estefânia, 
Eu lhe escrevo para contar minhas últimas novidades. Recebi sua carta no último fim de semana e decidi responder, afinal sou um cavalheiro. Lamento muito saber que você andou doente. Eu sei que você não acredita em mim quando digo que sou um vampiro. Você ri e faz graça. Tudo normal, eu também dou minhas risadas noite adentro. Só que bem sei que nunca ficarei doente como você, pois vampiros são imortais e também super saudáveis, mesmo sabendo que algumas pessoas acreditam que estamos mortos! Eita gente sem noção! 

Estou no momento nesse bonita cidade na fronteira com a Alemanha. Há meses fico na dúvida se devo ultrapassar a fronteira. Não gosto muito da cultura alemã, nem de sua culinária. Na dúvida fica onde estou, curtindo o tempo passar, enquanto faço mil planos.

Viver, de certa maneira, é fazer planos. Alguns dão certo e outros dão terrivelmente errados. Soube que você se casou com aquele sujeito. Olha, vou ser indelicado. Aquele não é homem para você. Além de já ter traído sua confiança, é um homem sem estudos, sem formação cultural. Fruto de uma cidadezinha do interior, rude e desprezível. Penso que ele vai ser um estorvo por toda a sua vida. Você vai carregar esse indíviduo nas costas, por toda a vida. Ele até pode ser bonito no momento, mas o tempo vai passar. Ele vai ficar gordo e tudo o que vai sobrar em sua vida é um homem ignorante e estúpido que você vai sustentar. Estou sendo rude? Pode ser, porém não tão rude como será seu casamento com ele. Essa é minha opinião sincera. Lamento dizer.

Espero que não corte os laços de amizade que tenho com você após escrever essas linhas que, admito, são brutalmente sinceras...

Em relação a mim, adotei a solteirice completa. Ser solteiro é ter liberdade. Hoje estou aqui, amanhã... não sei. Possa ser que acorde e decida fazer uma viagem. Ninguém vai ter nada a ver com isso. Não terei que dar explicações a ninguém. Tenho uma amiga. Ela reclamava de que seus pais a prendiam muito. Então se casou precocemente "para ter liberdade". Pobre mulher! Saiu das algemas de pais opressivos para uma nova jaula, agora controlada pelo marido. Triste destino. O homem solteiro vive por si. Tem suas próprias aventuras. Curte a noite, saboreia o luar. Casamento é uma das piores invenções humanas. Aprisiona em correntes, quase sempre enferrujadas. É um contrato. E como todo contrato a pessoa só assina se quiser. Prefiro não colocar minha assinatura em um papel desses. Prefiro ter minha carta de alforria sempre debaixo do meu braço.

Sobre os amigos dos tempos da juventude, estão mortos. Os que conseguiram sobreviver à matança da revolução francesa, tiveram um fim de vida muito miserável. Devo dizer que sinceramente falando muitos deles eu apenas suportava. Era muita conversa vazia sobre nada. Você descobre o quão um homem é vazio pelo teor de suas conversações. Se ele só fala em tolices e futilidades, pode ter certeza que há um idiota na sua frente. A maioria dos que conheci em Versalhes eram assim. Uma gente bem decepcionante, devo confessar. 

Os suportava na época da nobreza, mas agora não preciso mais suportar aquela gente. Com a revolução fiquei livre de todos eles! Tinha que existir alguma coisa boa no meio de toda aquela atrocidade, não é mesmo? Quando a revolução destruiu o sistema e classes sociais privilegiadas os nobres que sobreviveram à guilhotina ficaram sem ter como sobreviver. Eles não sabiam fazer absolutamente nada! Nunca tinham trabalhado na vida, eram uns inúteis em termos de trabalho e tirar o sustento com o suor do próprio rosto. Muitos acabaram se matando pois não conseguiam nem plantar batatas para ter o que comer. Em um dia eram condes, viscondes, barões. No outro dia se tornaram mendigos de rua. Realmente é algo que a mente humana não consegue absorver. 

