terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Morte em Andrômeda

Cap. 1 - A Viagem Sem Fim
O universo não é um lugar agradável para se estar. Na verdade é um ambiente hostil para a vida humana. Estamos em 3973. O ser humano finalmente conseguiu romper as barreiras que o deixavam preso na Via Láctea, a galáxia que é nosso lar. Agora uma nave denominada Station Eagle 183 finalmente conseguiu entrar em nossa galáxia vizinha, a espetacular Andrômeda! Foi uma viagem cósmica construída sobre muito sofrimento. Várias missões fracassaram. Centenas de astronautas morreram. Apenas a cosmologia e a física avançada conseguiram romper as barreiras do tempo e espaço.

A Station Eagle 183 é uma dádiva da tecnologia humana. Uma nave com 240 metros de comprimento e 90 metros de largura. Nela viaja apenas 5 tripulantes. O capitão Andrew Sizemore é o comandante da missão. Piloto de carreira. A primeira tenente Monroe é sua imediata. Some-se a isso o engenheiro Rick Sladd e a médica Lorelay Smith. O cientista Robert Calister é o encarregado científico da expedição. Poucas pessoas, alguns mais observadores poderiam dizer. Na verdade eles estão amparados por milhares de pessoas na Terra. São apenas seres humanos avançados que executam a missão em nome e supervisionada por milhares na base.

Uma viagem como essa é extremamente cansativa e coloca o ser humano no limite. Há perda de massa muscular, capacidade motora e desgaste psicológico extremo. Experimente ficar confinado dentro de uma nave, por mais espaçosa que ela seja, por dez anos. É enlouquecedor! Apenas os mais fortes suportariam algo assim. É realmente se doar por uma causa, dar uma vida para realizar algo que ficará pela história. Só que naquele momento, depois de tantos anos, só existia mesmo a exaustão psicológica da viagem. Todos os tripulantes estavam no limite. Alguns deles transformaram as marcas psicológicas em marcas físicas. O capitão, outrora um homem alto e forte, havia ganho muito peso e estava com os cabelos completamente brancos. Síndrome de Maria Antonieta. Ele passou por tantas pressões, por tantos momentos ruins e de frustração, que agora era apenas uma sombra do homem que um dia fora.

Robert Calister já era um homem velho quando a missão começou. Agora sofria de fortes dores na coluna. Ele era um sujeito sagaz e astuto, mas as dores físicas o tinham colocado à nocaute. Na verdade o que aconteceu foi que um gatilho psicológico foi acionado depois de alguns anos de viagem. O que havia começado com ares de heroísmo e frenesi na mídia, logo caiu no desinteresse popular. A missão seguia seus passos, mas o público na Terra não se interessava mais pelos resultados. Eles agora eram ignorados pela grande mídia na Terra. Dizia-se que tinham entrado em uma missão sem fim. Muitos inclusive nem acreditavam que estavam mesmo no espaço. A desinformação corria solto. E com tanta coisa negativa a tripulação acabou perdendo o entusiasmo, o vigor jovial. Estavam todos pra baixo, corroídos por viverem tanto tempo dentro de uma nave. O ser humano definitivamente não nasceu para esse tipo de situação. 

A missão tinha como objetivo principal explorar alguns planetas situados em zonas habitáveis de suas estrelas. Claro que uma galáxia como aquela tinha milhares de estrelas, sendo que algumas delas apresentavam planetas. Poderia haver vida neles? E se houvesse vida, como ela seria? Baseada em Carbono como em nosso planeta? Na Terra a base havia traçado um protocolo a se seguir, onde a expedição teria que orbitar pelo menos 5 exoplanetas bem promissores. A tripulação naquela altura já havia estudado tudo sobre eles, então agora era apenas uma questão de chegar em seu destino inicial. O que poderia haver de tão espetacular a se descobrir naquela região remota do universo? 

Cap. 2 - O Planeta de Prata
Relatório espacial Sxh - Ps0148934-HD 6114. O texto a seguir é verídico, com testemunhas assinadas por toda a tripulação da nave Eagle. O comandante da nave desceu até o planeta HD 6114-b, situado no sistema planetário que circula a estrela HD 6114, da galáxia de Andrômeda. Tal planeta recebeu vulgarmente o nome de Planeta de Prata por causa da grande incidência desse metal em sua base territorial.

Visualmente temos uma belo planeta visto de sua órbita, com uma coloração realmente linda ao depararmos com a luz de sua estrela incidente. Não há sinal de vida ou água liquida no planeta, apesar de sua temperatura ser considerada amena (algo em torno de 25 graus Celsius). O planeta apresenta cor cinza, muito em decorrência de suas enormes jazidas de prata. O comandante desceu ao solo sozinho, reforçado com pouca segurança pessoal a não ser uma pequena arma de laser.

Não tirou seu capacete por questões de segurança. Há alta concentração de elementos químicos pesados em sua atmosfera, portante apesar de ser um planeta em zona habitável não parece haver possibilidade de vida tal como a conhecemos. Há mares e lagos de prata derretidos, o que não deixa de ser algo incomum que vai até mesmo contra as leis da física que rege o universo. Como isso seria possível? Pergunta que segue sem respostas.

O comandante esteve à beira de um desses lagos prateados. E logo a seguir transcreveremos suas falas transmitidas por rádio até nosso espaçonave: "Trata-se de algo que nunca tinha visto. A Prata se encontra em estado semi líquido. Não é líquido que se coloque nas mãos e que venha a escorrer entre os dedos. Está mais para algo pastoso, como se fosse um creme com muita densidade. Visualmente é algo excepcionalmente belo, a visão mais bela que já vi em toda a minha vida!"

E segue a transcrição: "Estou aqui parado olhando toda essa imensidão de prata semi derretida. O chão na beira do lago é firme, sem sinais de vida marinha... Nenhuma concha ou algo semelhante... Algum ser vivo poderia viver em um lago de prata como esse? Penso ser impossível... mas espere... estou reconhecendo ondas, como se algo nadasse embaixo desse lago de prata... Meu Deus!..."

Depois de mais ou menos três minutos em silêncio o comandante finalmente respondeu: "Eu não estou louco... eu não estou louco... mas vou reportar o que estou vendo senhores... É uma criatura que poderia dizer ser uma figura feminina, com longos cabelos platinados e seios firmes.. só que ao invés de pernas temos longas nadadeiras.. Eu sei que vou passar como um homem louco, mas vou dizer mesmo assim... São sereias nesse lago de Prata! Meu Deus... Meus Deus... O que posso fazer? Vou imediatamente para a nave..."

Depois dessa transmissão as comunicações foram cortadas, nenhum sinal de rádio do comandante. Sensores indicam que ele foi atacado de forma violenta a 10 metros da nave. Criaturas que parecem saídas do lago de prata, rastejando rapidamente em sua direção, em terra firme. Não houve tempo de entrar na nave. O comandante foi atacado. As tais sereias de prata o atacaram com garras poderosas. Suas mãos foram tomadas de grandes garras.. Sua roupa de astronauta foi rasgada... E sua carne foi devorada enquanto as sereias voltavam para o lago de prata. Confirmamos vida extraterrestre hostil no planeta de Prata - Repetindo, confirmamos vida hostil e desconhecida no planeta HD 6114-b, vulgo Planeta de Prata. Esperamos por novas ordens. Câmbio desligo!". 

