sábado, 12 de dezembro de 2009

O Lobo da Escócia - Parte 1

Prólogo - Nos Tempos Romanos
Sempre existiram lendas e mitos nas terras altas escocesas. O clima frio e hostil e aquelas terras onde ninguém morava dava mesmo margem para o aparecimento desse tipo de história. Já nos tempos em que as ilhas britânicas estavam sob dominação romana, se dizia que nenhum legionário do império deveria subir muito ao Norte pois a morte o encontraria de forma certeira. Isso impressionou os comandantes romanos que apesar de formar uma casta de homens bravos, não se encorajavam a ponto de enfrentar forças sobrenaturais que eles não conheciam. 

Nessa época remota surgiu a história de Lupus, um monstro, meio homem, meio lobo. Dizia-se entre os romanos que certa vez uma patrulha foi muito ao Norte e acabou se perdendo naquelas terras sem fim. Com a chegada da noite, eles precisaram levantar acampamento para no dia seguinte tentar voltar para sua legião. Entretanto isso não iria acontecer. 

Não se trataria de um lobo selvagem comum, nada disso. Estava mais para um ser sobrenatural. Os romanos já tinham se deparado com esse tipo de lenda quando entraram nas florestas geladas da Germânia. Os povos bárbaros que lá habitavam diziam que existia uma entidade meio homem e meio lobo que vivia dentro das florestas mais escuras e que nenhum ser humano deveria adentrar seu território pois isso iria contra a vontade dos deuses. 

A velha lenda era interessante. Quatro soldados romanos acabaram em uma região aberta, perto de um lago de águas cristalinas. O lugar era bonito, afastado e selvagem. Não havia alma viva por perto, em quilômetros de distância. As altas montanhas ao redor deixavam claro que aquele era um penhasco de muitos ventos. Vento frio, de gelar a alma de qualque mortal. E os romanos não estavam definitivamente prontos e nem vestidos adequadamente para aquele tipo de clima feroz. Sem dúvida era necessária uma roupa melhor, com muitas peles, para agüentar aquele frio intenso. 

Apesar da situação nada calorosa, os romanos finalmente escolheram um lugar que acharam o mais adequado. Grupo pequeno, que precisava ficar atento. Um deles ficou de guarda pela madrugada. Não adiantou muito. Lá pelas três da manhã se ouviram os primeiros uivos. Aqueles soldados sabiam muito bem como soava um lobo na noite. Só que aquilo parecia diferente, uma mistura do som natural do lobo, com crianças chorando e nítidas sonoridades de um grito humano. Era de arrepiar. 

Não tardou muito para o pior. Eles foram violentamente atacados durante a madrugada. Uma besta caiu sobre eles de forma avassaladora. Muito se comentou sobre as forças que atuaram naquele ataque formidável. Dois legionários tiveram suas cabeças arrancadas, seus elmos destruídos. Um outro ainda tentou fugir em disparada, mas parou ao sentir que longas garras entravam em suas costas, arrancando seu coração. Um barbarismo como nunca se viu!

Nem o fato de estarem portando armas mortais, como espadas, lanças e escudos, ,serviu para que pudessem se defender. O ataque foi tão violento e rápido que mal conseguiram perceber o que estava acontecendo com eles! Parecia uma força vinda diretamente das entranhas do inferno. Aquele monstro não era natural, da natureza. Era algo pior, mais sujo, mais violento. De seus grandes dentes escorria uma baba pegajosa, muito mal cheirosa. Os romanos conheciam a Raiva, uma doença que atingia cães e lobos, mas aquilo era diferente. Era algo mais nocivo, mais putrefato, era o bafo da morte, o cheiro das profundezas do Hades. 

O ataque durou poucos minutos. Em questão de momentos, todos os legionários estavam mortos. Os corpos caídos ao chão foram dilacerados. Suas entranhas foram comidas com ferocidade. Aquele animal certamente estava com muita fome e não distinguia entre uma ovelha ou um ser humano. Tudo era comida e a fome era enorme. Havia também elementos de crueldade extrema, como amputações de pernas e braços dos militares. As armas ficaram para trás, no chão, sem serventia. Certamente aquele monstro era irracional. Se fosse o ataque de inimigos certamente as armas teriam sido levadas. E os romanos sabiam que havia tribos bárbaras naquela região, mas não era esse o caso.

Os romanos que chegaram no acampamento duas semanas depois ficaram chocados com o que encontraram. Restos de braços, pernas e equipamento militar espalhados por todas as áreas. A fera que os atacou não apenas tirou suas vidas, mas comeu parte de suas carnes. Canibais! Os romanos já tinham enfrentado todos os tipos de bárbaros ao longo de sua história, mas nunca tinham se deparado com nada parecido com aquilo. O comandante do grupo de resgate ficou chocado e amaldiçou o homem ou o animal que fez aquilo! Por Júpiter, nunca se vira algo assim antes!

Relatórios militares logo foram escritos e levados para a cidade eterna. Em Roma não se falava em outra coisa. Pelos becos da capital do império todos estavam comentando sobre monstros vivendo na ilha da Bretanha. Aquele lugar escuro, onde sempre parecia chover, realmente não era uma terra das mais amistosas. As lendas envolvendo monstros sempre fizeram parte da cultura romana. Dizia-se que os mares eram infestados de monstros marinhos. Só não se sabia até aquele momento que em terra também havia esse tipo de fera feroz!

Depois disso os romanos resolveram parar os avanços para o Norte. O imperador Adriano ficou particularmente chocado e mandou trazer os sábios do império para discutir sobre o assunto com ele. Estava intrigado com o que ouvira. Os sábios lhe disseram que essa história já havia sido contada antes quando legiões foram para a Germânia. Provavelmente seria o mesmo tipo de besta. 

O imperador Adriano ainda ouviu os sacerdotes dos templos de Júpiter. Eles relembraram de antigos mitos gregos como o Minotauro. O imperador tinha uma grande curiosidade sobre tudo o que dizia respeito à cultura grega. Por isso ouviu tudo de forma muito atenta. Certamente poderia ser um caminho a seguir. Provavelmente como o Minotauro aquela besta seria um castigo dos deuses contra alguma subversão dos homens que ali viviam, Os romanos apenas não tinham tido o conhecimnto de tudo o que havia acontecido. 

Finalmente depois de dias debatendo o tema com sábios e religiosos, Adriano finalmente se dirigiu ao Senado romano. Uma decisão política deveria ser tomada sobre o tema. E para isso ele precisava ouvir seus senadores. Deveria enviar mais tropas para o Norte ou recuar, decidindo que nenhum romano deveria mais colocar os pés naquelas terras amaldiçoadas, essa era uma dúvida válida naquele momento .

Adriano então sentou no centro do senado e ouviu seus senadores. Ouviu e ouviu de novo tudo o que cada um deles tinha a dizer. E levou em consideração todas as opiniões. Então ele tomou sua decisão e mandou erguer um muro para o qual nenhum romano deveria passar além. As muralhas de Adriano ainda se erguem em grande parte do Norte da Bretanha, no local basicamente onde está a fronteira entre a Inglaterra e a Escócia de nossos tempos. 

Foi uma forma de proteger seus soldados, seus exércitos. A Roma imperial estava pronta para enfrentar qualquer inimigo, de qualquer lugar remoto do mundo, mas o imperador não estava disposto a perder seus homens para feras desconhecidas, que pareciam ter uma grossa pele que resistia até mesmo a ataques de espadas e lanças. Ele não queria ir tão longe. Em se tratando da ilha da Bretanha, os romanos estavam satisfeitos com o que tinham tomado. Não era necessário ir tão ao longe daquele lugar frio, escuro e assustador. Então Adriano tomou sua decisão e editou seu decreto. Dois novos generais foram enviados até lá para a construção do muro. E ele ficou satisfeito com a decisão que havia tomado. 

E a lenda sobreviveu, pois antigos textos romanos foram encontrados contando justamente essa história. Relatórios militares que foram enviados para o Imperador em Roma. A lenda de um homem lobo que atacava e matava todos os que ousavam ultrapassar seu território. Ninguém poderia sobreviver após aqueles terríveis acontecimentos...

E o monstro seria conhecido nos séculos que viriam. Toda uma mitologia então foi criada pela literatura de terror, algumas dessas baseadas em ataques reais que aconteceram ao longo dos séculos. Ao lado de outros monstros clássicos, como vampiros e criaturas dos mais diferentes tipos, a lenda dessa fera atravessou séculos, entrou para a cultura e folclore de povos tão diversos como os do leste europeu ou da América Latina. Até mesmo povos orientais cultuaram seus monstros híbridos de lobos e homens. Pelo visto algo aconteceu no passado, sedimentando todas essas histórias que se contavam. E a seguir passaremos a contar uma delas, das mais assustadoras que se tem notícia pois foi bem documentada pelos cronistas da época vitoriana. 

O Coveiro
Estamos no século XIX. Para ser mais exato em 1873. Jack Boyd é um homem que para muitas pessoas não passa de um sujeito asqueroso. Ele trabalha como coveiro na cidade de Newtown. Lugarejo que parece nunca ter saído da estagnação, embora fosse relativamente perto da capital. Ali muitos estudantes de medicina, da classe alta, iam em busca de passar algumas noites nos bares e prostíbulos do lugar. As mulheres tinham fama de serem bonitas. Afinal mulheres bonitas que serviam nas tavernas se tornavam alvo fácil para gaviões endinheirados da capital escocesa.

Entre eles estava Mark MacAlister III, filho de uma família tradicional. Jovem de apenas 20 anos, fazendo o primeiro ano do curso de medicina. Ele não sabia, mas seu destino iria cruzar, pelas vias tortas do acaso, com o coveiro Jack. Para completar o trio de pessoas importantes naquela noite havia Katja Boyd, a jovem de aparência russa que trabalhava na taverna Devil In The Heart. Mark era louco por ela, já a tinha levado para a cama algumas vezes, mas sempre com um tipo de impessoalidade que o incomodava.

Ele sabia que aquela garçonete de corpo maravilhoso era também disponível, pronta para fazer companhia noite adentro a quem pagasse bem. Um relacionamento do jovem futuro médico com uma mulher considerada de classe inferior era algo impensável para a tradicional família MacAlister. Nem em sonho isso iria acontecer. porém Mark estava literalmente caído por Katja. Algumas vezes viajava toda a noite de carruagem apenas para vê-la. E aqui temos o primeiro elo de ligação entre o promissor estudante de medicina e o coveiro asqueroso da cidade. Katja era sobrinha de Jack.

No começo Jack passava pela madrugada para pegar a sobrinha e levá-la em segurança pelas ruas escuras da cidade. Numa dessas ocasiões conheceu o acadêmico em medicina que estava apaixonado por ela. 

- "Bem rapaz, você então vai ser médico?" - Jack perguntou acendendo seu cigarro de palha, enquanto olhava Mark com os olhos semicerrados - "Eu conheço alguns médicos da faculdade de Edimburgo" -o sorriso irônico não escondia a acidez de seu comentário. Era como se ele dissesse "Eu conheço aquela gente, aqueles porcos de jalecos brancos!". No passado Jack havia vendido corpos humanos para professores e médicos da universidade. Claro, era um crime abominável, ele vendia cadaveres frescos de pessoas pobres e indigentes para os doutores. Era uma forma de estudarem a anatomia humana com mais precisão.

A revelação obviamente chocou em um primeiro momento o jovem Mark. Era algo sinistro, porém isso numa visão das pessoas comuns, do homem médio. Ele iria ser um homem da ciência, um médico, por isso embaixo do rosto espantado havia também um pensamento racional do tipo "Eu entendo esse tipo de coisa, eu posso aceitar essa situação que para muita gente é sinistra e nebulosa". Ora, ora, Mark e Jack então decidiram tomar uma bebida. Tudo pago pelo jovem. Afinal ele queria conquistar também o tio, pensando em levar mais uma vez para cama sua sobrinha, Katja, mulher de seus sonhos mais inconfessáveis. Então ele olhou diretamente nos olhos do velho coveiro e lhe disse com convicção: 

- "Eu posso conviver com isso! Eu entendo meus colegas! Eles fizeram tal coisa pela ciência". – Sim, o jovem estudante parecia firme em seu ponto de vista. 

A noite de bebedeiras continuou até o dia seguinte. Lado a lado a fina flor da sociedade escocesa, um estudante de medicina jovem, o melhor que se poderia esperar de um rapaz. Do outro lado um coveiro, considerado um dos tipos de trabalho mais brutais e rudes que se poderiam imaginar, isso claro, sob um ponto de vista da elite burguesa e intelectual. Porém por mais diferentes que fossem acabaram se aproximando, se tornando, pelo menos naquela noite, bons amigos.