E pensar que dez anos após a revolução um velho conhecido me enviou uma carta de Toulouse me convidando para uma reunião de velhos amigos. Deus me livre de um destino desses! Não quero... não quero... não desejo mal nenhum para aquelas pessoas, mas ao mesmo tempo também não quero eles por perto. Aguentar aqueles anos de sua companhia já foi o bastante... Eu era jovem e tolo, então nem percebia a inutilidade de tudo aquilo. Hoje só sento para conversar com quem tem algo interessante a dizer. Falar sobre cultura, artes e filosofia. Todo o resto me parece tempo perdido. Então é isso minha cara amiga. Desejo tudo de bom para ti e suas filhas!

Abraços de seu eterno amigo.Maximilian. 

Pablo Aluísio. 

O Vampiro de Versalhes - Parte 5

Sobre a Vida (ou a Morte)
Normandia,  2 de março de 1883
Faz mais de um ano que deixei Paris. Eu sempre amarei essa cidade, estará sempre em meu coração, mas devo seguir em frente. Algumas vezes percebemos que o ambiente está saturado, que não há mais como respirar em determinados lugares. Não é a cidade em si, mas as pessoas que moram nela. Dentro de duas ou três gerações eu poderei voltar, quem sabe, quando todos esses moradores estiverem com a morada nas catacumbas da cidade. Simplesmente não quero ver mais essa gente. 

Aliás já parou para pensar que a maioria das pessoas que habitam suas lembranças nem existem mais? E não estou falando apenas de pessoas que morreram, mas também das pessoas que mudaram sua aparência. Sabe aquela paixão da adolescência? Esqueça! Ela é outra pessoa agora, muito provavelmente completamente mudada. As pessoas mudam. Por isso as suas lembranças são povoadas de pessoas que simplesmente não existem mais. Eis uma realidade. E nem precisa ser imortal para bem entender isso. 

Ora, daqui cem anos ninguém mais saberá quem você foi. Isso se você for uma pessoa comum e não o Alexandre, o Grande, ou o Júlio César. Esses sempre serão lembrados pela história. Mas você aí, que tem um trabalho simples, que leva uma vida bem anônima, não se engane, uma ou duas gerações após sua morte ninguém mais se lembrará que um dia você exisitu. A vida é muito efêmera, muito passageira. A maioria das pessoas, a imensa maioria dos seres humanos, não importa muito. O tempo, senhor de tudo, jogará as areias dos anos sobre suas lembranças. Nem seus parentes distantes saberão que voce um dia existiu e isso é tudo. Faça o teste. Procure se lembrar de seus antepassados de três ou quatro gerações passadas. Não vai dar... Eles foram esquecidos. Lamento. 

E não me venha com histórias envolvendo a imortalidade da alma. Isso não existe. O conceito de Alma foi inventado pelos gregos. Nem os judeus antigos, do velho testamento, sabiam o que era alma. Se algum religioso lhe ensinou o contrário, saiba que ele lhe enganou, ou por ser um picareta mesmo ou por ser um ignorante. As duas situações não são nada boas! 

O conceito de Alma é puramente filosófico. Os gregos eram mestres em filosofia, em pensamento abstrato. Então diante da efemeridade da existência eles criaram um pensamento que trouxesse algum conforto para pessoas que estavam vivendo o luto. No conceito de Alma ninguém morrerá jamais. A Alma do seu parente morto viverá para sempre! É um pensamento que reconforta, mas que também não tem base nenhuma na esfera da ciência. 

E por falar em religião as pessoas comuns pensam que os vampiros são seres religiosos que acreditam em céu e inferno, que são seguidores do Diabo e tudo mais. Que bobagem! Sabe aquela história boboca de que um vampiro sempre sairá correndo quando confrontado com uma cruz cristã? É uma grande lorota disseminada pelos livros góticos. 

Durante praticamente toda a minha existência vivi trabalhando como especialista em antiguidades, inclusive peças e obras de arte religiosas. Nunca aconteceu nada comigo, nunca me fizeram mal nenhum. Pelo contrário, sou até admirador de arte sacra, vejam só! E tomei gosto por arte antiga, tanto que continuo trabalhando como antiquário, mesmo sendo podre de rico com a fortuna da condessa russa. E você pode se perguntar porque ainda faça esse trabalho? Bom... é um hobbie dos mais agradáveis... Adoro colocar as mãos em peças antigas, estudá-las, catalogar uma coleção. Isso é cultura, é arte. Nada mais prazerosos do que lidar com esse tipo de coisa. É um dos prazeres da minha existência. 