Cap. 3 - Fúria
A tenente Judy Monroe ficou furiosa com a morte do comandante da nave. Não apenas por ter sido trágico e colocado ela no comando da missão, mas também porque ela queria matá-lo com requintes de crueldade. Durante alguns anos da viagem o comandante a assediou sexualmente. E isso a enfurecia. A rebaixava como mulher e como profissional. Ela queria ter sua chance de vingança contra aquele bastardo, machista e escroto. Em seu diário pessoal de viagem ele gravou o seguinte desabafo:

"Maldito miserável! Que mil maldições o levem direto para as profundezas do inferno! Desgraçado maldito, cão maldito! Eu queria te matar maldito, esse direito era meu. Queria enfiar uma faca na sua barriga, ver o sangue escorrendo por sua boca imunda, queria derramar ácido dentro de seu cérebro aberto! Maldito! Maldito! Que mil maldições recaíam sobre você e todos os malditos que formam sua família. Que apodreça para sempre nos confins do inferno, que beije o piso das fossas infernais! Uma pena que jamais terei a oportunidade de cuspir em sua cova pois nem cova você terá no espaço. Eu vou te jogar no espaço junto com o lixo da nave... ah se vou!".

Só que esse prazer sórdido a tenente não teria. Não havia corpo para ser jogado no espaço. O comandante foi trucidado por organismos daquele planeta de prata. Claro que não eram sereias como ele havia comunicado. Na verdade seu cérebro já não funcionava direito na hora do ataque, fruto provavelmente de algum gás alucinógeno que entrou em seu sistema de respiração. Poderia haver algum problema no capacete. Como não havia como conferir tudo, pois o comandante havia sido arrastado pelas criaturas daquele estranho planeta tudo havia sido deixado de lado. O relatório de certa maneira ficaria inconclusivo.

So que navegar era preciso, viver não era preciso. Pelo menos em relação àquela nave espacial viajando pela galáxia de Andrômeda. A tenente, agora comandante da Eagle, abortou qualquer outra descida naquele planeta. A nave havia ficado com apenas 4 tripulantes agora. Situação complicada. Por controle remoto ela trouxe de volta a espaçonave pequena que havia levado o comandante até aquele planeta. Assim que ela foi acoplada a Eagle saiu de sua órbita. O destino agora seria o planeta mais escuro do universo. Apesar de não haver luz de sua estrela em sua atmosfera, ele ainda estava em zona habitável de seu sistema estelar. Era um dos destinos da expedição desde o começo.

E o planeta de prata? A tenente Judy Monroe ao lado de seu oficial de ciências concluiu que aquele planeta apresentava vida. Sua natureza era desconhecida. Eram criaturas que agiam como predadores e que habitavam as águas de prata derretida de seus mares e oceanos. Não eram sereias como o comandante havia descrito. Na verdade a atmosfera corrosiva do planeta continha algum gás desconhecido que causava alucinações nos seres humanos. O traje especial não protegia contra esse gás. Por isso o comandante morreu pensando estar sendo levado por sereias. Havia seres ali, mas definitivamente não eram sereias. Eram criaturas que podiam atacar, matar e comer um ser humano.

Qualquer outra expedição que fosse enviada para aquele planeta teria que descer em seu solo fortemente armados. E isso era tudo o que havia para reportar. Sem o corpo do comandante não havia como tirar maiores conclusões. Deixando o planeta de prata para trás a Eagle seguiria em frente em sua missão espacial programada para durar cinco anos em Andrômeda, a nossa galáxia vizinha.

Cap. 4 - A obra-prima do universo
Morrer no espaço é bom. Imagine o cosmos com toda a sua imensidão absurda e saber que nada nesse vazio imenso vive. O que pode ser considerado vida? Não há vida inteligente como a que conhecemos, essa é a verdade realmente. Não existe, o que existe são seres unicelulares, ou muito simples. Que vivem em fossas de água em planetas distantes, inóspitos. Universo, o grande vazio. O que me faz pensar que realmente não deve haver uma inteligência por trás dessa criação, porque se houvesse, haveria inúmeras civilizações pelo espaço e isso simplesmente não há. O ser humano parece ser a única vida inteligente, solitária, suprema do universo, nada parece ter alguma semelhança conosco. 

E assim, as viagens espaciais a longo dos anos se transformaram em grandes e infinitas viagens vazias, nesse deserto entre estrelas. Onde nada parece prosperar, onde nada parece viver, apenas o vazio imenso de estrelas quando rodeadas por planetas isentos de vida, lugares sem objetivos. Lugares totalmente remotos. E nada condizentes com a vida humana. E assim segue o homem na busca de estrelas, em busca de um espelho, em busca de algum ser que lhe seja parecido, mas que no final da estrada nunca parece ser encontrado. 

O que será da humanidade? Das estrelas? Do Sol? Que nem é uma grande esteira em termos de cosmos, mas que é a nossa Estrela. A estrela Sol vai explodir, vai entrar em supernova. E nada vai existir além dela. O nosso planeta vai ser pulverizado por chamas. Tudo o que nós conhecemos, todos os lugares que vivemos. Todas as regiões do Globo vão desaparecer em questão de segundos. A humanidade está fadada a ser destruída, a não ser que fuja para as estrelas, e isso vai ser algo bem complicado de se realizar, porque as distancias do espaço são abissais ao ser humano. O homem é um ser ridículo perto do universo. Um grãozinho de Areia numa praia distante, selvagem, em termos cósmicos, alguma coisa infinitamente medíocre. A não ser o fato de que ele pensa. Tem consciência de si mesmo, algo que os nem os mais enormes planetas e estrelas do universo possuem. Uma vez que são meros astros inertes e sem vida. A esterilidade parece ser a regra nesse universo sem fim. E o ser humano tem vida. Somos a obra-prima do universo.

Pablo Aluísio.

Kepler-452b

Cap. I - A Mensagem
Ao acessar aquele arquivo o astronauta teve acesso a um logo e confuso monólogo, de alguém que não mais respirava e existia. Era um registro até mesmo insano, onde as ideias iam atropelando os pensamentos. O áudio que seguia era também meio assustador. Nele se podia ouvir: "O meu nome é John. Nome comum, nada especial. Apenas um nome. Atualmente trabalho numa empresa de transportes inter espacial. Minha formação foi de engenharia mecânica, mas não encontrei emprego na minha especialização. O jeito então foi me virar. Acabei aceitando entrar na empresa que primeiro aceitou me ofereceu um serviço. Em 2873 ter um emprego é um verdadeiro milagre. O planeta Terra virou uma lata de lixo. Superpopulação e muitos problemas. Grande parte dos jovens se dedicam a atividades criminosas. Virou profissão. Os juízes são comprados e os governos socialistas que dominam o globo apenas criaram uma elite burocrática formada por propineiros e corruptos. Quem tem dinheiro domina esse pobre e infeliz planeta.

Já a elite financeira do capital parasitário foi embora, para as estrelas. Os avanços da ciência foram amplos, principalmente no século anterior. As enormes distâncias espaciais foram vencidas. Hoje em dia uma viagem rumo a um exoplaneta habitável é corriqueiro, habitual. Desde é claro que você tenha dinheiro suficiente para comprar uma passagem ou então ser uma mulher bonita. Mulheres bonitas ainda são valorizadas, principalmente se você vai embarcar numa viagem que dura dois anos terrestres. Claro, todas elas são submetidas a um regime servil, com base em prostituição. São garotas sexuais, nada mais. A maioria é bem simplória mesmo, burras. A educação virou item para apenas famílias milionárias. A única chance de uma garota pobre cair fora da Terra seria mesmo por sua beleza e ardor sexual, nada mais.

Kepler-452b é o destino final da minha viagem. Estou há onze meses no espaço. Viajo sozinho, levando equipamentos de manutenção para uma das bases coloniais no planeta. Esse foi um dos primeiros a serem descobertos pela ciência, lá pelo distante e primitivo século XXI. Hoje sabe-se que é um planeta rochoso, até adaptável para a vida do ser humano. A atmosfera é rala, mas renovável e o mundo tem uma primitiva vegetação, que garante um suporte de vida para seres inferiores. Não há vida inteligente, só os humanos, se bem que não diria bem que nossa espécie é o suprassumo de inteligência e coerência nesse vasto universo.