Mark gostava de beber. Embora tivesse que estar na universidade pela segunda de manhã, ele passava os fins de semana nas tavernas mais obscuras daquele lugar. Entre uma poesia e outra ele enchia copos e mais copos de whisky. Entre devaneios puxava conversas envolvendo lutas, sexo e até sobre o sobrenatural. Tudo o que ele não falava entre as elegantes e elitistas salas de aula da universidade. Afinal o ambiente universitário não abria margens para esse tipo de conversação, considerada de baixo nível, de péssimo gosto.

O coveiro Jack lhe contou algo curioso. O cemitério tinha sua própria "fauna" noturna, pessoas envolvidas com religiões e rituais pagãos de magia negra. Com a igreja pressionando os adeptos desses cultos de ocultismo só sobravam mesmo as ruelas entre os túmulos onde eles podiam fazer seus rituais macabros, durante as madrugadas escuras. Mark ficou surpreso em saber da existência desse submundo. Ele pensava até aquele momento que o cristianismo havia varrido da Europa esse tipo de ocultismo. Porém havia muito mais sobre as sombras que ele nem poderia imaginar. O velho paganismo de um passado remoto ainda existia entre a população daquela região.

Jack se referia a todos eles como "as criaturas da noite" ou "as crianças da noite", um pequeno feudo de pessoas que flertavam perigosamente com as forças do outro lado. Não as forças das luz, mas sim as forças das sombras. Jack, ás vezes, assistia tudo de longe, escondido em alguma penumbra. Havia muitas invocações, bebidas estranhas eram tomadas pelos participantes e de vez em quando alguma presença maligna chegava a ser sentida. Seus superiores tinham dado ordem para ele expulsar todos que encontrassem para fora do cemitério, mas Jack era um homem prático. Enquanto não houvesse aberturas de túmulos ou violações de corpos, ele tolerava aquela presença. Afinal, se havia alguém culpado em profanar túmulos naquele lugar era o próprio Jack, como ele já havia confessado.

Pablo Aluísio. 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O Vampiro de Versalhes - Parte 8

Ruas Sangrentas de Lisboa
Estrada para Lisboa, 2 de fevereiro de 1890
Prezada Estefânia,
Eu realmente tinha planos de matar Valentino, mas decidi que deveria ser algo bem planejado, sem pressa, tudo deveria ser executado de forma minuciosa. Para minha surpresa, enquanto tecia planos e mais planos em minha mente, soube que Valentino foi encontrado morto em sua taverna esfumaçada e escura. As investigações apontavam para uma certa mademoiselle Lisa. Essa jovem moça era uma das escravas sexuais do vampiro. Uma pessoa que sofreu atrozes torturas em suas mãos por anos e anos. Depois de muitos abusos, o caldeirão um dia iria entornar. Ela o havia matado com requintes de crueldade.

Valentino foi encontrado pelos policiais completamente calcinado. Impossível reconhecer. Porém havia dois detalhes determinantes que chamaram muito a minha atenção na noite seguinte quando li os jornais com as notícias. Em volta do pescoço dele havia um arame farpado que o prendia a um crucifixo. E em seu peito uma grande estaca havia sido fincada. Isso provava duas coisas importantes. Primeiro que Valentino estava definitivamente morto. Nenhum vampiro iria sobreviver aquele tipo de agressão com ares de culto religioso. Segundo, o mais importante, é que quem o matou sabia que estava matando um vampiro. Teria sido apenas a mademoiselle ou alguém com os adequados conhecimentos a havia lhe ajudado?

De uma maneira ou outra, comprei uma passagem de viagem para Lisboa. Era uma bonita cidade, mas o excesso de igrejas e catolicismo me incomodava muito. Nas pequenas ruas de pedras seculares sempre havia uma procissão passando, gente rezando. Para falar a verdade eu nunca havia conhecido um povo tão religioso como aquele. E isso, para um vampiro, nem era a pior parte. Ter que ficar ouvindo aquelas ladainhas, aquelas orações que pareciam nunca chegar ao final, me incomodava bastante. Era muita carolice para um vampiro velho como esse que lhe escreve.

Assim que anoiteceu subi na carruagem e fui embora rumo ao meu destino. Essa seria a última vez que iria fazer uma longa viagem com carruagem. A modernidade havia chegado também na Europa. Os carros estavam prestes a surgir nas estradas. Eu achava aquela máquina algo de intrigante. Eu costumava zombar um pouco, dizendo que eram carruagens sem cavalos, porém quem poderia deter o progresso? Ao longo dos séculos nunca havia visto uma prova concreta da existência de Deus, mas todos os dias me espantava com a capacidade da ciência em inovar e trazer melhorias para a sociedade. Seria a ciência o verdadeiro Deus da humanidade? De vez em quando eu me pegava com esse tipo de questionamento passando por minha mente.

O Clero
Lisboa, 10 de fevereiro de 1890
Estefânia, minha querida...
Após várias tentativas finalmente consegui ser recebido pelo Cardeal Bragança, o membro do clero católico que poderia me dar informações sobre o Livro de Sangue. Eu não menti, me apresentei como especialista em antiguidades e expert em livros raros, algo que sou realmente. Apresentei meus documentos de identificação que me qualificavam como um autêntico pesquisador. 

Ele era um homem fino e educado. Esperava exatamente por isso. O clero católico sempre foi muito culto e versado. Em termos religiosos nenhuma outra seita ou religião chegava perto nesse aspecto. Ele me disse que estava curioso em saber por que eu queria pelo menos ver o tal Livro de Sangue. Era uma obraa medieval, até hoje pouco conhecida ou entendida. Havia muitas lendas envolvidas sobre ela, mas fatos concretos, muito pouco havia o que falar. 

Tendo ganhado sua confiança ele começou a me explicar sobre o Livro de Sangue. 

- Essa é uma obra que nasceu e foi escrita dentro daquele caldeirão cultural que virou uma verdadeira febre na Idade Média, com toda aquela busca pelos milagres que a Alquimia tanto prometia aos desejosos de transformar qualquer metal em ouro...

Ele acendeu um pequeno cigarro muito fino e continuou sua explicação...

- A alquimia medieval em si nunca foi uma ciência, mas de certa maneira inspirou o surgimento da ciência tal como a conhecemos. E suas premissas básicas, de que haveria possibilidade de mudança dos elementos químicos foi confirmada pelos cientistas séculos depois. Os alquimistas assim não eram tolos... Eles realmente tinham as premissas adequadas...

Fiquei prestando atenção na importante explicação daquele homem realmente culto, então resolvi perguntar: 

- Você leu o livro? Ele é basicamente um livro de alquimia?

Ele parou por alguns instantes, deu uma baforada na fumaça do cigarro e continuou a explicação...

- Não diria que é apenas um livro de alquimia. Há muitos elementos religiosos e de saber sobrenatural envolvidos. Há coisas estúpidas escritas no livro, como transformar vampiros em mortais novamente, mas isso é parte do folclore da época... E existe, claro, estranhos experimentos afirmando que seria possível mesmo transformar qualquer metal em ouro puro... Enfim, conjunturas, conjunturas.... De minha parte apreciei um pequeno glossário sobre demônios que o livro traz... Eu sempre tive particular interesse em demonologia e nesse aspecto esse livro antigo traz informações importantes..

Fiquei ouvindo com atenção. Pouco me importava a parte sobre demônios. Eu queria mesmo era ler a parte do livro que tratava dos vampiros. Fiquei muito pensativo sobre a possibilidade de se reverter o processo do vampirismo. Isso seria realmente genial, embora eu não estivesse com planos concretos de voltar a ser um mortal.

De repente o religioso se levantou e me dispensou. 

- Lamento, tenho que interromper nossa conversação. Tenho agenda cheia amanha. Irei trabalhar administravelmente na diocese e irei celebrar missas logo pela manhã, às sete. De qualquer forma agradeço seu interesse. 

Perguntei como seria possível ter acesso ao Livro de Sangue. 
Ele respondeu:

- O livro está atualmente no Vaticano, guardado a sete chaves. Não é fácil chegar nele, mas é possível. Você terá que fazer um requerimento por escrito à Santa Sé, mostrando os motivos de seu interesse, a linha de pesquisa que está sendo seguida. O Vaticano é aberto para pesquisadores, não para meros curiosos, por isso aconselho que apresente uma carta de recomendação da universidade pelo qual você está fazendo sua pesquisa. 

Puxa, aquele era um problema e tanto que eu teria que resolver dali em diante...

Maximilian.

O Destino de Maximilian
Eu, o historiador Pierre, concluo o meu trabalho de pesquisa agora. A carta anterior datada de 10 de fevereiro de 1890 foi a última encontrada. Essa então será, de certa maneira, uma pesquisa inconclusiva. Até que tenhamos acesso a novas cartas, tudo terá se perdido nas areias do tempo...

Depois dessa data e dessa carta nada mais foi encontrado sobre esse nobre vampiro em bibliotecas da Europa continental. Pelo menos, por enquanto. Cartas mais recentes podem existir, mas não foram encontradas, essa é a verdade. O que terá acontecido? Por onde andou? Estaria ainda vagando nas noites escuras? Pela importância do registro histórico passo a pensar em seu destino.

Ele estava prestes a ir para o Vaticano... será que realmente viajou até lá?... Em extensas pesquisas o máximo que encontrei foram pistas que reproduzo abaixo. 

Há um obituário em nome de um certo homem chamado Louis Maximilian datada de meados de setembro de 1916, na cidade de La Rochelle. Esse nobre senhor foi encontrado morto em sua casa nos arredores da cidade. Morreu tranquilamente enquanto lia um livro de alquimia medieval. Esse detalhe foi o que mais me chamou a atenção.

O senhor Jean Lobothan cuidou de seu funeral. Nenhum parente apareceu, apenas o padre Mckenzie que leu alguns salmos, enquanto o caixão de Louis descia em sua cova. Era uma manhã gelada de inverno. A senhora Eleanor, que havia sido sua governanta nos últimos meses, jogou um pequeno buquê de flores violetas. 

Teria ele encontrado mesmo o caminho de retorno para a mortalidade e a partir dali envelheceu e esperou por sua morte, pela paz eterna? Não sabemos...

O que descobri pela leitura do velho jornal amarelado pelo tempo é que seu funeral foi breve e rápido. O padre disse algumas breves palavras. Viemos do pó e ao pó voltaremos. Depois todos se cumprimentaram e deram as costas, deixando Louis para a eternidade. 

E os flocos de neve começaram a cair suavemente em seu ataúde preto com detalhes dourados...

Pablo Aluísio.

O Vampiro de Versalhes - Parte 7

O Livro de Sangue
Londres, 19 de janeiro de 1890
Prezada Estefânia,
Como você pode prever, estou de volta e continuo em Londres. Não por causa de assassinos em séries deselegantes, que mais parecem açougueiros de bairros sujos, mas pela simples razão de que encontrei uma boa amizade na cidade. Estou apreciando a companhia de Lord Lancaster, um homem fino e elegante que tem proporcionado à minha pessoa momentos de prazer, pois é um daqueles lords britânicos com ótima conversação. 

Já é um senhor idoso, já passou dos 80 anos, mas penso que tem mais de 500 anos! Ok, você não acredita quando falo que sou um vampiro, porque, como você mesmo não cansa de repetir em suas cartas, vampiros não existem! Tudo bem, respeito seu ponto de vista, mesmo que ele esteja errado. Então imagino agora sua expressão ao ler essa linhas, pelo simples fato de que agora vou afirmar que não apenas eu sou um vampiro, mas meu nobre colega, Lord Lancaster, também é! 

Ele é seguramente um dos vampiros mais antigos da Europa. Um ser que já enfrentou todos os tipos de perseguições e batalhas. Um sobrevivente de nossa classe. Ele não abriu o jogo logo que nos conhecemos. Fui até sua bela casa de interior para tentar adquirir algumas peças antigas, mas acabei me tornando de fato seu amigo. E após muitas noites de diálogos mais do que prazerosos, onde conversamos sobre tudo, de arte a antiguidades, de religião, filosofia, passando até por gastronomia, ele finalmente me contou que era, assim como eu, um vampiro... 

Na verdade ele só me contou tudo porque descobriu antes que eu era uma criatura da noite. Deixou pequenas armadilhas para confirmar suas suspeitas e teve todas as provas de que necessitava. Foi até um momento de puro humor negro britânico quando finalmente nos olhamos e nos deixamos levar pela confissão maior de nossa raça...