Então tudo o que se lê nos livros e se vê nas peças teatrais é pura mentira? Nem tanto. Temos problemas com a luz solar. Eu não posso andar pelas ruas da cidade com sol a pino, no calor do meio-dia. Se eu fizer algo assim certamente vou queimar até os meus ossos virarem pó. Não sei a razão. Provavelmente o vampirismo seja alguma modificação genética causada por algum tipo de vírus. Eu não sou cientista, mas tenho vontade de estudar o tema. O problema é que a maioria dos cientistas acredita que essa coisa de vampiro é pura cultura pop, que não passa de folclore. Ninguém pode condená-los por pensar assim. Esses conceitos todos são bem absurdos, vamos ser bem sinceros nessas linhas.

E aqui entro, mesmo que brevemente, na questão alimentar. Veja, em minha existência não preciso de uma montanha de corpos humanos ao meu redor. Isso seria intolerável. Nada é mais complicado do que se livrar de um corpo humano. Pesam demais, começam rapidamente a cheirar mal. Um horror estético, devo dizer. É a parte de ser um vampiro que menos aprecio. Um único ser humano alimenta um vampiro equilibrado por cerca de 30 dias. Numa continha rápida, só preciso me alimentar 12 vezes ao ano, algo que sigo na regra, na risca, sem exageros. 

E também não gosto de caçar muito os seres humanos. Basicamente sou um oportunista da noite. Não fico fazendo emboscadas, só quando odeio minha presa. Na maioria das vezes apenas fico ciente que está chegando o dia que devo me alimentar e vou ficando mais atento com as oportunidades que a noite traz. 

Não adiante sair matando, causando caos nos lugares e cidades por onde se passa. Pelo contrário. Quando me fixo em algum lugar prefiro me alimentar na cidade vizinha ou em outras regiões. Não quero a polícia me investigando, me cercando. 

E também jamais ataco pessoas que conheci recentemente ou que se mostraram boas amigas. Não subestime o poder de uma amizade, principalmente envolvendo pessoas do interior. Você sempre vai precisar de alguma ajuda, de algum serviço. Por isso trato todas essas pessoas muito bem, de forma sincera. Não são meu alimento. São pessoas que merecem respeito e dignidade. 

Acredite em mim, no fundo eu sou um cara legal...

Maximilian,

Os livros, Os Deuses e as Mentiras...
Normandia, 20 de abril de 1884
Olá bela Estefânia, 
Então, você escreveu me pedindo conselhos sobre comprar aquela bela residência nos arredores de Paris. Eu lhe digo que aquela seria, sem dúvida, uma bela aquisição para seus bens imóveis. Lugar bonito, solar, mas que fica essencialmente belo nas noites de lua cheia. Inclusive fiquei tão interessado nessa bela casa que permita-me a ousadia, se você não comprar essa casa, eu o farei, com enrome prazer. Preciso de um lugar fixo para morar. Um belo lugar para passar os dias e as noites sem fim da minha existência. O tempo, penso eu, pode ser infinito. Então que fiquemos por anos e anos em um belo lugar para se viver e quem sabe, em um dia qualquer, morrer...

Eu quero um novo recomeço em minha existência. Os dias de loucos parasitas ficaram para trás. Se há algo que aprendi nessa minha vida é que os livros engrandecem o homem. A busca pelo saber e pela sabedoria é o grande desafio. Oh, como eu tinha uma vida tola! Agora... novos tempos, novos desafios...

E essa bela casa, prezada senhorita, tem uma bela biblioteca, com coleções e mais coleções de livros raros. Só aqueles livros já dariam uma boa quantia caso fosse de seu desejo vendê-los. Eu não o faria. Sempre fui um leitor convicto, adoro ler, por isso não me furtaria a passar horas e mais horas prazerosas a me afundar naquelas páginas amareladas pelo tempo. A sabedoria, por outro lado, nunca ficará obsoleta ou envelhecida. Pelo contrário, o tempo traz a força dos anos passados. Um livro que jamais perde sua força é a maior prova de existência em suas páginas de muita sabedoria de vida de seus autores. Eu adoro ler livros antigos. Eu compraria a casa apenas pela coleção de livros que ali estão. 