Pessoalmente nunca quis ir embora para Kepler. Não é o melhor dos mundos, é apenas um dos possíveis atualmente. Há muitas tempestades de areia e a radiação torna certas regiões inabitáveis... não é um resort de luxo. Talvez daqui mil anos se torne um lugar melhor, até que a raça humana jogue tudo no lixo novamente com guerras, ideologias de ódio e genocídios. Além disso o clima em Kepler é ruim, tem muitas variações de temperatura a cada dia. O sol de lá, chamado pelos cientistas de Kepler 452 (claro, seu idiota!) pode transformar os planaltos quentes como o inferno, mas tudo também pode mudar, gelando ao extremo polar em apenas algumas horas. Inferno, inverno, verão...Pensando bem, que lugarzinho miserável esse...

A vida é uma porcaria. Tenho consciência disso. Navegar pelo espaço sozinho, tendo apenas os corredores mal iluminados para compartilhar sua solidão, aumentam essa sensação. Muitas vezes você se pega pensando, pensando... fazendo um balanço nada louvável de suas conquistas e suas derrotas. Não é um exercício de prazer, muito pelo contrário. Quem suportaria? Para matar o tédio escrevo essas palavras ao vento...

A nave que estou não é grande coisa. Claro, é uma boa máquina espacial, robusta e forte, ideal para o trabalho pesado, mas fora isso nada demais. Eu tenho quatro ambientes para viver. A sala de controle, com uma mesa e uma pilha de maquinários para decifrar. Um pequeno quarto com cama que mais parece um submarino, uma nave auxiliar para situações de emergência, do tipo a nave vai explodir e você tem que ir embora para salvar sua vida e uma pequena “academia” para se exercitar. Ficar muitos meses no espaço, sem exercício físico, pode atrofiar seus músculos. Isso é muito ruim, pode ter certeza.

Na maior parte do tempo eu tenho que usar uma roupa especial para evitar que certos tipos de radiações que ultrapassam o titânio da nave me atinjam de alguma forma. Uma prevenção, só isso. É uma roupa que me aperta na virilha e me deixa desconfortável. Os testículos sofrem um bocado. Então eu vou checando os controles diariamente em rondas que são feitas de 3 em 3 horas. No resto do tempo eu leio, reflito sobre minha vida, espero o tempo passar. Vejo um pouco de internet e espero, espero, espero. No fundo ser um astronauta operário é um exercício de paciência, de esperar, esperar... e torcer para que nada dê errado. Por exemplo, um incêndio, por menor que fosse, me mataria em apenas poucas horas. Ele consumiria o oxigênio, me mataria sufocado. Uma morte terrível.

Mas, não vamos falar de morte. Isso é bem perigoso. Ultimamente eu tenho sentido um certo desconforto, um certo receio. É uma espécie de tontura leve que não vai embora. Se eu me levantar de uma cadeira com velocidade é bem capaz que eu perca meu equilíbrio. Talvez isso seja causado pela minha mania de coçar os ouvidos. Isso atinge o ouvido interno, levando a uma labirintite não diagnosticada. É uma sensação ruim. Certa vez quase caio e tive que ficar sentado, pensando em outra coisa para não me prejudicar. A mente é poderosa. Se você pensar em algo ruim é bem provável que isso aconteça mesmo. Penso que a mente tem poder de criar bem ou mal estar. Pensou, sentiu... Filosofia barata...

A solidão é boa algumas vezes. Não subestime o poder do silêncio. Eu tive um pai que havia sido criado por um homem obviamente limítrofe. Ele colocava todos os filhos em estado de alta tensão. Isso criou uma ansiedade que aniquilou essas pessoas na vida adulta. Ficaram todos ansiosos e neuróticos. Não conseguiam viver em silencio e nem conseguiam dormir bem à noite. Uma vida infernal. E eles criaram uma imagem altamente positiva do maldito que os criou. Deve ter sido algum tipo de proteção psicológica. É um tipo de auto elogio. Eu elogio meu pai, mesmo que ele fosse um desgraçado, só para indiretamente me auto elogiar. Olha como sou de uma família nobre, digna! Bobagem, você é só mais um nesse vasto, vazio e frio universo.

Olhando pela janela da nave aliás faço também esse exercício do divino. Se Deus existe porque ele fez um universo tão amplo, tão vazio e tão hostil? Milênios depois que a humanidade tomou consciência de sua própria existência miserável, ainda nos perguntamos porque somos os únicos seres inteligentes do cosmos! Por que Deus desperdiçou tantos planetas, tantas estrelas, em vão. Qual é a finalidade de uma estrela como VY Cma, se ela no fundo não serve para nada? É um mega-astro que não tem vida por perto, não gera calor e nem energia para nenhum ser vivo. Existe por existir! Pensando-se na mente de Deus fico mesmo na dúvida – por que Deus teria feito um colosso como aquele para absolutamente nada! Seria um exercício de egocentrismo em nível cósmico? Não sei, não sei, sou apenas uma poeira nesse vasto vazio. Nem sei porque existo, qual é a minha finalidade nesse meio. Minha nave seria engolida facilmente por esse monstro. Tudo iria virar átomo em segundos. Eu não sou nada diante daquilo. Pelo menos tenho a capacidade de pensar sobre isso.

Hoje até estou bem inspirado para divagações. Mas voltemos para minha viagem. Cá estou eu, no meio de um monte de equipamentos. Na colônia eles vão servir para tornar a vida por lá mais suportável. Não que seja uma colônia de férias. Kepler 452-b tem um cheiro de ovo podre. Pelo menos foi o que me disse a Silvia. Bela fêmea. Como solteirão não penso em me casar. Não quero, como dizia Machado de Assis, deixar para meus filhos a herança da miserável vida do ser, mas com uma loirinha como aquela, olha, colocaria toda a filosofia de bolso... no meu bolso. Gatinha suprema, olhos azuis, magrinha, rostinho de anjo. Pena que também nasceu com dedo podre para parceiros. Namorou e casou com um sujeito sem futuro, um matuto de interior. Vai passar o resto da vida trabalhando para sustentar os filhos e a ele próprio, claro. Alguns homens são perdedores por natureza, embora consigam casar com mulheres interessantes, não me perguntem como!

A Silvia ficou para trás. Ficou na Terra. Ainda penso nela muito de vez em quando. Não fui apaixonado, apenas tinha uma certa atração sexual por ela. Queria levar para a cama. Como era uma mulher com temperamento muito forte penso que um relacionamento a longo prazo teria sido cansativo. Além disso ela tinha uma certa pose de superioridade sobre mim, simplesmente por ser mais rica. Era filha de médica numa vila interiorana. Nesses lugares esse tipo de gente é idolatrada pelo povo. No meio de uma caldeira de fogo – como era essa cidade – ser um médico era quase como ser um Deus.

A Silvia tinha dedos alongados. Adoro dedos alongados. Traz para as mulheres uma certa personalidade. Mulheres fortes. Seu único defeito físico eram as pernas, que nos chamados tornozelos eram largos demais. Dedos alongados conseguiriam sobrepujar tornozelos de elefante? Daí uma boa discussão filosófica-existencial-sexual-petulante! Valha-me Deus, estou delirando nesse tédio do espaço. Ok, é uma forma de passar o tempo. Nossa mente pensa em coisas importantes, mas apenas um por cento do tempo. Nos outros 99 por cento é bobagem. Por isso a humanidade é uma trajetória de atos absurdos, decisões estúpidas e... tenho que parar meus pensamentos. Estou recebendo uma nova mensagem no computador da nave... O que seria?

Foi então que eu percebi que eu não conseguia pegar o equipamento. Minha mão ultrapassava a matéria! Meu Deus... o que aconteceu? Desesperado pulei da cadeira, mas essa não se mexeu! Nada parecia lógico. Nada fazia muito sentido, eu não conseguia sentir meu corpo... minhas mãos, nada! Apenas tinha a consciência de mim mesmo. Foi quando então olhei para trás e vi... era o meu corpo deitado na câmara de pressão. Foi então que entendi. Não era apenas uma experiência fora do corpo. Era algo mais. Eu não fazia mais parte desse mundo material, eu não estava no lugar certo... eu estava... morto!"