- Sim, eu sou um vampiro! - confessei, dando de ombros... Um leve sorriso irônico acompanhou a frase, além do olhar para os lados, afinal o que mais eu poderia fazer naquele tipo de situação?

- Então somos primos, meu amigo! - Disse Lord Lancaster levando ao alto sua taça...

Rimos muito naquele momento... risos sinceros... eu estava mesmo precisando de algo assim...

E assim finalmente relaxamos. Entre as coisas importantes que ele me contou está a existência de uma antiguidade cobiçada pelos vampiros europeus. Trata-se de uma antiga publicação conhecida apenas como "O Livro de Sangue". 

Provavelmente foi escrita e confeccionada na Idade Média. O Lord Lancaster me disse que provavelmente é um livro que data entre 520 a 530 da era comum. Ou seja, tem quase 1500 anos de existência!

Historiadores especializados em Idade Média porém acreditam que esse livro pode ser muito mais velho. Essa fata inicial é apenas a referência do primeiro registro histórico de sua existência. Trata-se de um documento da Igreja Católica. O livro havia sido achado na cabana de uma senhora que estava sendo acusada de bruxaria. 

Ela foi morta na fogueira, pobrezinha, mas o livro acabou sendo levado para o Vaticano. Curiosamente esse precioso e raro livro acabou sobrevivendo às chamas das grandes fogueiras onde a Igreja lançava os livros que entendia ser blasfemos e hereges. Até hoje se discute porque a Igreja não destruiu o livro...

Lord Lancaster acredita que o livro trazia informações preciosas e importantes para o clero católico, informações que ajudariam a Igreja a lutar contra as forças do mal. Por isso seu original foi preservado, para estudos e aprofundamentos por parte dos chamados estudiosos do alto clero do catolicismo.

Como um expert em antiguidades daria tudo, mas tudo mesmo, para colocar minhas mãos nessa preciosidade da literatura medieval. Seria uma peça de extremo valor em minha coleção particular. Eu estava disposto a estudar cada linha de suas páginas, cada detalhe de sua produção medieval. Fiquei muito empolgado ao saber de sua existência!

O Lord Lancaster então me deu uma informação importante. 

- Vá para Madrid, conheça o vampiro Valentino, ele sabe por onde começar suas buscas. Vou lhe escrever uma cartão de recomendação, ele o receberá bem...

E assim foi feito. Lord Lancaster foi mais do que um amigo, foi uma descoberta maravilhosa. Ninguém poderia pensar que um inglês e um francês pudessem se dar tão bem. Estamos acima desse tipo de bobagem de patriotismo. 

Fiz minhas malas imediatamente. Já sabia para onde iria viajar em seguida, após deixar Londres para trás...

Maximilian. 

O Vampiro Valentino
Madrid, 1 de Fevereiro de 1890
Querida Estefânia,
Estou finalmente nessa bela cidade espanhola. Parece minha querida Paris, há arte e história em todos os lugares para onde se olha. Os velhos monumentos, os antigos prédios do passado, tudo ainda está de pé. Deveria ter vindo nessa cidade há muitos anos. Fiquei realmente maravilhado com a arquitetura, com as pessoas, com tudo. Madrid brilha de noite, é uma visão magnífica. 

Há muitos motivos para se conhecer tão belo lugar, mas no meu caso, estou aqui para conhecer Valentino. Quero informações sobre o livro de Sangue, penso que ele, por indicação do Lord Lancaster, poderia me ajudar nessa busca que agora se tornou um tipo de boa obsessão pessoal de minha parte. Temos que ter bons motivos para continuar em frente. Arranjei um novo e muito bom. Está me motivando como há muito tempo não acontecia. 

E afinal quem seria esse Valentino?

Valentino era bem conhecido nos meios obscuros das ruas sombrias da velha Europa. Não se sabe ao certo suas origens. Das informações que obtive, vou aqui deixar um pequeno resumo de suas trajetória. Assim que se tornou um ser da noite ficou obcecado por sangue de lindas virgens. Por seu sotaque e forma de agir ele provavelmente tinha origem além-mar, talvez no distante e exótico Norte da África. Isso talvez explique uma das formas como é conhecido, ou seja, o mouro! Só que Valentino não falava sobre seu passado, como se escondesse algo trágico. E quando não se fala muito sobre o que passou, se abrem janelas para especulações.

Valentino era um vampiro antigo, provavelmente trezentos anos. Dizia-se que havia sido mercador de escravos. Outras fontes diziam que havia criado uma rede de masoquismo no novo continente, o que fez com que fosse perseguido pelos colonos. De uma maneira ou outra, por volta do século XVII ele finalmente subiu em uma velha nau holandesa de madeira e foi para a Europa. 

Essa estranha figura se instalou inicialmente em Lisboa, onde abriu uma taverna que só funcionava a partir do crepúsculo. Ali, dizia-se (sempre muito boatos envolvidos) que ele mantinha uma casa de tolerância com beldades inglesas que importava para Lisboa. Esse vampiro - sim, eu sei do que estou falando - tinha mesmo preferência por mulheres jovens a quem podia sugar o sangue, participando de orgias sexuais sem fim.

A vida devassa e inescrupulosa de Valentino fez com que muitos cruzassem seu caminho. Havia um código de ética entre vampiros europeus e essa sombra noturna estava violando todas essas regras não escritas. Havia rumores que Valentino estaria transformando algumas de suas jovens em vampiras, o que ia contra todo o protocolo de comportamento de um nobre bebedor de sangue humano. 

Fui até onde ele morava. Eu que havia vivido na luxuosa corte de Maria Antonieta, achei seu cabaré  um verdadeiro horror estético. Com cortinas vermelhas escuras, clima de pura decadência moral, não era o lugar adequado para se levar alguém de bom gosto e refinamento. Era sem dúvida um ambiente vulgar!

Valentino sentava-se ao centro do grande salão e comandava suas prostitutas de inferno. Logo percebi que pelo menos duas ou três delas já estavam transformadas. Um absurdo, transformar aquelas mulheres em nobres de sangue. Ele obviamente deveria ser punido.

Valentino havia cruzado um limite. E eu sabia que deveria eliminá-lo depois daquela noite. Mas antes disso, precisava de informações. Fui até onde ele se encontrava e apresentações formais foram feitas. Devo dizer que não gostei de sua presença, não gostei de seu modo de agir. Isso iria facilitar depois quando eu resolvesse lhe atacar...

Ele era alto, tinha cabelos longos ao estilo Louis XIV. Vestia-se bem, mas era facilmente perceptível que não trocava muito a roupa. Parecia suja e surrada. Suas unhas e dedos das mãos eram extremamente grandes. Nos dedos muitos anéis. Parecia um cigano que havia perdido o caminho da volta de seu clã. 

- Então você quer saber sobre o Livro de Sangue? - Perguntou Valentino com olhos semicerrados...

Ele havia acabado de ler a carta de recomendação que Lord Lancaster havia lhe escrito. Acredito que só falou comigo por causa disso. Parecia arrogante e nada amistoso com desconhecidos. 

- Sim, gostaria de saber onde poderia encontrar essa raridade... - Respondi, de forma educada, mas sem exagerar muito na ansiedade. 

- Olha só, por alguns anos esse livro circulou entre vampiros ricos e influentes de Portugal. O elo de conexão foi a Igreja Católica. O original pode estar bem escondido nas profundezas da biblioteca do Vaticano... Eu tive acesso a manuscritos que traziam partes e capítulos copiados diretamente do livro.. nada mais...

- E o que você leu naquelas páginas? - Eu estava obviamente curioso...

- O livro está escrito em latim, mas em uma linguagem mais influenciada também por línguas dos reinos bárbaros que começavam a destruir o poder do império romano...

Ele deu uma pausa e bebeu um pouco do cálice vermelho...

- Basicamente, das coisas que li, era um tipo de alquimia do sangue. Prometia, entre outras coisas. desfazer o vampirismo... Tornar um vampiro em mortal novamente... uma espécie de cura...

Valentino não parecia muito convencido...

- Acho que são velhas bruxarias sem muito valor. Crendices talvez... mesmo que alguns vampiros influentes em nossa comunidade acreditem naquelas velhas palavras medievais... Eu não faço parte desse grupo. Eu achei tudo apenas fantasia. Pensamento mágico, se é que você me entende...

Esse foi um primeiro encontro. Valentino me convidou a ir mais vezes em seu leito de festas e orgias eternas. Era assim que ele parecia querer existir, cercado de belas mulheres nuas fazendo sexo. Cada um sabe o que lhe convém...

Houve uma grande surpresa na noite em que retornei naquele recinto. Todas as noites um baile Dantesco era realizado, onde todos os convidados ficavam completamente nus. Era engraçado e mórbido nas mesmas proporções. Nada excitante em meu ponto de vista! Certo, as mulheres propiciavam uma bela vista, pois eram mulheres bonitas, de seios fartos. Já os homens, gordos e de barrigas salientes, destruíam a imagem global daquele festim de horrores. 

E no bordel de Valentino havia dois tipos de homens. Os ricos estavam ali para depois realizar favores de corrupção para aquele ser da noite. Já os pobres e mais jovens seriam seu jantar, já na alta madrugada. Afinal Valentino também não tinha reservas de apetite para sua sede de sangue humano. Ele queria se alimentar todas as noites. Do excesso, ele tornou seu estilo de vida.

Eu fiquei em sua mesa, olhando ao redor, mas sem participar da festa. Ele apenas ficou olhando pelo canto do olho enquanto tomava um vinho do Porto de boa procedência. Valentino se aproximou e quis conhecer aquele cavalheiro estranho que ele nunca havia visto. Pelo seu sentido de ser da noite sabia, mesmo que de forma inconsciente, que eu era um de seus pares. 

Ele ficou curioso comigo, com aquele nobre sotaque francês antigo. Algo soava no ar, um estranho clima de doce veneno. Aqueles seres sabiam que em pouco tempo haveria um jogo de vida e morte prestes a começar sob a luz da lua cheia.

Mas antes disso ele se virou em minha direção e disse: 

- Procure pelo cardeal Alfredo de Bragança em Lisboa. Ele sabe tudo sobre esse livro que você está procurando. Eu tive um certo interesse por ele, mas depois de algum tempo deixei tudo de lado. A Igreja tem todas as respostas que você precisa...

Ele foi sincero naquele momento. Era algo que eu sempre suspeitei. Mesmo com o passar dos séculos, o Livro de Sangue ainda estava de posse da Igreja Católica Apostólica Romana. Isso me lembrou de uma velha frase espirituosa que dizia: "Eu não acredito em Deus, mas acredito na Igreja.." Aquela velha instituição religiosa tinha mesmo muitos segredos milenares. 

E assim descobri que teria que viajar mais uma vez, dessa forma fui até a estação. Portugal era o meu novo destino...

Abraços cordiais,
Max. 

Pablo Aluísio.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Vampiro de Versalhes - Parte 6

Londres, 1888
Um dos escritos mais interessantes do Lord Vampiro se refere a Jack, o Estripador. Isso mesmo, o infame assassino em série que colocou a Inglaterra em pânico com seus crimes em plena era vitoriana. Colocarei aqui as impressões de Maximilian na íntegra, a seguir. O texto foi retirado, mais uma vez, de uma de suas cartas enigmáticas. 

Pierre, Historiador.  

Londres, 16 de agosto de 1889
Prezada Estefânia,

Em 1888 eu fui até Londres. Quando estava em Paris soube que havia um assassino insano nas ruas da cidade, em um bairro pobre, cheio de prostitutas, chamado Whitechapel. Em um primeiro momento pensei se tratar de um membro da minha linhagem, um desgraçado chupador de sangue, que havia enlouquecido, matando e estuprando mulheres que eram conhecidas como desafortunadas, mulheres pobres, com problemas de alcoolismo, que vagavam pelas ruas e ofereciam seus corpos a quem estivesse interessado. Pobres mulheres perdidas nesse mundo vil e violento. Devo dizer que senti pena delas. Imagine ser uma mulher pobre, sem recursos sequer para provir sua alimentação diária. Precisando se prostituir para sobreviver. Até a dignidade de uma mulher é perdida em uma situação tão triste como essa! 