Você me pergunta em sua carta sobre aquela edição muito antiga da Bíblia de Gutenberg. Analisei a obra com todo o cuidado e posso lhe garantir, é uma edição legitima, real e vale alguns milhões. Tudo nela está correta, em minha opinião. Há pequenos detalhes que comprovam sua veracidade. A forma como foi confeccionada, o estilo das letras imprensas, as costuras das páginas, a própria capa que sobreviveu ao tempo, tudo comprova que é mesmo uma edição histórica dos tempos em que foi editada. 

Talvez os atuais donos daquela preciosidade nem saibam do que ela se trata. A ignorância parece prevalecer nos dias de hoje e os ricos atualmente são tão ignorantes! E são por conta própria pois não procuraram pela cultura, pelo saber. Não existe nada mais embaraçoso do que uma pessoa extremamente rica e extremamente ignorante, boçal! Quero mais é distância desse tipo de gente. 

Em relação a Bíblia em si, eu não gosto da forma como foi montada. A Bíblia foi escrita em forma de rolos de textos, livros independentes. Nunca passou pela cabeça desses antigos escribas que a escreveram, por volta de seis ou cinco séculos antes de Cristo, que esses velhos livros, tão diferentes entre si, iriam se unir em um único livro chamado Bíblia. Isso é até mesmo um absurdo!

Esses textos tinham personalidade própria, estilos próprios, autores dos mais diversos. Entre um livro e outro inclusive decorreram séculos de diferença. Então o que hoje se chama Bíblia nada mais é do que um absurdo editorial que inclusive é rejeitado pelo povo que o escreveu, o povo judeu. Eles conhecem os textos por si. O resto é invenção de cristão boboca e sem cultura. 

O Velho Testamento é muito mal escrito. Fruto de uma época muito remota da história. Não é culpa dos escribas que escreveram esses textos. Eles apenas não tinham as ferramentas necessárias. Os textos mais antigos não contavam sequer com as vocais! Não tinham sido criados pela humanidade, imagine você! Já o Novo Testamento é coisa de grego nos tempos da era romana. Eram bem mais preparados intelectualmente e criaram uma teologia que, ao meu ver, é pura mitologia, mas que apresenta um pensamento coeso, bem criado. Eram autores inteligentes, abstratos e versados em filosofia. Deu no que deu...

O próprio conceito de sacríficio humano do Jesus na cruz, limpando os pecados do mundo, é bem inteligente. Ele foi o cordeiro máximo! O mesmo vale para aquela coisa toda de ressurreição. O medo da morte atormenta a vida dos seres humanos desde as eras mais primordiais. Ter uma teologia que pregasse a vida eterna, onde o cristão iria vencer até mesmo a morte, era algo absolutamente revolucionário e do ponto de vista humano, algo absolutamente irresistível. O sucesso do cristianismo vem desse pensamento sutil, que conquista corações até os dias atuais...

Eu penso que Jesus foi um homem real que viveu mesmo na Judéia ocupada pelos romanos. Só que ele tentou subverter a ordem política e se deu mal. O termo Messias era usado naqueles tempos como um título de luta política e não espiritual. Messias seria aquele que iria expulsar o invasor romano das terras dos judeus. Apenas isso. Depois ele governaria como um Rei. Não deu certo e ele foi morto na cruz. Não houve ressurreição pois ninguém jamais ressuscitou na história, mas ainda assim devo dizer que a teologia que foi criada em torno disso é algo, como eu disse, bem sutil e inteligente. Acabou criando a maor religião da história. 

Culturalmente estou mais interessado atualmente em livros de economia. Não se engane, a principal motivação dos seres humanos é econômica. Os casamentos, a formação de famílias, as sociedades, as uniões afetivas, tudo passa por fatores econômicos. Os trabalhadores, que geram toda a riqueza, vivem na mais completa pobreza. Uma classe de novos burgueses, sugam toda a riqueza da nação. Nisso sempre concordaram os grandes mestres dessa nova ciência interessante, a economia.

Mas enfim, fica assim minha avaliação. Compre a casa e cuide muito bem de sua rica biblioteca. 

Abraços, 
Maximilian.