Cap. II - O Resgate
A nave Copernico VI captou os primeiros sinais de uma nave de transporte que parecia sem direção no espaço. Imediatamente o comandante David Hanley determinou que a Tenente Collette Wolfe fosse até lá para verificar o que tinha acontecido. Ao lado de dois outros tripulantes eles conseguiram ter acesso ao deck principal da espaçonave à deriva. Não parecia haver sinais de vida. Ao entrarem no posto de comando encontraram o corpo de um astronauta sem vida. O rádio transmissor estava ligado, mas não sintonizado em nenhuma estação de comunicação. Pelo estado do cadáver ele estava morto há pelos menos três semanas.

Depois de alguns contatos descobriu-se que o morto era o astronauta John White. Tudo o que ele falou poucos minutos antes de sua morte foram registrados pelo computador de bordo. Era um monólogo confuso, misturando pensamentos sobre o mundo e até mesmo suas preferências sexuais. Algo fora do razoável, fora do comum. Depois de alguns exames saiu igualmente o resultado de sua causa mortis. O sistema vital de sua nave falhou, espalhando monóxido de carbono pelo seu interior. Isso poderia explicar os registros confusos, mal elaborados, atropelados. Sinais de insanidade.

O Capitão David Hanley então recebeu um relatório completo sobre o ocorrido. Agora ele teria que tomar basicamente duas decisões: o que fazer com o corpo do astronauta morto e o que fazer com sua nave que fora resgatada. A nave pertencia à companhia de transporte até Kepler-452b; Por isso seria rebocada. Já o corpo de White seria enviado para o espaço dentro de uma cápsula. O universo seria o seu túmulo final. Para Hanley não havia sentido em manter aquele cadáver. Era algo fora de propósito. Ele seria levado ao espaço, tal como os antigos marinheiros das grandes navegações que eram jogados ao mar.

No resto eles deveriam seguir rumo à estrela Kepler-452. A expedição da Copernico VI tinha finalidade militar, mas também científica. O Dr. Angus Smith estava curioso sobre recentes mudanças na estrela em questão. Sentado ao lado do comandante ele analisava as possíveis implicações. sobre esse anã amarela. Segundo o cientista ela poderia estar no final de sua existência cósmica e isso poderia significar também o fim da colônia humana de Kepler-452b. "Malditos dados do universo" - dizia ele com clara consternação. "Mal escapamos de uma estrela com problemas e já estamos em outra situação delicada". Dr. Smith também estava intrigado com as recentes gravações da nave recentemente resgatada. "Esse homem morreu há 3 semanas, mas há registros de suas ações dentro da nave bem mais recentes. Acredite, em um deles ele fica falando que estava morto!" Assim concluiu: "Ou temos uma falha do computador de bordo em mãos ou então não saberia explicar essa contradição no espaço-tempo". Era um mistério de fato.

A Tenente Collette Wolfe e o Capitão David Hanley, comandante daquela missão, tinham um caso amoroso. A companhia espacial proibia tal conduta, mas as regras não se aplicavam bem quando você estava em uma jornada distante dentro do espaço profundo. E quem iria se impor ao comandante? Algum subordinado? Até porque a própria tripulação achava uma besteira aquela diretriz de não envolvimento amoroso. Se houvesse mais mulheres dentro da nave, todas elas seriam bem aceitas pois seriam, queiram ou não, parceiras em potencial para a ala masculina da equipe.

Isso porém não acontecia. A tenente Collette era a única mulher a bordo. Normal que se tornasse amante do capião, afinal estavam sempre juntos, principalmente em "reuniões" dentro do gabinete do chefe da expedição. Claro que era nesse momento que acontecia toda a pegação. A tenente era uma típica loira caucasiana, muito bonita, com olhos azuis e um corpo invejável. Seios volumosos e muita disposição para o sexo. Não era o tipo de mulher que iria ignorar seu lado sexual para viver em celibato por causa de tolas regras da companhia.

O curioso é que a tripulação de uma maneira em geral sabia do envolvimento do casal, mas respeitava bastante essa opção, evitando qualquer comentário melindroso e desrespeitoso em relação a eles. Seria uma quebra de hierarquia, algo não desejável naquela situação. Quem queria um motim acontecendo naquele lugar tão distante da Terra? Absolutamente ninguém. Apenas o Dr. Angus Smith, oficial de ciência da nave, se atrevia a fazer algum comentário, digamos, mais picante. Como gozava da plena amizade dos dois esses tipo de comentário era aceito sem maiores problemas. Geralmente Angus diziam coisas bem inocentes, do tipo que queria ser convidado para ser o padrinho de casamento, nada muito sério, nada ofensivo. Seria de mal gosto. Além disso ele era inegavelmente um homem da ciência. Preocupado com tudo o que acontecesse dentro da nave nessa seara.
  
Cap III - O Sepultamento
Foi o Dr. Angus que providenciou o "funeral" do astronauta John White, No começo ele pensou em preservar o corpo do morto, por causa das circunstâncias de sua morte. Depois optou por uma cremação e depois por jogar suas cinzas no espaço. Ele costumava dizer que era uma tradição dentro daquele tipo de expedição, algo que remetia aos grandes navegadores do passado, quando o corpo dos marinheiros eram jogados ao mar. Agora os que morriam em viagens espaciais eram colocados a vagar pelo vácuo do espaço pela eternidade. Eles não voltariam ao pó, mas ao cosmos, de onde todos nós viermos. Sem dúvida era algo bem poético.

Após o sepultamento espacial do astronauta John White, começaram as análises dentro da nave Copernico VI sobre sua morte. Tecidos do corpo dele foram retirados e eles corroboram as pesquisas coordenadas pelo Dr. Angus Smith. Sua causa mortis foi definida como intoxicação por excesso de CO2. Provavelmente algum erro no sistema de suporte de vida de sua nave falhou. Com isso sobrou CO2 para respirar. A falta de oxigênio também contribuiu para seus momentos de insanidade. Esse era um bom diagnóstico do que de fato teria acontecido. Foi justamente essa a conclusão que foi apontada em sua necropsia.

Fora dos autos porém havia mais. O Dr. Angus Smith também localizou uma estranha forma de vida biológica dentro dos tecidos do cosmonauta morto. E eles definitivamente não deveriam estar lá. Era uma curiosa mistura de vegetal e animal, dentro de uma mesma célula. A estranha forma de vida poderia ser classificada dentro da biologia do planeta Terra como uma espécie de fungo, mas isso seria simplificar demais uma questão mais complexa. Era nitidamente algo novo.

A primeira questão que veio era sobre a forma como aquele "fungo" microscópio teria entrado dentro do organismo do astronauta John. Como ele teria se contaminado com aquilo? Veio através da respiração? Foi um fungo que surgiu dentro da carga da nave e ele a respirou? Foi contato com algum tipo de vegetal de algum planeta desconhecido? Perguntas, perguntas, bem relevantes, mas sem respostas. Por via das dúvidas e seguindo o protocolo de quarentena o Dr. Angus decidiu isolar aquela forma de vida. Ele conseguiu extrair o micro organismo dos tecidos do falecido, para depois o colocar dentro de uma embalagem isolada do meio ambiente. Era vital isolar ele do sistema fechado em si da Copernico VI.

Depois de um tarde trancado dentro do laboratório da nave, o Dr. Angus finalmente subiu para tomar sua refeição ao lado dos demais tripulantes da Nave Copernico VI. Aquela era uma grande nave exploradora, com ênfase em transporte e resgate. Era uma das joias da frota da companhia. Porém com intenso uso de tecnologia não era necessária uma grande tripulação a bordo. De fato havia apenas seis pessoas ali.