Infelizmente, para meu infortúnio, descobri que as mortes tinham cessado quando finalmente coloquei os pés naquela cidade suja, sempre com céu nublado e muita neblina asfixiante. Apesar de todo o glamour e pompa da rainha Vitória, devo dizer que viver ali naquela pocilga não era a melhor coisa do mundo. Sempre preferi o belo litoral do sul da França, isso apesar de, como é óbvio, não poder desfrutar das praias ensolaradas daquela região. Mas voltemos, voltemos, porque tenho uma revelação a fazer. Muito provavelmente ninguém vai resgatar esses meus escritos das areias do tempo, mas vou escrever, porque hoje é uma noite particularmente sombria.

O verdadeiro Jack, o Estripador era um pobre coitado corroído pela doença mental chamado Aaron Kosminski. Ele era um imigrante polaco, de origem judaica, que foi para Londres atrás de seu irmão mais velho que abriu um pequeno comércio de vendas de roupas para mulheres. O Aaron era o filho mais jovem dessa família. Ele foi criado sem pai, pois esse morreu muito cedo. Os judeus sofriam forte perseguição na Polônia. Por isso parte da família Kominski se mudou para a Inglaterra. Lá eles mudaram seus nomes para Abrahams. Primeiro porque era mais fácil de pronunciar na língua. Segundo, porque eles tinham medo de serem reconhecidos como judeus que eram. O medo era grande naquela época. O preconceito contra judeus era o normal. Eles meio que se escondiam para tentar sobreviver dentro daquela sociedade de castas. 

Aaron Kosminski matou aquelas mulheres porque estava em surto psicótico. Ele tinha esquizofrenia e iria passar o resto de sua miserável vida em um hospício imundo. Ele nunca escreveu aquelas cartas para a polícia de Londres se auto denominando Jack, o Estripador. Ele era analfabeto. Quem escreveu as cartas foi um jornalista que queria afinal de tudo vender jornais. Era o seu negócio. Penso até que esse louco do Kosminski sequer sabia o que estava fazendo. Ele não tinha consciência de seus crimes. Quando cheguei a Londres fui com o objetivo de trucidar o assassino Jack, mas quando descobri a verdade, simplesmente desisti. Não valia a pena. Eu tive pena e nojo dessa criatura.

Os judeus de Londres sabiam que Aaron Kosminski era Jack, mas esconderam a verdade. Por qual razão? Eles tinham receios que uma onda de violência contra judeus iria explodir depois que a verdade fosse espalhada. Por isso decidiram resolver a questão de uma forma menos escandalosa. A família de Aaron Kosminski o levou até um hospício e de lá ele nunca mais saiu. Morreu pesando 30 quilos, completamente louco, envolto em sua própria mente doentia. E isso foi tudo. Queria saber quem foi Jack, o Estripador? Está aí toda a verdade, pobre mortal...

Nas cartas você me faz diversas perguntas sobre Deus! Qual Deus, eu devo perguntar. Sim, porque ao longo da história muitos deuses foram criados pela mente humana. Centenas deles, milhares de deuses. Esse tipo de deus mais abstrato que você e sua família ocidental certamente seguem é uma invenção cultural recente, minha cara. Os deuses da antiguidade não eram seres abstratos. Pelo contrário, eles eram bem concretos. Desciam do monte onde habitavam, seduziam as mulheres, faziam sexo com elas, tinham filhos, etc. O deus da antiguidade tinha que ser viril, guerreiro, sexualmente ativo, caso contrário seria considerado um fraco e não seria seguido por absolutamente ninguém. 

Esse Deus (com D maiúsculo) que é seguido pelo mundo ocidental era, em seus primórdios, um típico deus da antiguidade. Ele tinha cabeça bovina, corpo humano e um pênis gigantesco que usava para arar a Terra, trazendo alimento e vida para todos os povos que viviam na Judéia nos tempos antigos. E o "Deus" também tinha nome. Ele se chamava Yaweh. A maioria dos cristãos nunca ouviu esse nome, no máximo conhecem o nome latinizado Jeová. O mesmo aconteceu com o próprio Jesus que aliás não se chamava Jesus. Seu nome real era Yeshua. Espero que um dia as igrejas tragam de volta os nomes verdadeiros desses seres supostamente divinos. 

Então, estou escrevendo tudo isso, para deixar claro que os deuses são invenções humanas, produtos culturais. Essa coisa de deus único também não é novidade na história. No Egito antigo já havia surgido um faraó muito louco que baniu todos os deuses do Egito e decretou que a partir dali só haveria um deus, o deus Sol, o círculo solar. Em minha opinião a ideia de monoteísmo que depois iria invadir o Judaísmo veio justamente dai. O faraó Aquenáton fez escola e em termos de pensamento religioso foi um dos homens mais influentes da história. Ainal, os judeus estavam escravizados no Egito e certamente conheceram toda essa revolução religiosa que surgia naquele momento.

Então é isso. Deus não salvou aquelas pobres mulheres da mão de Jack, simplesmente porque ele não existe. É um pensamento aterrorizador para determinadas pessoas, eu sei. Outras vão dizer que cheguei nessa conclusão porque afinal sou um vampiro e esses são seres do mal... aquelas coisas... mas eu não acredito no deus bovino e nem no diabo caprino. Tudo soa apenas como mitologia em meu entendimento. 

Abraços bovinos do amigo,
Max. 

Estrasburgo

Estrasburgo, 2 de janeiro de 1889. 

Querida Estefânia, 
Eu lhe escrevo para contar minhas últimas novidades. Recebi sua carta no último fim de semana e decidi responder, afinal sou um cavalheiro. Lamento muito saber que você andou doente. Eu sei que você não acredita em mim quando digo que sou um vampiro. Você ri e faz graça. Tudo normal, eu também dou minhas risadas noite adentro. Só que bem sei que nunca ficarei doente como você, pois vampiros são imortais e também super saudáveis, mesmo sabendo que algumas pessoas acreditam que estamos mortos! Eita gente sem noção! 

Estou no momento nesse bonita cidade na fronteira com a Alemanha. Há meses fico na dúvida se devo ultrapassar a fronteira. Não gosto muito da cultura alemã, nem de sua culinária. Na dúvida fica onde estou, curtindo o tempo passar, enquanto faço mil planos.

Viver, de certa maneira, é fazer planos. Alguns dão certo e outros dão terrivelmente errados. Soube que você se casou com aquele sujeito. Olha, vou ser indelicado. Aquele não é homem para você. Além de já ter traído sua confiança, é um homem sem estudos, sem formação cultural. Fruto de uma cidadezinha do interior, rude e desprezível. Penso que ele vai ser um estorvo por toda a sua vida. Você vai carregar esse indíviduo nas costas, por toda a vida. Ele até pode ser bonito no momento, mas o tempo vai passar. Ele vai ficar gordo e tudo o que vai sobrar em sua vida é um homem ignorante e estúpido que você vai sustentar. Estou sendo rude? Pode ser, porém não tão rude como será seu casamento com ele. Essa é minha opinião sincera. Lamento dizer.

Espero que não corte os laços de amizade que tenho com você após escrever essas linhas que, admito, são brutalmente sinceras...

Em relação a mim, adotei a solteirice completa. Ser solteiro é ter liberdade. Hoje estou aqui, amanhã... não sei. Possa ser que acorde e decida fazer uma viagem. Ninguém vai ter nada a ver com isso. Não terei que dar explicações a ninguém. Tenho uma amiga. Ela reclamava de que seus pais a prendiam muito. Então se casou precocemente "para ter liberdade". Pobre mulher! Saiu das algemas de pais opressivos para uma nova jaula, agora controlada pelo marido. Triste destino. O homem solteiro vive por si. Tem suas próprias aventuras. Curte a noite, saboreia o luar. Casamento é uma das piores invenções humanas. Aprisiona em correntes, quase sempre enferrujadas. É um contrato. E como todo contrato a pessoa só assina se quiser. Prefiro não colocar minha assinatura em um papel desses. Prefiro ter minha carta de alforria sempre debaixo do meu braço.

Sobre os amigos dos tempos da juventude, estão mortos. Os que conseguiram sobreviver à matança da revolução francesa, tiveram um fim de vida muito miserável. Devo dizer que sinceramente falando muitos deles eu apenas suportava. Era muita conversa vazia sobre nada. Você descobre o quão um homem é vazio pelo teor de suas conversações. Se ele só fala em tolices e futilidades, pode ter certeza que há um idiota na sua frente. A maioria dos que conheci em Versalhes eram assim. Uma gente bem decepcionante, devo confessar. 

Os suportava na época da nobreza, mas agora não preciso mais suportar aquela gente. Com a revolução fiquei livre de todos eles! Tinha que existir alguma coisa boa no meio de toda aquela atrocidade, não é mesmo? Quando a revolução destruiu o sistema e classes sociais privilegiadas os nobres que sobreviveram à guilhotina ficaram sem ter como sobreviver. Eles não sabiam fazer absolutamente nada! Nunca tinham trabalhado na vida, eram uns inúteis em termos de trabalho e tirar o sustento com o suor do próprio rosto. Muitos acabaram se matando pois não conseguiam nem plantar batatas para ter o que comer. Em um dia eram condes, viscondes, barões. No outro dia se tornaram mendigos de rua. Realmente é algo que a mente humana não consegue absorver. 

E pensar que dez anos após a revolução um velho conhecido me enviou uma carta de Toulouse me convidando para uma reunião de velhos amigos. Deus me livre de um destino desses! Não quero... não quero... não desejo mal nenhum para aquelas pessoas, mas ao mesmo tempo também não quero eles por perto. Aguentar aqueles anos de sua companhia já foi o bastante... Eu era jovem e tolo, então nem percebia a inutilidade de tudo aquilo. Hoje só sento para conversar com quem tem algo interessante a dizer. Falar sobre cultura, artes e filosofia. Todo o resto me parece tempo perdido. Então é isso minha cara amiga. Desejo tudo de bom para ti e suas filhas!

Abraços de seu eterno amigo.Maximilian. 

Pablo Aluísio. 

O Vampiro de Versalhes - Parte 5

Sobre a Vida (ou a Morte)
Normandia,  2 de março de 1883
Faz mais de um ano que deixei Paris. Eu sempre amarei essa cidade, estará sempre em meu coração, mas devo seguir em frente. Algumas vezes percebemos que o ambiente está saturado, que não há mais como respirar em determinados lugares. Não é a cidade em si, mas as pessoas que moram nela. Dentro de duas ou três gerações eu poderei voltar, quem sabe, quando todos esses moradores estiverem com a morada nas catacumbas da cidade. Simplesmente não quero ver mais essa gente. 

Aliás já parou para pensar que a maioria das pessoas que habitam suas lembranças nem existem mais? E não estou falando apenas de pessoas que morreram, mas também das pessoas que mudaram sua aparência. Sabe aquela paixão da adolescência? Esqueça! Ela é outra pessoa agora, muito provavelmente completamente mudada. As pessoas mudam. Por isso as suas lembranças são povoadas de pessoas que simplesmente não existem mais. Eis uma realidade. E nem precisa ser imortal para bem entender isso. 

Ora, daqui cem anos ninguém mais saberá quem você foi. Isso se você for uma pessoa comum e não o Alexandre, o Grande, ou o Júlio César. Esses sempre serão lembrados pela história. Mas você aí, que tem um trabalho simples, que leva uma vida bem anônima, não se engane, uma ou duas gerações após sua morte ninguém mais se lembrará que um dia você exisitu. A vida é muito efêmera, muito passageira. A maioria das pessoas, a imensa maioria dos seres humanos, não importa muito. O tempo, senhor de tudo, jogará as areias dos anos sobre suas lembranças. Nem seus parentes distantes saberão que voce um dia existiu e isso é tudo. Faça o teste. Procure se lembrar de seus antepassados de três ou quatro gerações passadas. Não vai dar... Eles foram esquecidos. Lamento. 

E não me venha com histórias envolvendo a imortalidade da alma. Isso não existe. O conceito de Alma foi inventado pelos gregos. Nem os judeus antigos, do velho testamento, sabiam o que era alma. Se algum religioso lhe ensinou o contrário, saiba que ele lhe enganou, ou por ser um picareta mesmo ou por ser um ignorante. As duas situações não são nada boas! 

O conceito de Alma é puramente filosófico. Os gregos eram mestres em filosofia, em pensamento abstrato. Então diante da efemeridade da existência eles criaram um pensamento que trouxesse algum conforto para pessoas que estavam vivendo o luto. No conceito de Alma ninguém morrerá jamais. A Alma do seu parente morto viverá para sempre! É um pensamento que reconforta, mas que também não tem base nenhuma na esfera da ciência. 