Além do Dr. Angus, do comandante David Hanley e da tenente Collette Wolfe havia ainda três especialistas. Um era o responsável pelo setor de segurança, Justin Crowe. Ex-mariner ele era responsável pelas armas dentro da espaçonave. Qualquer problema que envolvesse força bruta também seria com ele. Ben Hawkins, apelidado de "Software", era o especialista em programas do sistema de computação da nave. Além disso mantinha todos os sistemas de comunicação em bom estado. Por fim havia Ernst Lodz "Hardware", a quem incumbia supervisionar a parte mecânica da espaçonave. Tudo o que fosse metal pesado, aço e ferro era com sua área; Juntos formavam um bom time que em breve seria testado aos limites da força humana.

A expedição da nave Copernico IV completou dez meses. Era um espaço de tempo considerável. Outras expedições já tinham registrado aumento da tensão entre os tripulantes após tantos meses no espaço. Claro, a tecnologia ajudava a dissipar grande parte dessa tensão que era essencialmente psicológica, mas o fato insofismável era que o corpo humano não havia sido projetado para esse tipo de coisa. O fato de terem encontrado um astronauta morto em uma nave de transportes na mesma rota não ajudava a melhorar os ânimos. Pelo contrário, os membros da nave passaram a ter momentos de melancolia e depressão, algo que o Dr. Angus sabia ser perfeitamente normal. Era um encontro nada sutil com a própria mortalidade. De repente todos se viam na pele do astronauta morto, vagando pelos confins do universo. Um pensamento nada reconfortante.

Cap. IV - A Loucura
Naquele dia o Dr. Angus falaria com a tripulação. Seria uma pequena palestra sobre um planeta conhecido como Osíris. Eles iriam passar por aquele sistema solar. Havia duas coisas interessante naquele exoplaneta. A primeira e mais óbvia é que ele estava sendo absorvido por sua própria estrela. Estava tão próximo dela que parte de sua crosta estava em colapso, derretendo a temperatura impensáveis para a mente humana. Isso criava uma "cauda cósmica" no planeta, fazendo com que ele tivesse uma aparência próxima de um cometa. Nessa cauda poderia haver a formação de material orgânico, uma antiga teoria científica que deveria ser comprovada pela missão. Caso traços de H2O ou carbono fossem detectados então seria possível chegar mais próximo da tese que explicaria o surgimento da vida no universo.

Só que não seria algo fácil de realizar. Dois membros da tripulação deveriam pilotar uma nave auxiliar em direção ao planeta em colapso. Eles deveriam cruzar a espessa cauda de detritos de seus restos e com instrumentos precisos coletar material para análise. Seria quase um suicídio planejado, só que para fins puramente científicos. O próprio Dr. Angus estava disposto a fazer parte disso, porém precisava de um piloto para a nave. A companhia prometia recompensar financeiramente os que se voluntariassem para essa empreitada. Aposentadoria precoce e todos os benefícios para os familiares dos astronautas envolvidos.

Ben Hawkins, o "Sofware", se voluntariou. Ele tinha experiência como piloto, além de ser uma expert nos instrumentos de computação. Foi um alívio, pois para Angus havia o medo de ninguém se apresentar como voluntário o que iria causar um problema social, uma vez que a diretriz da companhia havia determinado que caso ninguém se apresentasse a convocação seria compulsória. Escalado os dois tripulantes que iriam na nave de pesquisas, o resto dos membros da tripulação foram dispensados.

O Capitão David Hanley ficou um pouco receoso. Afinal existiam riscos e o chefe de ciência da nave poderia morrer. Eles estariam expostos a temperaturas que chegavam a mil graus celsius. Mesmo sendo uma nave especialmente construída para situações extremas o perigo estaria envolvido. Não era crível ignorar os riscos. Numa última tentativa Hanley tentou persuadir Angus, mas ele não tinha interferência em assuntos puramente científicos. Nesse campo o Dr. Angus era soberano, sem se submeter a nenhuma hierarquia. Os dados estava lançados e como dizia Einstein, Deus não jogava dados com o universo.

Mal a viagem da nave auxiliar tinha começado e problemas já surgiam no horizonte. Os controles estavam falhando. O piloto, conhecido pela tripulação como "Software" estava começando a perder a paciência. O Dr. Angus estava ao seu lado na cabine principal, mas sua função era científica e não mecânica. Ele logo percebeu que "Software" estava com algum problema. Ele, sentado em sua cadeira, suava demais. Pior do que isso. Muito vermelho, parecia que estava contendo uma fúria em seu interior. Era um sujeito que parecia que ia explodir a qualquer momento!

- Merda, merda, mil vezes merda! Malditos mecânicos da companhia! A nave não está respondendo aos meus comandos - gritou Software.

- Calma, calma... se não houver meios de conserto vamos voltar para a Copernico o mais rapidamente possível. Vamos abortar a missão... vamos...

Não houve tempo para que o Dr. Angus terminasse a sua frase...

O piloto pulou em seu pescoço com fúria insana. Ele colocou suas mãos no pescoço do cientista e parecia disposto a matá-lo ali mesmo! Ambos caíram no chão e rolaram pela cabine da nave. A situação era desesperadora.

- Tudo isso é você, seu filha da puta! Eu vou te esganar até a morte, MALDITO desgraçado! Eu vou te matar agora como a um cão! - A fúria e o ódio de Software não tinha nenhuma racionalidade. O Dr. Angus, mesmo sendo estrangulado ainda raciocinou e percebeu que seu piloto estava contaminado por algum tipo de agente externo. Teria sido o estranho mofo que havia vitimado o outro astronauta da nave que eles encontraram?

- Morra cão! Morra seu pederasta de merda! Eu vou te matar! Eu vou acabar com sua raça! - continuava a gritar Software.

Bom, numa situação delicada como aquela onde um dos homens está completamente insano, a racionalidade era uma vantagem. O Dr. Angus sabia bem disso. Mesmo no chão ele conseguiu se apartar de seu agressor. Correu para o outro lado da cabine da nave e pegou um pesado equipamento, o que nos séculos anteriores era conhecido como extintor de incêndio. Sem pensar duas vezes partiu para cima de Software com ele.

O som abafado e o sangue vermelho jorrando pelas paredes mostravam bem o que havia acontecido. A porrada tinha sido tão grande que parte do crânio de Software havia se partido ao meio. Foi um golpe violento. Seus miolos, pedaços de tecidos e sangue, flutuavam dentro da cabine... era algo pavoroso... um cenário de filmes sanguinários de terror, daqueles bem trash...Software caiu no chão como um saco de batatas acorrentado. óbvio que estava morto. Não houve um último suspiro. Ele parecia fora de si, como se algo tivesse tomado conta de seu cérebro! Era bizarro demais para descrever. Foi uma pancada certeira, coisa de quem conhecida anatomia. O Dr. Angus sabia onde atingir para acabar com seu opositor.

Ainda ofegando, respirando rapidamente, ele foi até a mesa de controle da nave e ligou para a Copernico!

- Atenção nave mãe! Abortei a missão!

- O que houve? - Quis saber o comandante.

- Fui agredido pelo piloto. Ele teve uma fúria insana quando saímos. Quase fui assassinado!

- Mas você está bem? E o Software?

- Lamento comandante. Ele está morto. Eu tive que acertá-lo na cabeça. O sujeito queria me matar. Foi legítima defesa.

- Volte imediatamente! - O capião parecia chocado com o que ouvira.

E assim a nave auxiliar deu meia volta. As pesquisas, tão importantes, teriam que ficar para outra ocasião.

Cap V - A Doença
A forma como se deu a morte de Ben Hawkins "Sofware" pegou todos da nave de surpresa. Ninguém esperava por algo assim. Ainda mais com o envolvimento do pacífico Dr. Angus Smith. Assim que houve o ataque o cientista entendeu que poderia ser um efeito da contaminação qua havia destruído mentalmente o astronauta John. Era o mesmo tipo de comportamento irracional. Então assim que se recuperou do ataque, o Dr. Angus foi até o laboratório da nave Copernico VI. Ele pegou algumas amostras do sangue de Software e levou para observações. Não deu outra! Ele estava sim contaminado pelo agente patológico do astronauta morto. E isso obviamente era uma péssima notícia.

Significava acima de tudo que o ar da nave poderia estar comprometido. Bem, se você está preso dentro de uma nave com espaço limitado, indo para o distante planeta Kepler-452b, uma jornada que iria durar meses, isso era definitivamente algo ruim. Ao receber essas notícias o Capitão David Hanley, comandante da expedição, franziu a testa. Ele poderia esperar por qualquer coisa, menos por uma contaminação viral dentro de sua espaçonave.

- O que podemos fazer então? - Indagou o comandante.

- Vamos seguir o protocolo de emergência biológica. Antes de qualquer coisa leve o corpo do Software para a cremação. Depois despeje seus restos mortais para o espaço profundo. Há uma forte taxa de contaminação desse vírus. E partindo-se do fato de que há um período de incubação envolvido... então todos precisam entrar dentro do novo programa.

- Como manter alguém em quarentena dentro de uma nave como essa?

- Penso que todos agoram precisam usar o equipamento completo, mesmo dentro da nave. Capacete, macacão, luvas, tudo. O sistema do equipamento já tem um sistema de isolamento contra agentes externos. Os tripulantes só devem usar roupas comuns dentro de suas cabines individuais. Fora disso, em ambientes de compartilhamento comum, todos devem ficar equipados. - Disse, sabendo da gravidade da situação, o Dr. Angus.

- Ok vamos reunir toda a tripulação para  a comunicação - Determinou o comandante.

Claro a nova ordem foi mal recebida. Ficar com todo aquele pesado equipamento de astronauta dentro da nave seria cansativo e estressante. Além disso se um tripulante já havia sido contaminado, os demais também tinham sido expostos ao vírus. E se não estavam doentes, provavelmente tinham imunidade. O argumento era muito bom, racional até, embora também tivesse elementos de roleta russa. Mesmo assim o Dr. Angus não quis pagar para ver. Todo mundo agora teria que andar completamente equipado e isolado do meio externo. Era talvez a única forma de salvar a vida de todos aqueles tripulantes.

Ernst Lodz "Hardware" era o negro da nave. Ele havia nascido num país muito pobre do norte da África. Porém lutou para subir na vida. Estudou muito e se tornou engenheiro mecânico. Para alguém com sua origem foi uma vitória enorme. Hardware era muito bem visto entre a tripulação. Simpático, sempre tinha um sorriso a oferecer. Também funcionava como uma espécie de "alívio cômico" quando o stress de ficar meses dentro de uma nave começava a pesar entre todos. Tinha sempre uma piada para animar.

Porém sua personalidade simpática estava mudando. Ele escondia isso de todo mundo, mas pensamentos negativos, criminosos mesmo, começaram a se tornar muito frequentes em sua mente. Ele procurava se acalmar, indagando a si mesmo o que estava acontecendo. Nesse momento ele deveria ter procurado o Dr. Angus. Um dos sintomas do novo agente biológico dentro da nave era a perda do lado racional da mente. Quando se começava a delirar, era tempo de procurar ajuda.

Nos sistemas da nave, trabalhando, uma ideia fixa começava a entupir seu pensamento. Como um mantra, sempre surgia frases do tipo "Eu tenho que estuprar a tenente", "Eu tenho que estuprar aquela vadia"... "Essa puta está me dando mole. Tenho que violentá-la com ferocidade" ou pior do que isso "Eu vou empalar essa escrota!". "Eu quero esfolar essa branca, ela vai gritar... ela vai gritar.. grite branca suja, grite vadia dos infernos". Eram pensamentos violentos, de origem criminosa. Nunca antes, jamais, Hardware havia pensado em fazer mal para a tenente, a única mulher da tripulação. Isso era absurdo! Em um dos momentos de maior loucura Hardware precisou sentar no chão, colocar as mãos em seu rosto e gritar sozinho "Meu Deus, o que está acontecendo comigo?"

Era óbvio que ele estava contaminado pelo vírus, fungo ou seja lá o que aquilo fosse. Seu amigo Software já tinha surtado completamente. Seria esse o seu caminho dali para frente? De uma maneira ou outra Hardware começava a perder a batalha para a insanidade violenta. Ele tinha grandes ereções na hora do serviço e toda aquela ladinha de estuprar a tenente voltava com força em sua mente. Ele fantasiava como isso iria se dar. Ele começava a sorrir de forma louca quando pensava no rosto de pavor e medo da tenente. Suando por todos os poros ele pegou o comunicador e ligou para ela.

- Tenente, venha aqui embaixo, preciso de uma ajuda! - Ela prontamente atendeu e disse que já estava descendo. Mal sabia a armadilha de terror e medo que estava se metendo...

Aquilo tudo foi bem trágico. Ernst Lodz "Hardware" quis estuprar a Tenente Collette Wolfe no lugar mais escuro e isolado da nave, mas recebeu o troco que merecia. A Tenente tinha uma arma de proteção pessoal que ela nunca se separava. Um estilete afiado com o melhor aço fabricado na Terra. Ao perceber que estava em perigo não esperou por muito tempo... atingiu com um golpe certeiro a garganta de Hardware. Foi morte instantânea. Ao jorrar o sangue, o mecânico viu também se esvaziar sua vida.

Cap. VI - A Explosão no Espaço
A tragédia estava consumada. O sangue molhou a roupa da Tenente e em pouco tempo ela estaria infectada. O mesmo aconteceu com o comandante David Hanley. Foi tudo tão devastador. Em questão de horas ambos estavam mortos. Apenas o Dr. Angus Smith continuava vivo, muito provavelmente por ter uma imunidade natural ao vírus. Sim, era um vírus. O próprio Angus resolveu escrever no diário de bordo sobre suas descobertas.

O texto continha muitas informações. Ele escreveu:

"Aqui escreve o Dr. Angus Smith. oficial de ciência da nave Nave Copernico VI. Há algumas semanas resgatamos uma nave à deriva no universo. Dentro encontramos o corpo do astronauta John White. Todos os demais tripulantes também morreram, mas não havia corpos dentro da nave. Esse astronauta deixou um registro muito estranho, onde delírios e devaneios se misturavam com a realidade do que havia acontecido. Fiz exames de necropsia em seu cadáver e descobri que ele havia sido infectado por um organismo de origem desconhecida. No começo pensei tratar-se de algum tipo de fungo, talvez ingerido na alimentação por acidente. Porém hoje, diante de minhas últimas pesquisas, descobri que se trata de um vírus. E é um vírus até bem conhecido da ciência. Trata-se de uma evolução viral da família do Coronavírus. Extremamente mortal, altamente evoluído. Se as versões anteriores atacavam os pulmões, levando os pacientes à morte, esse aqui ataca a região cerebral, desfigurando a área relacionada ao aspecto racional do pensamento humano. Por isso o comportamento dos infectados se torna violento, hostil, dando vazão aos sentimentos mais básicos do ser humano, como violência, sexo e ira. Não há sinais de cura para essa nova evolução e prevejo um desastre para a colônia humana em Kepler 452b. Caso uma infestação viral como essa chegasse naquela comunidade teríamos o extermínio de praticamente toda a população que lá vive. Por essa razão, sob minha total responsabilidade, decidi explodir a nave Copernico VI. Apertarei o botão de auto destruição e depois irei me suicidar. Situações extremas, exigem medidas igualmente extremas. Assinado, Dr. Angus Smith."