E por falar em religião as pessoas comuns pensam que os vampiros são seres religiosos que acreditam em céu e inferno, que são seguidores do Diabo e tudo mais. Que bobagem! Sabe aquela história boboca de que um vampiro sempre sairá correndo quando confrontado com uma cruz cristã? É uma grande lorota disseminada pelos livros góticos. 

Durante praticamente toda a minha existência vivi trabalhando como especialista em antiguidades, inclusive peças e obras de arte religiosas. Nunca aconteceu nada comigo, nunca me fizeram mal nenhum. Pelo contrário, sou até admirador de arte sacra, vejam só! E tomei gosto por arte antiga, tanto que continuo trabalhando como antiquário, mesmo sendo podre de rico com a fortuna da condessa russa. E você pode se perguntar porque ainda faça esse trabalho? Bom... é um hobbie dos mais agradáveis... Adoro colocar as mãos em peças antigas, estudá-las, catalogar uma coleção. Isso é cultura, é arte. Nada mais prazerosos do que lidar com esse tipo de coisa. É um dos prazeres da minha existência. 

Então tudo o que se lê nos livros e se vê nas peças teatrais é pura mentira? Nem tanto. Temos problemas com a luz solar. Eu não posso andar pelas ruas da cidade com sol a pino, no calor do meio-dia. Se eu fizer algo assim certamente vou queimar até os meus ossos virarem pó. Não sei a razão. Provavelmente o vampirismo seja alguma modificação genética causada por algum tipo de vírus. Eu não sou cientista, mas tenho vontade de estudar o tema. O problema é que a maioria dos cientistas acredita que essa coisa de vampiro é pura cultura pop, que não passa de folclore. Ninguém pode condená-los por pensar assim. Esses conceitos todos são bem absurdos, vamos ser bem sinceros nessas linhas.

E aqui entro, mesmo que brevemente, na questão alimentar. Veja, em minha existência não preciso de uma montanha de corpos humanos ao meu redor. Isso seria intolerável. Nada é mais complicado do que se livrar de um corpo humano. Pesam demais, começam rapidamente a cheirar mal. Um horror estético, devo dizer. É a parte de ser um vampiro que menos aprecio. Um único ser humano alimenta um vampiro equilibrado por cerca de 30 dias. Numa continha rápida, só preciso me alimentar 12 vezes ao ano, algo que sigo na regra, na risca, sem exageros. 

E também não gosto de caçar muito os seres humanos. Basicamente sou um oportunista da noite. Não fico fazendo emboscadas, só quando odeio minha presa. Na maioria das vezes apenas fico ciente que está chegando o dia que devo me alimentar e vou ficando mais atento com as oportunidades que a noite traz. 

Não adiante sair matando, causando caos nos lugares e cidades por onde se passa. Pelo contrário. Quando me fixo em algum lugar prefiro me alimentar na cidade vizinha ou em outras regiões. Não quero a polícia me investigando, me cercando. 

E também jamais ataco pessoas que conheci recentemente ou que se mostraram boas amigas. Não subestime o poder de uma amizade, principalmente envolvendo pessoas do interior. Você sempre vai precisar de alguma ajuda, de algum serviço. Por isso trato todas essas pessoas muito bem, de forma sincera. Não são meu alimento. São pessoas que merecem respeito e dignidade. 

Acredite em mim, no fundo eu sou um cara legal...

Maximilian,

Os livros, Os Deuses e as Mentiras...
Normandia, 20 de abril de 1884
Olá bela Estefânia, 
Então, você escreveu me pedindo conselhos sobre comprar aquela bela residência nos arredores de Paris. Eu lhe digo que aquela seria, sem dúvida, uma bela aquisição para seus bens imóveis. Lugar bonito, solar, mas que fica essencialmente belo nas noites de lua cheia. Inclusive fiquei tão interessado nessa bela casa que permita-me a ousadia, se você não comprar essa casa, eu o farei, com enrome prazer. Preciso de um lugar fixo para morar. Um belo lugar para passar os dias e as noites sem fim da minha existência. O tempo, penso eu, pode ser infinito. Então que fiquemos por anos e anos em um belo lugar para se viver e quem sabe, em um dia qualquer, morrer...

Eu quero um novo recomeço em minha existência. Os dias de loucos parasitas ficaram para trás. Se há algo que aprendi nessa minha vida é que os livros engrandecem o homem. A busca pelo saber e pela sabedoria é o grande desafio. Oh, como eu tinha uma vida tola! Agora... novos tempos, novos desafios...

E essa bela casa, prezada senhorita, tem uma bela biblioteca, com coleções e mais coleções de livros raros. Só aqueles livros já dariam uma boa quantia caso fosse de seu desejo vendê-los. Eu não o faria. Sempre fui um leitor convicto, adoro ler, por isso não me furtaria a passar horas e mais horas prazerosas a me afundar naquelas páginas amareladas pelo tempo. A sabedoria, por outro lado, nunca ficará obsoleta ou envelhecida. Pelo contrário, o tempo traz a força dos anos passados. Um livro que jamais perde sua força é a maior prova de existência em suas páginas de muita sabedoria de vida de seus autores. Eu adoro ler livros antigos. Eu compraria a casa apenas pela coleção de livros que ali estão. 

Você me pergunta em sua carta sobre aquela edição muito antiga da Bíblia de Gutenberg. Analisei a obra com todo o cuidado e posso lhe garantir, é uma edição legitima, real e vale alguns milhões. Tudo nela está correta, em minha opinião. Há pequenos detalhes que comprovam sua veracidade. A forma como foi confeccionada, o estilo das letras imprensas, as costuras das páginas, a própria capa que sobreviveu ao tempo, tudo comprova que é mesmo uma edição histórica dos tempos em que foi editada. 

Talvez os atuais donos daquela preciosidade nem saibam do que ela se trata. A ignorância parece prevalecer nos dias de hoje e os ricos atualmente são tão ignorantes! E são por conta própria pois não procuraram pela cultura, pelo saber. Não existe nada mais embaraçoso do que uma pessoa extremamente rica e extremamente ignorante, boçal! Quero mais é distância desse tipo de gente. 

Em relação a Bíblia em si, eu não gosto da forma como foi montada. A Bíblia foi escrita em forma de rolos de textos, livros independentes. Nunca passou pela cabeça desses antigos escribas que a escreveram, por volta de seis ou cinco séculos antes de Cristo, que esses velhos livros, tão diferentes entre si, iriam se unir em um único livro chamado Bíblia. Isso é até mesmo um absurdo!

Esses textos tinham personalidade própria, estilos próprios, autores dos mais diversos. Entre um livro e outro inclusive decorreram séculos de diferença. Então o que hoje se chama Bíblia nada mais é do que um absurdo editorial que inclusive é rejeitado pelo povo que o escreveu, o povo judeu. Eles conhecem os textos por si. O resto é invenção de cristão boboca e sem cultura. 

O Velho Testamento é muito mal escrito. Fruto de uma época muito remota da história. Não é culpa dos escribas que escreveram esses textos. Eles apenas não tinham as ferramentas necessárias. Os textos mais antigos não contavam sequer com as vocais! Não tinham sido criados pela humanidade, imagine você! Já o Novo Testamento é coisa de grego nos tempos da era romana. Eram bem mais preparados intelectualmente e criaram uma teologia que, ao meu ver, é pura mitologia, mas que apresenta um pensamento coeso, bem criado. Eram autores inteligentes, abstratos e versados em filosofia. Deu no que deu...

O próprio conceito de sacríficio humano do Jesus na cruz, limpando os pecados do mundo, é bem inteligente. Ele foi o cordeiro máximo! O mesmo vale para aquela coisa toda de ressurreição. O medo da morte atormenta a vida dos seres humanos desde as eras mais primordiais. Ter uma teologia que pregasse a vida eterna, onde o cristão iria vencer até mesmo a morte, era algo absolutamente revolucionário e do ponto de vista humano, algo absolutamente irresistível. O sucesso do cristianismo vem desse pensamento sutil, que conquista corações até os dias atuais...

Eu penso que Jesus foi um homem real que viveu mesmo na Judéia ocupada pelos romanos. Só que ele tentou subverter a ordem política e se deu mal. O termo Messias era usado naqueles tempos como um título de luta política e não espiritual. Messias seria aquele que iria expulsar o invasor romano das terras dos judeus. Apenas isso. Depois ele governaria como um Rei. Não deu certo e ele foi morto na cruz. Não houve ressurreição pois ninguém jamais ressuscitou na história, mas ainda assim devo dizer que a teologia que foi criada em torno disso é algo, como eu disse, bem sutil e inteligente. Acabou criando a maor religião da história. 

Culturalmente estou mais interessado atualmente em livros de economia. Não se engane, a principal motivação dos seres humanos é econômica. Os casamentos, a formação de famílias, as sociedades, as uniões afetivas, tudo passa por fatores econômicos. Os trabalhadores, que geram toda a riqueza, vivem na mais completa pobreza. Uma classe de novos burgueses, sugam toda a riqueza da nação. Nisso sempre concordaram os grandes mestres dessa nova ciência interessante, a economia.

Mas enfim, fica assim minha avaliação. Compre a casa e cuide muito bem de sua rica biblioteca. 

Abraços, 
Maximilian.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O Vampiro de Versalhes - Parte 4

A Morte na Madrugada
Paris, 29 de dezembro de 1880
Estamos chegando ao final de mais um ano. Você pediu e eu vou trazer mais detalhes sobre os acontecimentos, mesmo sabendo que eu sei que no fundo você não vai acreditar em nada do que vou escrever aqui nessas breves linhas...

Eu a encontrei por volta das oito horas. Apesar dos anos passados ela ainda poderia ser vista como uma mulher desejável. Claro, dois filhos depois seus seios já não eram os mesmos. Ela também não era uma atleta e por isso gorduras denunciavam o passar dos anos. Seus dedos, tantos dos pés como das mãos, sempre foram horríveis. Parecia algo mal feito, de segunda mão. Era o que denunciava suas origens, de gente que foi subindo aos poucos na escala social. Ela era inicialmente filha de um militar de terceiro escalão. Depois que ficou grávida do tal médico melhorou um pouco seu status.

Depois de bebermos vinho por toda a noite, a convidei para ir a um quarto ali perto. Ela já estava um pouco embriagada. Foi fácil levar aquela jovem senhora, já se tornando velha snehora, para aquele lugar escuro. Ao colocar esse corpo feminino na cama pensei como eu era tolo aos 19 anos de idade. Pensando que aquilo ali tinha algum valor maior. Não tinha, era carne de segunda. Olhei para ela e disse falsamente como ela era bonita. Nisso a Anne deu um sorriso. Em fúria rasguei seu rosto com minhas mãos. O sangue jorrou por todo o quarto...

Ela quis gritar, mas eu dei um forte soco em sua cara. Ela não chegou a perder os sentidos, mas ficou zonza... não perdi mais tempo e avancei em seu pescoço. Não foi uma mordida, foi uma carnificina! Eu arranquei grandes nacos de sua carne... o sangue me lambuzou todo... eu fiquei em êxtase... queria uivar como um lobo... e continuei a cortar e cortar... tome sua vadia, sua puta! É isso o que você merece... um morte indigna... Eu quis lhe dar seu amor, mas você não quis... Agora pagará, MORRA CADELA, MORRA CADELA... eu amei cada segundo da morte daquela mulher. Bebi e bebi seu sangue até me fartar...

Depois que o vampiro aniquilou e humilhou sua vítima ele ainda se virou para dar uma última cuspida naquela carcaça sem vida. "IMUNDA, IMUNDA... " - Foram suas últimas palavras antes de virar sua capa e sair pela noite adentro...

Acho que fui um pouco longe demais. De fato, quando a fúria vampira se manifesta, toda a educação e boas maneiras se vão juntas. E eu contei um pouco mais do que devia aqui. Não deveria ter ido tão longe nesses detalhes sórdidos. Lamento. 

Feliz Ano Novo,
Maximilian.

Pesquisa Histórica - Relatório 002
Os detalhes combinavam com o que estava descrito pela polícia. Foi uma morte digna de Jack, o Estripador. Aliás para os investigadores que estiveram na cena do crime foi muito além disso. O pescoço estava em frangalhos. Sua cabeça foi separada do corpo não por um corte de espada ou faca, ou algo equivalente, mas sim por mordidas, cada vez mais profundas e violentas... algo que destruiu suas estrutura física. 