E assim foi feito. No mesmo momento ele acionou o protocolo de auto destruição. Depois disso entrou em uma cápsula feita especialmente para aguentar grandes explosões. Ele não tinha esperanças que aquilo fosse aguentar tamanha explosão, mas foi em frente. Em poucos minutos perdeu a consciência completamente. Em instantes ele deixou de existir. Nenhum pensamento, nenhuma consciência. Simplesmente o nada absoluto. Nenhuma alma para salvar, só o vácuo completo da inexistência. Faltava menos de 30 segundos para a nave explodir...

E a contagem foi chegando ao fim... 4,3,2,1...

E tudo aquilo que uma vez havia existido e todos aqueles lugares por onde eles tinham andado... simplesmente desapareceram para sempre, moídos em milhares de pequenos pedaços de metais retorcidos e incinerados...

A vida humana de milhões estava salva... pelo menos por enquanto...

Cap. VII -  Vênus IV
O Dr. Angus abriu os olhos lentamente. Ele mal acreditava naquilo. Ele estava vivo! Sim, ao entrar em uma cápsula de sobrevivência pouco antes da explosão da nave, ele teria salvado a própria vida. Na realidade nem ele acreditava que a cápsula iria sobreviver a tamanha força da explosão, mas era fato. Feito de titânio massivo, com forma arredondada e uma minúscula escotilha, que aguentava até mesmo a explosão de uma bomba atômica do século XX, o fato é que aquele pedaço de metal preservou a vida do cientista. Sua cápsula foi resgatada pela nave de busca e resgate Vênus VI. Angus estava vivo, quase por um milagre, mas tinha muita a explicar para a companhia. Afinal a nave destruída custava em torno de 899 milhões de dólares e isso sem levar em conta a carga que havia sido perdido para sempre no vácuo infinito do espaço.

Assim que recobrou a consciência Angus reconheceu o médico que o atendia. Era o Dr. Fergunson. Ambos tinham estudado na mesmo universidade. O especialista pediu calma e paciência a ele. Afinal médicos e cientistas costumam ser péssimos pacientes. A conversa que havia começado cordialmente, falando de amenidades do passado, logo se tornou mais trágica porque Angus foi informado que iria perder parte da perna esquerda. Era algo que ele sentia muito. A explosão foi tamanha que seu corpo foi sacudido como uma bola de tênis dentro da pequena e robusta cápsula. Nesse processo sua perna foi praticamente esmagada. Não havia como salvá-la.

A cirurgia de remoção da perna necrosada foi relativamente simples e bem sucedida, uma vez que as técnicas médicas no futuro eram altamente sofisticadas. O médico praticamente nada fazia, sendo toda a técnica efetuada com precisão por um robô especialmente programado para esse tipo de procedimento. Com isso ficava afastado o risco de um erro humano em tal ato incisivo. Com a perna amputada, Angus permaneceu em repouso por mais de 20 dias. Mal conseguia sair do estado de torpor, uma vez que havia sido medicado com potentes remédios e drogas usadas para o pós-operatório. Ele tencionava partir logo para a recuperação, para se adaptar melhor com a prótese robótica que iria usar dali em diante em sua vida.

Depois da breve recuperação Angus tomou conhecimento dos efeitos e sequelas deixadas pela explosão que ele próprio detonou, como medida de desespero e cautela. No fundo queria evitar que toda a população da colônia em Kleper fosse contaminada. Ele iria passar por todo um longo procedimento administrativo dentro da companhia onde seria decidido se ele havia tomado a decisão certa, se ele tinha poderes para fazer o que fez. Já de antemão descobriu por breves contatos que a direção da companhia não estava nada satisfeita com o fato de ter perdido uma nave que valia milhões de dólares. Como toda a empresa o que pesava ali naquela hora era o fator puramente econômico. Eles pareciam não se importar com as vidas que poderiam ser perdidas caso uma nave contaminada chegasse em uma colônia indefesa contra esse vírus.

Era a velha luta entre saúde e economia. Angus, como homem de ciência, nem pensou duas vezes. Ele colocou as vidas das pessoas em primeiro lugar. A companhia, como toda empresa, pensava diferente. Aliás o fato de uma nave daquelas ter sido destruída pelo simples comando de um oficial de ciência a bordo, fez com que o comando de auto destruição das demais naves da companhia fosse desativado. Jamais isso iria acontecer novamente. Apenas o alto comando em Aldebarã III, poderia agora dar esse tipo de comando. Porém de uma coisa todos poderiam saber: Angus não encontraria moleza dentro do processo. Ele seria atacado para servir como exemplo. Aquilo não iria passar em branco. A companhia ira tentar destruir sua vida, tomando todos os seus (poucos) bens. A possibilidade de prisão em uma colônia distante também não poderia ser descartada. 

Cap. VIII - Aldebarã III
O Dr. Angus finalmente desembarcou no planeta Aldebarã III. Era lá que estava a sede da companhia e era lá que ele finalmente seria julgado por ter apertado o botão de autodestruição da nave. Ele sabia que vinha chumbo quente pela frente. Embora fosse um homem racional e da ciência, o Dr. Angus também tinha suas necessidades, entre elas a de ter, de tempos em tempos, uma companhia feminina. Assim no sábado à noite ele decidiu que iria até o night club "Lujuria", um lugar repleto de garotas de programa. Com decoração que lembrava as velhas casas da Espanha colonial, ele procurava relaxar um pouco. Esfriar a cabeça, quem sabe ter um pouco de sexo pago da melhor qualidade.

Enquanto apreciava o show de striptease, foi tocado no ombro por uma mulher que ele nunca havia visto antes. Ela se chamava Eli Gromberg. Uma loira bonita, com olhos azuis e seios fartos, mas que provavelmente eram falsos. Angus pensou tratar-se de uma acompanhante, mas não. Ela era na realidade uma agente do serviço secreto do Estado. Havia algo que Angus precisava saber. Certo, aquele não era o melhor lugar para esse tipo de conversa, mas diante das circunstâncias, era o que havia para o momento.

Angus ficou cético. Não acreditou, pensou que era algum tipo de brincadeira ou pegadinha. Não era. E ele soube disso a partir do momento em que Eli lhe mostrou seu distintivo oficial. Algo muito sério estava por vir. Ela perguntou se poderia conversar com ele em um lugar reservado. Naquela boate havia vários pequenos quartos onde as garotas faziam danças particulares para seus clientes. Angus, um pouco assustado ainda, aceitou a sugestão e eles foram para um lugar nos fundos. O cheiro era ruim, havia uma sensação de que alguém havia ejaculado bem ali, naquelas cadeiras de tecido vermelho brega. Porém era um lugar conveniente. Não haveria escutas e eles poderiam conversar sem medo de que seriam espionados.

- O que está acontecendo aqui? - Quis saber Angus ao sentar-se...

- Há muito mais do que você supõe sobre o que aconteceu em sua nave. Algo maior e mais... sinistro.

- O que poderia ser pior do que uma tripulação inteira morta e uma nave explodida no meio do cosmos? - Era uma pergunta válida por parte de Angus.

- Bom, o vírus não foi obra do acaso... - Começou lhe explicando Eli.

- Como assim? O que está havendo? - Angus estava perplexo...

- O virus foi criado pela companhia. Ele seria usado como arma biológica em planetas da fronteira. A intenção era exterminar qualquer inimigo. O vírus teria alta carga de contaminação. Iria deixar os soldados das tropas inimigas completamente loucos e insanos e eles próprios iriam se matar, antes das tropas mercenárias contratadas pela companhia chegassem em terra firme para fincar sua bandeira, tornando esses novos planetas como propriedade da empresa!

- Meu Deus, isso é muito grave... estou completamente pasmo...

Eli continuou:

- O que aconteceu com sua nave foi um erro, um efeito colateral. A arma biológica na verdade estava sendo transportada pela nave...

- Do astronauta John! - Completou Angus

- Isso mesmo! Acontece que o vírus tinha uma carga de contaminação tão alta que atravessou todos os recipientes de contenção. Contaminou todos na nave. Todos ficaram loucos. Quando vocês entraram nela trouxeram o vírus para a nave de vocês. Então aconteceu toda essa tragédia!