Depois de tudo o assassino havia jogado sua cabeça dentro do vaso sanitário imundo que havia naquele quarto infecto. Havia ali claro sinais de fúria e vingança. Essa foi a segunda morte relatada pelo autor, supostamente vampiro. O segundo crime da vida vampiresca de Maximilian.

Infelizmente não consegui localizar nada da morte do primeiro relato, das primeiras cartas. Pelo visto o caos da Revolução Francesa encobriu todos os rastros. 

A Condessa Russa
Paris, 13 de janeiro de 1882
Você ainda está viva? Faço essa pergunta porque faz algumas décadas que nos correspondemos, mas minhas últimas cartas não encontram resposta de sua parte. Provavelmente você já morreu... Muitas vezes esqueço como a vida humana é fugaz, como os seres humanos são frágeis. Morrem por qualquer coisa, por qualquer acidente banal. Nesses momentos até fico feliz por ter me tornado um vampiro. Claro, há dias em que isso de sair atrás de presas humanas é mortalmente chato e enfadonho, ainda mais quando o tempo vai se acabando, o sol vai nascendo e você precisa se alimentar de qualquer um que cruze seu caminho... Já cheguei até mesmo a me alimentar de um morador de rua... Eu sei, eu sei... é complicado... mas tenho que viver e o sangue é precioso, seja de quem for...

Vamos em frente, quero te contar mais uma história de Maximilian... Eu vou contar essa historia como se fosse na terceira pessoa simplesmente porque parece que nem vivenciei isso, parece um livro que li há muitos anos e que agora me recordo como se fossem minhas lembranças, mas que não são e ao mesmo tempo são.. Delírios, devaneios de uma mente vampiresca, mas chega disso, deixa eu te contar como aconteceu...

Em meados de 1820 o vampiro Maximilian ouviu falar que a condessa russa Raissa estava em Paris. Uma mulher fabulosamente rica, única herdeira de um militar que havia caído nas graças do czar. Com sua morte ela teria herdado milhões em jóias, propriedades e dinheiro, depositado nos mais exclusivos bancos da Europa. 

Apesar de toda a riqueza, a condessa era uma pessoa desprezível. Ela era uma mulher cruel. Apesar de possuir olhos verdes, todo o conjunto era tenebroso. Ao invés de ter curvas, como convém a uma bela mulher, ela tinha o corpo quadrado. Não havia seios. Era magra em demasia. Os dentes estavam amarelados pelo fumo. O conjunto era ruim. Era uma mulher feia por fora e por dentro.

Ela procurava compensar sua feiura indo atrás de belas jovens. Era lésbica. Porém ao invés de se relacionar com essas moças, que eram lindas, mas pobres, a condessa abusava de todas elas. No começo enchia todas dos mais belos vestidos. Das mais belas jóias. 

Depois quando começavam a se sentir belas, a condessa começava a tirar tudo. Era um jogo psicológico doentio. Ela queria humilhar, desprezar a juventude a a beleza dessas mulheres. Na Rússia se dizia que ela havia matado algumas de suas servas. Não por acaso as mais belas. Ela tinha complexo de inferioridade perante aquelas belas jovens. Como era feia e ruim, queria destruir a beleza feminina da face da terra.

Quando as mortes começaram a incomodar, por terem caído na boca do povo, a condessa decidiu ir embora para Paris. Só que na capital francesa ela não perdeu o gosto pela morte. Em poucas semanas já surgia como suspeita da morte de uma jovem empregada. Só que Paris não era São Petersburgo. Na capital francesa ela seria investigada e se seus crimes fossem descobertos, seriam punidos. 

Maximilian a desprezava. Em pouco tempo procurou se aproximar dela. Com seu eterno corpo de 19 anos (idade em que se tornou um vampiro, um ser da noite), ele seduziu uma das damas de companhia da condessa. Em pouco tempo foi apresentado a ela. Na verdade o vampiro só queria matar aquela mulher e tomar posse de seus bens e sua fortuna.

Uma riqueza como aquela poderia sustentar uma vida de luxos por alguns séculos. A necessidade de dinheiro para manter um alto padrão de vida foi uma das minhas preocupações constantes. A troca de identidades de tempos em tempos para não despertar suspeitas também era um desafio. Penso inclusive que já deveria ter ido embora de Paris há muitos anos. Ficar morando na mesma cidade, mesmo que seja uma grande cidade, pode ser fatal para uma criatura da noite. As pessoas mais velhas, idosas, começam a dizer que havia conhecido um jovem que era a minha cara.... Tadinhas das vovós, mal sabiam elas que era eu mesmo que havia conhecido elas na sua perdida juventude... 

Mas voltemos à história...

Eu sempre me apresentava para essas pessoas imensamente ricas como um especialista em antiguidades. Como havia vivido muito, sabia e conhecia reconhecer peças antigas, artigos de Versalhes, seus móveis, etc. 

Muita coisa foi roubada do Palácio de Versalhes durante a revolução. Aqueles ladrões jogaram todas aquelas peças preciosas no mercado negro... Jóias e móveis maravilhosos que inclusive tinham pertencido à rainha Maria Antonieta passaram a ser vendidas na feiras mais vagabundas de Paris... Esses ditos revolucionários não passavam de ladrões, é o que sempre digo...

Numa noite, conversando com a condessa, descobri que ela realmente era uma pessoa asquerosa. A condessa desfilou todos os seus preconceitos. Odiava negros e pessoas de cor. Era racista. Preconceito racial. Achava os homossexuais aberrações, isso apesar de ser uma lésbica violenta e possessiva. Como se pode perceber tinha preconceito sexual, ao mesmo tempo sendo a pessoa mias hipócrita da Europa. 

Dizia ser religiosa, mas sua vida pessoal era de pura devassidão. Mais uma prova de sua hipocrisia. E para fechar o quadro geral, odiava pessoas pobres. Tinha preconceito social contra as pessoas mais humildes. Era a mulher mais asquerosa da Europa. Seu destino era a morte. Eu estava pronto para cumprir esse destino.

Maximilian, com os longos anos passados, acabou se tornando uma pessoa culta. Era ótimo na conversação envolvendo livros, artes e história. Afinal ele tinha sido uma testemunha ocular de todos os acontecimentos desde os tempos de Maria Antonieta. 

Durante uma dessas noites a condessa o convidou para ir ao teatro com ela. Iriam de carruagem. Aliás a carruagem da condessa, vinda da Rússia, chamava atenção por onde passava. Era puro luxo e ostentação. E seria dentro dessa gaiola de ouro que o Lord vampiro iria atuar.

Já era tarde da noite quando saíram do teatro. Ao entrarem numa rua escura de Paris, Maximilian não perdeu tempo. Ele imediatamente deu uma pausa, olhou para a condessa e disse: "Seu destino chegou!". A condessa riu e perguntou: "O que você está querendo dizer com isso?"... mal houve tempo dela terminar a frase. 

Com suas garras de vampiro, Maximilian rasgou seu rosto. Ela ainda deu um grito, o que levou o condutor da carruagem parar para ver o que estava acontecendo. Ao descer e olhar pela janela ele viu Maximilian já sugando a jugular da condessa dentro da carruagem.

"Meus Deus! O que é isso?" - gritou o empregado. Maximilian percebendo que ele poderia criar problemas pulou fora da carruagem em um piscar de olhos. Com uma barra, tirada da lateral da carruagem, atingiu em cheio a cabeça do homem. Esse caiu imediatamente, seu sangue jorrava pela calçada escura e molhada da ruela. 

A condessa ainda respirava. Maximilian teria que matá-la, caso contrário ela iria virar uma vampira. Imagine uma pessoa ruim como aquela com os poderes de um ser da noite! 

Com a mesma barra que estava em mãos ele nem pensou duas vezes e a cravou no peito da nobre russa, destruindo seu coração com o impacto. O cenário foi desolador. A condessa destroçada, com o corpo arruinado e seu condutor afogado no próprio sangue. 

Maximilian então viu que ambos estavam mortos. Ele calmamente pegou seu elegante chapéu, sua capa e sua bengala sueca e saiu, tranquilamente pela rua, encoberto pela noite, que agora, após tantos anos como vampiro, aprendera a amar mais do que tudo nessa existência noturna.

E depois de uma semana lá estava o belo Maximilian alegando que era o sobrinho da condessa morta. Como ele não tinha filhos e nem parentes na França, foi relativamente fácil se tornar o único herdeiro de toda aquela riqueza que parecia não ter fim...

Ah, Maximilian, seu danadinho... tenho muito o que lhe agradecer...

O sobrenome russo que adotei era simplesmente horroroso e por uma questão de segurança jamais irei revelar aqui nessas páginas. 

O mais importante de saber é que fiquei imensamente rico. Vendi algumas propriedades da condessa e coloquei o dinheiro em seguros bancos suíços. Estava decidido a viajar pelo mundo... Deixando Paris para trás...

E com a minha cidade querida ficando no passado, ficaram também todos os que havia conhecido enquanto ser humano e enquanto ser da noite...

Pablo Aluísio. 

O Vampiro de Versalhes - Parte 3

Valerie de Versalhes
Paris, 10 de outubro de 1850
Prezada, obrigado por responder minha primeira carta. Já estava esperando ser ignorado. Quando sua carta de resposta finalmente chegou fiquei surpreso e feliz. E digo, felicidade não é algo que tenho sentido muito nas noites, nas sombras, por onde caminho. 

Você tentou descobrir minha identidade, mas errou muito. Eu conheci esse sujeitinho que você citou. Um homem com poucos valrores. Quase fiquei insultado em pensar que você me confundiria com ele. Não, não vá por esse caminho. Você ainda está longe de descobrir minha verdadeira identidade. 

Não fique aflita. Apenas pense em mim como Maximilian, até porque eu tenho pouca ou quase nenhuma identificação com o meu eu do passado. 

Bem, você pediu maiores dicas. Quer saber com quem me envolvi em meus tempos de Versalhes. Tudo bem, é uma reivindicação válida de sua parte. 

Ah, as mulheres... como perdi tempo com elas... Hoje em dia posso entender que muito desse tempo, que nos dias atuais seria valioso, foi perdido com mulheres que no fundo valiam pouca coisa. 

Uma dessas perdas de tempo e esforço me veio à mente quando você pediu que eu falasse mais de meus romances do passado. Então tudo bem, aqui vão algumas informações que penso que você vai apreciar. 

Eu ainda me lembro da primeira vez que bebi sangue. Foi na velha casa que servia de "fazendinha" para Maria Antonieta. Não poderia haver coisa mais inusitada. Enquanto os verdadeiros camponeses franceses sofriam com a grave crise econômica, muitos deles passando fome com suas famílias, a rainha brincava de camponesa em uma fazendinha de mentira perto do Petit Trianon, seu palácio privativo perto em Versalhes. 

Nesse lugar tinha tudo que uma verdadeira fazenda francesa tinha, como bois, porcos, aves, peixes. Só não tinha camponeses de verdade. Quem frequentava aquele lugar era a nobreza entediada que precisava preencher seus dias de tédio com alguma diversão.

Então um jovem Maximilian conheceu a jovem Valerie naquele mesmo lugar. Era filha de um dos serviçais de Versalhes. Uma mulher de longos cabelos pretos cacheados, carnes fartas, com jeito de ser muito quente na cama. 

Carnuda e muito sensual, Val pecava pela dentição ruim e feia. Ali ela se revelava mesmo uma senhorita das classes inferiores. Tinha dois dentes centrais prejudicados, chegando a serem ridículos. Maximilian porém não estava interessado em sexo. Ele poderia satisfazer sua lascívia entre as pernas da mulher quando bem entendesse. Só que ele não queria sua vagina, mas sim sua jugular. Maximilian queria sangue para se alimentar.

E o mais estranho é que Maximilian nem tinha tido consciência ainda que havia se tornado um vampiro, uma criatura da noite. Não sabia quem o havia mordido, provavelmente na madrugada anterior, numa orgia no templo do amor, onde nobres e garotas da plebe se entregavam ao máximo da luxúria. Onde ninguém era de ninguém, onde todos beijavam todos, chupando todos os membros sem se importar quem era os seus donos. 

Na orgia de sexo e bebidas provavelmente perdeu a consciência. Com o pescoço à mostra foi infectado, virando para sempre um desgraçado filho de Satã que jamais encontraria a morte... ou a vida!

Val pensou que Maximilian queria transar com ela. Levantou as saias, mostrou as coxas carnudas. Maximilian deu um salto, tal com um ente predador que ataca sua caça. Ela mal teve tempo de reação. Seus olhos abriram com espanto, tentou dar um grito, mas ele tapou sua boca e em um ato de extrema violência, quebrou seu pescoço. 

O sangue de presas vivas sempre foi mais saboroso para os vampiros. Eles conseguiam sentir o pulso de seus corações no delicioso líquido vermelho, mas como Maximilian ainda era um novato nem pensou muito nisso. Preferia matar, antes de ingerir. O inesquecível para ele nessa noite nem foi o sangue dela corrente em seus caninos, mas sim a sensação única de ver a vida de sua vítima escoar pelas pupilas dilatadas. A morte chegando e a vida indo, lhe trouxe um enorme prazer.

Relembrar esse dia me traz sentimentos e sensações estranhas. Eu não sou mais aquele jovem Maximilian. Hoje levo a experiência e a sabedoria de ter vivido muitos anos. O que era importante para mim naquele tempo muitas vezes não tem mais valor nos dias atuais. 

Ainda assim sinto uma certa pena daquele jovem Maximilian. Não tinha consciência de muita coisa na vida. E estava experimentando pela primeira vez a sensação de ser uma verdadeira criatura da noite. 

E não saber quem me violou, quem me mordeu e bebeu meu sangue, me transformando em um vampiro, me trouxe problemas ao longo de todos esses anos. Em alguns núcleos vampirescos da velha Europa eu ainda sou considerado um ser bastardo, justamente por não saber quem seria o meu mestre. 

Por outro lado minha existência se tornou masi responsável e centrada. Eu não preciso de mestres, eu levo minha própria vida. Eu não preciso de deuses, nem os que habitam os céus e nem os que vivem nas profundezas dos infernos. Eu vivo de acordo com minhas próprias escolhas e decisões.

Eu nem gosto de pessoas. Eu sempre procuro evitá-las, principalmente quando apresentam personalidades tóxicas, gente insuportável. E a maioria dos seres humanos são assim. A maioria da humanidade não vale nada, não crie ilusões sobre isso. 

O mais próximo amigo pode ser o seu pior inimigo, vestido de parceiro. O irmão pode ser o algoz disfarçado. O parente é certamente a serpente que deseja tirar sua vida. A existência solitária é uma benção. A solitude verdadeira é a que traz paz e tranquilidade. Viver com gente desequilibrado consome muita energia e pode inclusive transformar sua existência materialmente falando. Pessoas negativas geralmente deixam as pessoas à sua volta, doentes. Por isso fuja delas, como o vampiro foge da cruz...

Sim, esse foi um trocadilho infame, eu sei, mas tudo bem. Mande mais notícias suas. Estarei esperando com grande ansiedade. Em cartas futuros lhe direi mais... ou não, dependendo das circunstãncias. 

Abraços, Maximilian. 

Anne
Paris, 24 de dezembro de 1880
Estou morto! Minha temperatura corporal é nula. Minha pele vai perdendo a elasticidade se eu não for atrás do néctar dos deuses. O que é o Néctar dos deuses? É sangue humano, minha querida. Eu preciso de sangue humano. Não importa, se de jovem ou velho, homem ou mulher. O sangue humano é preciso para que o corpo não entre em decomposição. Alguns disseram que ratos e animais inferiores eram o bastante. Não são! Só o sangue de um ser humano restaura a beleza da juventude. Eu sou um animal e preciso abater um animal da mesma espécie para continuar existindo.

E eu bem sei que ao ler esse primeiro parágrafo você deve ter dado boas gargalhadas... risadas sem fim... dizendo pra si mesma: Endoidou... 

Eu sei, eu sei, mas minha tragédia é que tudo o que escrevo agora é a mais absoluta verdade... acredite! 

As pessoas gostam de ver vampiros como seres nobres. Não são! São monstros. Se há alguma elegância, se há alguma educação ou modos finos, isso tudo é apenas a antevéspera do ataque. Eu quero morder o pescoço, eu quero quebrar a coluna de quem estou matando. Eu sou um predador e eu sou um imundo das trevas. Todos os vampiros que tive o desprazer de conhecer eram seres repugnantes. Asquerosos... asquerosos! Fingiam ser até mesmo religiosos, mas no fundo eram seres forjados no ódio. Não havia finesse, havia sede de sangue!

Eu quero triturar essa vadia, eu quero matar ela. É bonita? Se acha superior? Eu quero mostrar a ela quem é o superior! Eu sou superior, eu sou eterno! 

E isso me fez lembrar de um amor do passado que reencontrei durante "O Terror", aquela fase insana da Revolução Francesa onde todos morriam... até mesmo os líderes da própria Revolução...

Nunca a guilhotina foi usada tanto como naquele período...

Ela se chamava Anne Dubois. Depois de virar mãe solteira, ao ser usada como vasilha de esperma de um médico arrogante e insensato, ela ficou grávida. Ele a largou.  Quando eu era mortal havia gostado dela. Fui desprezado. Mais do que isso, fui ridicularizado! Maldita, maldita! Agora veja essa vadia. Largada, abandonada. Mãe solteira. Tu não vale nada, mas eu vou sair com você. Eu vou te seduzir na calada da noite. Vou te fazer sentir uma deusa, como nos velhos tempos quando eras jovem e bonita. 

Porém eu vou te destroçar quando levá-la a um quarto de quinta categoria de um bordel imundo de Paris. Eu vou te matar, mas antes vou fazer com que se sinta especial. Depois vou sugar seu sangue, cravar minhas unhas em sua pele bronzeada e vou tirar sua vida.  Com prazer enorme vou te jogar na lata de lixo! Pensa que me desprezou no passado e vai ficar por isso mesmo? Eu vou te destruir, eu vou sugar sua vida, sua desgraçada miserável. O amor não correspondido pode mesmo facilmente ser transformado em puro ódio irracional.

Eu a matei naquela noite em que Maximilien de Robespierre foi para a guilhotina. Eu estava lá... o povo gritou de prazer... e eu pensei, não havia sido esse que também havia mandado tantos para a morte em nome da revolução? Esse é um velho mundo em que nada faz sentido mesmo...

Depois lhe escreverei mais, com mais calma.

Abraços Fraternais,
Maximilian. 

Pesquisas históricas
Essa última carta manuscrita trouxe a primeira grande pista histórica de minhas pesquisas históricas. Segundo consta nos registros policiais o corpo de Anne Dubois foi encontrado numa velha casa no dia 29 de julho de 1794. Ela tinha a cabeça decepada e vários cortes em todo o seu corpo. Pelo tamanho das feridas havia sido atacada por um animal feroz, provavelmente um lobo ou um urso selvagem. Mas quem poderia imaginar um urso andando por Paris? Não havia sentido nisso. Por essa razão o inquérito ficou por anos sem solução até ser arquivado definitivamente cinco anos depois.

Se o que estava escrito era verdade ou não, o autor vampiro revelava tudo. A carta seguinte traria mais detalhes e informações sobre o crime.

Pablo Aluísio. 

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O Vampiro de Versalhes - Parte 2

A Revolução Francesa
Só que a besta foi solta. E o que era a besta? Era a revolta do povo francês. Durante anos o povo foi esmagado por uma grande crise financeira. Enquanto o povo passava fome, a corte de Versalhes se banhava em festas cada vez mais extravagantes. A Rainha Maria Antonieta desfilava com seus vestidos maravilhosos e seus excêntricos penteados ao estilo Poof. 

Havia uma tensão no ar. O povo sustentava a classe nobre parasita enquanto mal conseguia colocar um prato de comida para seus filhos. Maria Antonieta e os nobres viviam de pura ostentação. O rei Luís XVI logo ganhou uma fama de fraco e impotente pois não conseguia consumar seu casamento para gerar um herdeiro. Havia um clima de panela de pressão prestes a explodir a qualquer momento.

Eu não parecia preocupado. Com 19 anos de idade, estava mais preocupado em levar para a cama as moças da pequena nobreza. Nem é preciso lembrar que a devassidão sexual imperava em Versalhes. Todas as mulheres eram de todos os homens. E alguns homens também eram homens de outros homens. Embora a monarquia passasse a imagem oficial de católica e conservadora, o fato é que a luxúria imperava. 

Mas havia também exageros em publicações anônimas que difamavam a sexualidade da Rainha e do Rei. Eram matérias mentirosas. Maria Antonieta era a mais casta de todas as mulheres da corte e isso posso afirmar com certeza absoluta. Ela pode ter se apaixonada por um militar estrangeiro cujo nome me recuso a escrever nessas linhas, mas dizer que ela era uma pervertida é uma grande mentira. Eram mentirosos todos esses folhetins que circulavam pelas ruas do reino...

Ainda assim, as mentiras prevaleceram. A Rainha Maria Antonieta ganhou fama de devassa, com gravuras pornográficas sendo vendidas em toda Paris. Eu particularmente detestava política, além disso estava em uma fase de vício em sexo, de todas as maneiras, de todas as formas. De uma forma ou outra senti que havia algo de errado no ar. Tudo parecia prestes a explodir em violência e insanidade.

Minha pecadora existência porém estava prestes a chegar ao final. Em pouco tempo a Revolução Francesa bateria à porta da minha tranquila e perfeita vida. O mundo estava prestes à virar de ponta-cabeça.

Quando me lembro daquele jovem Maximilian sinto pena dele, de verdade... Era um jovem inocente vivendo em tempos conturbados, mas que não sabia direito o que estava surgindo em seu horizonte...

Fazia quantos anos que eu havia visitado Versalhes pela última vez? Essa conta não se faz com anos, mas com décadas. Fazia seguramente mais de 70 anos que eu havia atravessado aquelas portas... e agora tudo parecia tão diferente.o havia mais toda aquela elegância das pessoas da nobreza andando por seus corredores. Não havia a pompa e o luxo de Versalhes. Não havia mais nada. As pessoas que agora andavam por aqueles corredores eram turistas com suas roupas de plebeus e má educação no trato social. Gente sem qualquer sofisticação social. Um horror!

Eu decidi voltar para Versalhes para um exercício de nostalgia e também para dar um último adeus. Estava pensando em ir embora da França para sempre, correr o mundo, visitar outros países, outras culturas... O que não me faltavam eram meios e tempo para isso... eu sou eterno! 

Eu deveria estar morto há séculos. Todas as pessoas que conheci em meus tempos de juventude estão mortas e há muito tempo. Eu até me arrisquei a visitar há pouco o túmulo de Maria Antonieta. Pobrezinha. Cortaram sua cabeça, jogaram seu corpo em uma vala comum, jogaram cal por cima de seu rosto lindo. Um fim de vida trágico.

Ao contrário do que disseram aqueles revolucionários imundos, ela foi uma boa pessoa. Quem a conheceu sabe disso. Era uma pequenina mulher de enorme coração. Não merecia em absoluto o destino cruel que teve. Fico até muito triste quando me lembro de tudo isso. Trágico é uma palavra limitada para descrever. 

Agora de volta a Versalhes revi todos os salões, todas as salas, que um dia vivenciaram uma linda história da monarquia francesa. O Palácio com seus inúmeros espelhos realmente representava um desafio a um ser cuja imagem não se refletia neles. Também choro e dou risadas pequenas, internas, quando me lembro de tudo o que vivi. Ficava parado sem passar na frente de um espelho se houvesse muitas pessoas próximas. Não queria que descobrissem meu maior segredo.

E ao adentrar o quarto que um dia pertenceu a Maria Antonieta, chorei. Não apenas pela dor da morte horrível da amiga, chorei pela morte de toda uma era. Chorei pelo fim das grandes festas. Chorei ao saber que nunca mais iria fazer parte de uma corte tão maravilhosa como aquela. 

Pensar que aquele mundo não mais existia, que aquelas pessoas não mais estavam vivas... 

Olhei para o chão, as lágrimas correram pelos meus olhos...

O mundo em que vivo é sem brilho e sem glamour. Os revolucionários franceses envenenaram a alma dos homens. Eu havia vivido toda essa história na pele. Estava na Rússia quando a revolução dos comunistas tomou o poder. Vi a mesma situação se repetir, de forma ainda mais sangrenta.. Testemunhei o sangue escorrendo da montanha mais uma vez... 

E chorei novamente por lembrar de tudo o que aconteceu...

Bastilha
Abrindo qualquer livro de história dos dias atuais vemos que para os historiadores modernos o estopim da revolução foi a tomada da Bastilha pelo povo francês. Essa é uma visão bem reducionista. Como estava em Versalhes posso trazer a percepção daqueles acontecimentos com mais nitidez. Na verdade a tomada dessa prisão foi apenas um evento entre tantos outros que aconteciam praticamente ao mesmo tempo. 