Angus não conseguia acreditar no que ouvia. Tantas pessoas mortas, ótimos astronautas, que nada tinham a ver com esse experimento bélico, letal e ilegal. Angus começou a ficar furioso.

- A companhia precisa pagar por isso. Ser responsabilizada! As mortes não podem ficar em vão...

- Exatamente. Estamos na cola da companhia. Por enquanto ainda não temos todas as provas necessárias para levar a um julgamento, mas esperamos contar com você Dr. Angus - Era uma esperança e um apelo da agente Elis.

- Eu vou contribuir sem dúvida, vou contribuir com todas as minhas forças. Esses desgraçados precisam pagar pelo que fizeram - concluiu o Dr. Angus, cerrando os dentes com raiva. 

Cap. IX -Seis homicídios!
O julgamento do Dr. Angus começou com toda a pompa e circunstância que o evento exigia. Na verdade ele seria julgado por 3 juízes diferentes. Um deles representava o povo. O outro representava o interesse da companhia. Um terceiro representava a classe dos trabalhadores espaciais. Do voto desses homens iria ser decidido o seu destino. Logo no começo da sessão o Dr. Angus teve uma péssima surpresa. O promotor, representado o Estado, decidiu adidar a peça inaugural de acusação. Inicialmente ele estava sendo acusado de destruir uma propriedade da companhia, a própria espaçonave. Porém as coisas pioraram. Ele também foi acusado da morte dos seis astronautas da tripulação. Iria responder por seis homicídios!

Quando ouviu isso o Dr. Angus entrou em choque, ficou completamente chocado! Seu advogado alegou que aquilo era um absurdo completo, que violava os direitos constritucionais de seu cliente, que não havia tempo para protocolar uma defesa hábil para uma acusação de grande porte! Era claramente uma armadilha jurídica para destruir Angus. A junta de juízes então deu a palavra para o promotor público do caso, que assim se manifestou:

- Prezados juízes, o réu tem que ser responsabilizado pelos crimes que cometeu. Inicialmente a promotoria pensava tratar-se apenas de um caso de crimes contra o patrimônio, porém ao analisarmos os registros vimos que seis astronautas morreram nesse evento. Não há registros de comunicação da tripulação que corrobore a versão do réu. Pelo contrário, o que temos é um evento objetivo. E qual seria ele? Ora, em um momento tínhamos uma tripulação de seis bons profissionais do labor espacial. Depois da explosão estavam todos mortos. Ao olhos da promotoria temos claramente um caso de assassinato em mãos. O que levou esse cidadão a tomar tal atitude ainda é um mistério, mas sabemos que essas pessoas inocentes morreram...

Sentado na cadeira, ao lado do advogado, o Dr. Angus colocou as mãos no rosto. Ele havia caído em uma armadilha mortal! Puxando seu advogado pelo terno, o Dr. Angus o informou de algo precioso. Que sim, havia registro de tudo o que aconteceu antes da explosão. Eram relatórios enviados com regularidade para a companhia, informando tudo o que havia acontecido a bordo, inclusive informando das mortes dos astronautas. Eles já estavam mortos quando a grande explosão aconteceu. Ouvindo tudo isso o advogado foi para o centro do tribunal. Era seu momento de falar.

- Peço ao tribunal presente que seja dado mais tempo ao réu, pois novas acusações foram feitas e será necessário a confecção de novas preças processuais para sua defesa. Estamos aqui na iminência de se violar o direito da ampla defesa do acusado. É necessário dar tempo para que tenhamos conhecimento de todas as provas que foram anexadas ao processo. Além disso queremos ler, com a devida atenção, todas as acusações da promotoria. Assim peço adiamento e designação de uma nova data, para uma nova sessão de julgamento.

Diante do pedido, os juízes deliberaram. O juíz da companhia negou o pedido (era de se esperar de um juiz sem imparcialidade, aliás uma aberração jurídica, é bom frisar). O juiz do povo acatou o pedido. Por fim, o juiz dos empregados deferiu o pedido. Por 2 votos a 1, o pedido de uma nova sessão de julgamento foi deferida com data marcada para dali a 30 dias. Era um momento de respirar e se preparar para uma defesa adequada. 

Cap. X - Julgamento e Sentença
O Dr. Angus sentiu o gosto amargo da injustiça. Seu julgamento levou seis meses para ser concluído. Uma interminável ida e vinda de recursos, manobras jurídicas e... puxadas de tapete. Fragilizado e em posição de inferioridade, o Dr. Angus jamais conseguiu provar que os demais tripulantes já estavam mortos quando a nave explodiu no espaço. Os relatórios que afirmava existir jamais foram encontrados. Uma situação que ele não pensou na hora preservar. Ele poderia ter feito um backup de todo o arquivo da nave antes de explodi-la, porém no calor dos acontecimentos, na adrenalina absurda em que tudo aconteceu, ele simplesmente não fez isso. Não salvou os arquivos e se arrependeu amargamente por isso.

Do ponto de vista técnico havia duas cópias de cada arquivo, de cada relatório. Um deles ficava na nave (que não existia mais). A outra cópia era enviada para a companhia. Se eles ainda existiam, não se conseguiu provar. A empresa disse que nada foi enviado. O Dr. Angus não tinha como provar que esses arquivos chegaram na sede da empresa. Os engenheiros espaciais da companhia disseram no julgamento que os arquivos provavelmente nunca chegaram até seu destino por causa da interferência do buraco negro que ficava bem próximo de onde eles foram enviados. Mentira ou verdade? Com as mãos atadas o Dr. Angus não conseguiu provar seu ponto de vista. Coisas do direito, uma ciência muito bonita e louvável, mas ainda assim vulnerável às mesmas falhas do comportamento humano.

Assim o Dr. Angus foi vendo dia a dia sua tese sendo destruída no tribunal. Ele ainda tentou argumentar e deu um depoimento muito bom, muito racional... mas foi tarde demais. Ele foi condenado a 12 anos de prisão! Em grande esforço seu advogado conseguiu que ele não fosse condenado por tudo em crimes de homicídio doloso, o que o deixaria preso pelo resto da vida. Ao contrário disso respondeu apenas por homicídio culposo, sem intenção de matar. Com isso sua pena foi reduzida de forma gradual.

Quando o Dr. Angus saiu da prisão, seis anos depois, por bom comportamento ele se viu um homem velho, de cabelos brancos, tentando recomeçar sua vida. Ao cruzar os portões da prisão, o fez de cabeça erguida, sabendo que não havia feito nada de errado, que não havia matado seus companheiros de viagem. Era um homem dos mais dignos que já passaram por aquele sistema prisional. Ele estava velho, mas ainda tinha uma mente lúcida e admirável. Era um homem culto, que poderia ensinar. Assim montou um pequeno local para dar aulas particulares de ciência. E se deu bem. Em pouco tempo estava com um bom número de alunos. Aquele que tem estudo e cultura, jamais será um homem miserável, já dizia a grande frase de sabedoria do passado.

Em seus últimos anos de vida o Dr. Angus resolveu contar toda a sua história em um livro chamado "Kepler 452-b". Nenhuma editora bancou seu livro, ele de próprio punho o escreveu com todas as dificuldades e fez sua primeira edição, com dinheiro próprio, uma tiragem limitada de 200 exemplares. Enviou grande parte dessas cópias para bibliotecas em todo o mundo pois queria que sua história jamais fosse esquecida. E assim foi feito. O Dr. Angus faleceu em uma bela tarde ensolarada, no quintal, com um livro em mãos. Morreu com a alma tranquila, com a mente calma dos homens justos, sem qualquer sentimento de culpa ou arrependimento. Tinha 79 anos. Passou pela morte dos justos e bons de espírito.

Pablo Aluísio.