No meu caso e no caso de Maria Antonieta penso que só tomamos consicência de tudo quando uma multidão se formou diante dos portões principais do Palácio. Era um mar de gente. Na minha mente ficou bem claro a imagem daquelas mulheres com foices e facas nas mãos. A maioria delas trabalhava nos mercados de Paris e tinham marchado até Versalhes. Diziam estar famintas, em busca do pão de cada dia...

Inventou-se que Maria Antonieta teria dito que deveriam dar brioches para aquelas mulheres caso não houvesse mais pão. É uma mentira. Ela nunca disse isso. Era inclusive uma velha mentira pois essa frase já era atribuída há muitos anos a rainha de Luís XIV. Tudo mentira dos revolucionários. Eles faziam isso para que povo ficasse ainda mais enfurecido com os monnarcas. E como eles eram jovens e de certo modo despreparados para lidar com aquilo tudo, aconteceu o pior. Foram parar na Guilhotina. 

Olhando para o passado fico pasmo ao constatar que consegui escapar de todo aquele tumulto no dia em que passaram por cima dos guardas e entraram no palácio. Aquelas mulheres dos portões ficaram frente a frente com a Rainha. Não sei como Maria não foi esfaqueada naquele dia tenebroso. 

Eu escapei, penso agora após inúmeras reflexões, por ter sido da chamada baixa nobreza. Eu não era um conde, um visconde e nem um barão. Eu era apenas um jovem que frequentava Versalhes. Provavelmente os nobres da alta nobreza me viam apenas como um rapaz simpático, mas no fundo um pobretão, que olhando para o passado, hoje, percebo ser algo mais próximo da realidade em que eu vivia, muito embora definitivamente não tivesse essa consciência na época. Era quase como se eu fosse o filho do mordomo de Versalhes, vamos colocar nesses termos. 

Pois bem, no dia em que levantaram as lanças com as cabeças de alguns nobres espetadas no alto delas, eu já estava definitivamente misturado no meio da plebe. Eu podia fazer isso, sem problemas. Ninguém nunca me parou pra perguntar quem eu era e se eu era um nobre. Acredito que não tinha essa aparência, nem as roupas que iriam me denunciar. 

E como eu sempre gostei de ler as obras dos iluministas, tinha a bagagem cultural para a conversação ideal com os revolucionários. Como um lobo em pele de cordeiro, me disfarcei e nesse processo também me salvei, me preservei. 

E foi do meio da multidão que compareci ao dia em que Maria Antonieta foi levada até a guilhotina. Estava muito envelhecida precocemente. Tinha passado por todas as infelicidades que uma mulher pode passar. Ela foi colocada numa carruagem simples e passou no meio da multidão. 

Digo, não houve insultos a rainha. Era de um silêncio absoluto quando passou no meio do povo. Ela estava altiva e em minha opinião não tinha perdido em nada sua majestade. Ao subir no lugar de execução pisou sem querer no pé do carrasco e pediu desculpas a ele. Sempre foi uma dama, em todos os sentidos. 

Mesmo em seus últimos momentos a rainha manteve seu jeito de ser. Era fina, elegante, educada e carismática. Sabe, quando penso que ela foi morta por aquelas mulheres vulgares da peixaria, que só sabiam dizer palavrões e ofensas, minha alma fica gelada. 

Existe muita injustiça no mundo e não é aquela que essas pessoas dizem lutar. Elas é que promovem todas essas injustiças. Na minha opinião mataram a rainha por ressentimento, ódio e maldade. Nada disso tem a ver com valores como honra, justiça e honestidade.

Ao longo da minha existência conheci muitos revolucionários, nunca encontrei essas qualidades em nenhum deles. Eram em sua grande maioria oportunistas, gente da chamada raia miúda, que vinham uma oportunidade de subir na vida, mesmo que â custa da morte de outras pessoas, mesmo à custa de muito sangue vermelho manchando as ruas de Paris. 

Quando a lâmina desceu e sua cabeça rolou para dentro do cesto eu não pude realmente acreditar no que via. Estava tudo acabado. O velho mundo havia desaparecido para sempre. E o novo mundo dos revolucionários franceses era simplesmente assustador...

Pablo Aluísio. 

O Vampiro de Versalhes - Parte 1

Maximilian
Esse era o nome. O único que ele assinava em uma série de manuscritos e cartas. Não se sabe até hoje com certeza sobre sua identidade, sua história. As cartas, amareladas e envelhecidas pelo tempo, foram encontradas em uma seção um tanto esquecida da biblioteca nacional em Paris. Algumas mostravam sinas de grande desgaste, outras estavam chamuscadas, como se tivessem sido jogadas em alguma lareira e depois salvas em um último momento. 

De uma maneira ou outra, o que chamou a atenção dos especialistas não foi o estado do material, mas sim seu conteúdo. As cartas traziam diversas datas, algumas com até 200 anos de diferença! Tempo demais para que um ser humano as tenha escrito de próprio punho. A vida humana, como todos sabemos, não dura tanto tempo. 

E aí vai a grande novidade desses textos. Além de terem sido escritos em um período muito longo de tempo, elas também abismaram os historiadores pois quem as escreveu garantia que era uma criatura da noite, um vampiro!

Ora, senhores racionais, homens de pesquisa, vampiros não existem! Então vamos partir para uma nova visão, a de que tudo não passaria de mera literatura. Tudo bem, poderia ser uma resposta viável e racional para tudo o que lemos ali, mas as mais antigas cartas tinham sido escritas muitos anos antes de Drácula, o romance de Bram Stoker. Pior do que isso, testes e perícias feitas nas cartas atestaram que elas eram legítimas e tinham sido escritas exatamente nas datas que traziam em seus cabeçallhos...

Um grande mistério...

As perícias também demonstraram que a caligrafia e o modo de escrever também pertenciam a mesma pessoa. Isso não fazia muito sentido. Como alguém poderia ter escrito as cartas se entre a primeira e a última havia se passado mais de dois séculos?!...

Vai ver esse tal de Maximilian estaria enfim dizendo a pura verdade, mesmo sabendo que essa verdade não seria aceita nos dias racionais que vivemos hoje em dia. 

Para tentar encontrar alguma lógica eu procurei pela pesquisa. Como pesquisador e historiador que sou, decidi correr atrás, pegar as datas que estavam nas cartas e procurar por informações que as comprovassem em jornais de época... Uma grande loucura, mas pensando bem, todos os tipos de historiadores possuem um elemento de loucura...

E através das próximas páginas vou reproduzir aqui o pensamento de Maximilian, suas impressões sobre o mundo, as coisas que vivenciou e viu ao longo de uma, pelo que consta, longa e interessante vida... 

E se possível pretendo finalizar essa longa pesquisa tentando encontrar sua verdadeira identidade. Vampiro ou não, gostaria de saber de uma vez por todas sobre quem teria sido esse misterioso ser que carinhosamente até pensei em chamar de "O Vampiro de Versalhes"...

Tempos de Juventude
Paris, 19 de setembro de 1850
Resolvi escrever essa carta para lembrar, lembrar de um tempo que não mais existe. Antes de mais nada, devo me apresentar. Basta me chamar de Maximilian. Esse não é o meu nome real, mas é o nome pelo qual sou chamado agora. Eu a encontrei há muitos anos e você me conheceu pelo meu nome real, meu nome humano. Penso e acredito que conforme for lhe contando minha história você saberá de quem se trata. E então tudo ficará mais claro em sua mente. Talvez você sinta pena da minha pessoa ou então lamente por não ter vivido todas essas histórias ao meu lado. Não podemos subestimar a mente e o coração de uma mulher apaixonada. 

Faz tanto tempo dessas lembranças que simplesmente penso que foi em uma outra vida, fui uma outra pessoa, um outro ser. Quando olho para o passado simplesmente fico pasmo pelas coisas que consigo me lembrar. A maioria das lembranças se foi pelas areias do tempo, mas outras sobreviveram, ficaram marcadas em minha mente para todo o sempre. Nem parece que vivi tudo aquilo que me lembro agora... 

Maximilian foi um jovem afortunado. Nasceu em uma família nobre, ligado à Casa de Bourbon, a casa real francesa. Foi criado brincando nos jardins de Versalhes com o pequeno Louis. Quem seria esse amigo de infância? Ora, seria o futuro rei Luís XVI, de triste memória, pois o destino quis que ele se tornasse o último monarca da França pré-revolução. O adolescente Maximilian  também foi grande amigo de juventude de Maria Antonieta. 

Quando ela foi para Versalhes, vinda de sua terra natal, a Áustria, a garota tinha apenas 14 anos de idade. Mal sabia falar a língua de seu futuro marido. Na época era comum as casas nobres trocarem casamentos entre seus membros. Era uma forma de selar a paz entre países e nações.

Ela iria se tornar a última Rainha da França, quem diria... Pessoalmente era uma mulher miúda, pequenina mesmo. Cabelos brancos, como era a moda na nobreza. Muito simpática, muito instintiva. Ao contrário de seu futuro marido, que muitas vezes não passava de um tonto bondoso, Maria tinha muita personalidade. Ainda lembro de seus grandes olhos azuis, que inclusive eram míopes como um morcego... Então quando ela parava seu olhar em você não significava que estava lhe paquerando ou algo do tipo, mas apenas que tentava enxergar alguma coisa...

Adorava cavalgar e tinha os melhores cavalos da França. Esse foi o principal elo de ligação da nossa amizade. Eu também, enquanto jovem ser humano cheio de vida, também adorava cavalgar. Maria saía nos bosques do Palácio de Versalhes e ficava horas cavalgando... Esse foi certamente o período mais feliz de toda a sua vida... A liberdade que desfrutou foi maravilhosa. 

O Rei Luís XV adorava Maria Antonieta e de certa maneira a protegia dentro da corte. Ele sabia que o jovem Délfim, herdeiro do trono, era um rapaz um tanto obtuso. Ele tinha esperanças que a futura Rainha tomasse o controle do reino quando ele já não estivesse mais vivo. 

Sua vida humana foi no luxo, na fartura e na festa, isso na corte mais luxuosa e excêntrica da Europa. Memoráveis foram as festas à fantasia promovidas pela amiga Antonieta, onde todos os membros da corte surgiam em fantasias belíssimas, com muita pompa e elegância. Tempos maravilhosos. 

Eu realmente não tinha muitos talentos pessoais, não era particularmente estudioso e tampouco me preocupava em construir o futuro com meus próprios méritos. Isso não existia, em absoluto. Só pelo fato de ser um nobre já me definia como um homem bem sucedido. E o fato de ter sido amigo pessoal do casal que reinaria na França me qualificava para qualquer cargo público que quisesse, onde pretendesse e com o salário que pedisse. Era assim naquele mundo de altos privilégios.

Nesses anos de puro deleite tive algumas experiências inusitadas com a futura Rainha. Numa delas fomos parar em um lugar bem longe do Palácio. Fazia um pouco de frio e paramos um pouco para recuperarmos o fôlego. Maria se aproximou e sentou em meu colo. Confesso que minha vontade era beijá-la, mas isso obviamente seria visto como uma traição à coroa. 

Mas não passou em branco. O jovem Maximilian não perdoaria nenhuma mulher, mesmo que ela fosse a prometida ao futuro rei. Desse momento nasceu um beijo muito terno e carinhoso à beira do lago azul. Foi um momento belo, de dois adolescentes descobrindo o amor. Não havia nada de malicioso ou cruel, mas obviamente a sexualidade veio à flor da pele. 

Vendo que as coisas estavam saindo um pouco do comum e do controle, Maria Antonieta se recompôs. Olhou para o horizonte e desconversou, dizendo que uma tempestade iria chegar e que tínhamos que ir embora logo.  Continuamos amigos nos anos seguintes. Como eu fazia parte da corte sempre a encontrava nos salões de baile ou nos corredores de Versalhes. Sempre que me via abria o sorriso. Sempre parecia realmente feliz em me encontrar e jamais voltou a tocar novamente na lembrança daquele beijo adolescente inocente. 

Respeitei suas decisões. Era uma mulher católica e estava comprometida. Não iria desrespeitar sua posição com alguma fala que de alguma maneira a chocasse. Ficou uma lembrança que apenas a nós pertenceu. Nunca mais falamos naquilo, mas o olhar, a maneira de olhar dentro dos meus olhos, deixava aquela mensagem subliminar de que ela não havia esquecido aquele momento. 

Era o nosso momento. Estava em nossas lembranças e isso era no final o que importava. 

Pablo Aluísio.